O Brasil já errou demais, afirma Ilan Goldfajn

Publicado em Economia

ANA DUBEUX, ANTONIO TEMÓTEO, PAULO SILVA PINTO E VICENTE NUNES

Flamenguista roxo – sua última experiência no estádio não foi boa, pois viu o Flamengo ser derrotado pelo São Paulo –, o presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, não baixa a guarda. Ele garante que a instituição está pronta para agir, caso as turbulências políticas, advindas das eleições de 2018, coloquem em risco o controle da inflação e a estabilidade da economia. “Nosso papel no BC será o de manter o sistema mais estável e calmo possível”, avisa.
Para o presidente do BC, mesmo com a atividade econômica reagindo, ainda não se pode dizer que houve um descolamento total da economia em relação à política. “Na medida em que se consegue avançar na economia, dar confiança e tranquilidade, a atividade pode ter seu próprio ritmo. Mas nunca há um descolamento perfeito”, afirma. Na visão de Ilan, a economia realmente está se recuperando, mas há um longo caminho a ser percorrido.
Ele diz que, mantidas as atuais condições, os juros podem cair para 7% em dezembro, como prevê o mercado, e dá um recado aos consumidores neste Natal, que, acredita, será bem melhor: “Comprem apenas o que cabe no bolso”. Ressalta ainda que o Brasil já cometeu erros demais e não pode se negar a reformar a Previdência Social sob o argumento de que não há deficit no sistema. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida ao Correio.

 

A longa crise política e a imprevisibilidade das eleições atrapalham o processo de recuperação da economia?
Eu, como cidadão, poderia responder de forma mais direta. Como presidente do Banco Central, tenho mantido um esforço relevante de nos manter fora da política, de uma forma técnica, sem entrar nessas questões. Acho que isso ajudou a economia a continuar se recuperando, apesar de as políticas andarem com alguma volatilidade.

 

Teremos um 2018 agitado?
Nosso papel no BC será o de manter o sistema mais estável e calmo possível.

 

Existe um debate muito grande sobre o descolamento da economia em relação à política. Isso, de fato, ocorreu?
É uma questão de grau. Não há um descolamento perfeito e não precisa ter uma relação de um para um. Na medida em que se consegue avançar na economia, dar confiança e tranquilidade, a atividade pode ter seu próprio ritmo.

 

A economia vai ditar os rumos das eleições?
Não sei. O que podemos fazer é tentar melhorar a economia dentro do que for possível.

 

A situação fiscal do país ainda é muito preocupante. Até que ponto os problemas fiscais atrapalham os planos do BC em relação aos juros?
O que temos dito é que existem duas fases. A primeira é derrubar a inflação e, como consequência disso, os juros caírem. A segunda é conseguir manter a inflação e os juros baixos. São questões sequenciais. Para poder garantir a sustentabilidade desse processo, são importantes o ajuste fiscal e as reformas, entre elas, a da Previdência. Se você, de fato, colocar as contas públicas em ordem — e não falo só deste ano mas, sim, ao longo do tempo — teremos uma taxa de juros estrutural menor. Se a taxa estrutural de juros não cair, a questão será temporal. Nesse sentido, as reformas colocadas são importantes para a política monetária.

 

Na prática, sem reformas, não teremos juros baixos de maneira sustentável?
Quanto mais a gente perseverar, nas reformas e nos ajustes que ainda não vieram, melhor. Isso não significa que as outras reformas que foram feitas não ajudaram a reduzir os juros estruturais no país. Tivemos reformas creditícias, a TLP (Taxa de Longo Prazo), o teto de gastos, a reforma trabalhista. Várias questões podem ter ajudado a mexer nos juros estruturais. Não se pode dizer que, sem as reformas que estão faltando, nada acontecerá. Mas, para o ajuste fiscal, é preciso uma reforma da Previdência.

 

A reforma sairá ainda este ano?
Essa não é a minha área de expertise, mas a gente gostaria que fosse tentado. Aí tem que ver um pouco como está o clima político.

 

Nunca uma gestão do BC esteve tão próxima do Congresso Nacional. Por que a decisão de ter uma diretoria mais próxima do Legislativo?
A agenda do BC virou uma agenda pública. Você entra no site e vê toda a agenda BC+. Tudo que a gente mandou (para o Congresso) está lá. E algumas coisas que vamos mandar também estão lá. Da mesma forma que temos transparência com o público, tem também em relação às reformas que a gente faz. É importante que os diretores estejam disponíveis para esclarecer dúvidas. Não é obrigado que todo parlamentar tenha 10 anos de experiência sobre o BC. Nem todo o parlamentar entende o que são algumas das mudanças.

 

“As reformas colocadas, como a da Previdência, são importantes para a política monetária. De uma certa forma, significa juros menores por mais tempo”

 

No Brasil e em outros países emergentes, as pessoas costumam achar que a bonança é para sempre e que as crises são temporárias. Isso não pode atrapalhar as reformas?
Acho que a recuperação está vindo, é gradual. Mas a estrada ainda é longa. Foram dois anos de recessão, uma queda acumulada de quase 8% (do Produto Interno Bruto, PIB), aumento do desemprego, que começa a cair. Se você olhar, a quantidade de empregos criados este ano chegou a 1 milhão. Esse número não é pequeno, mas, perto do que aconteceu na recessão, a sensação ainda não é das melhores. Ainda temos 13 milhões de desempregados. A gente tem de perseverar no caminho.

 

O Congresso e a sociedade estão atentas a isso?
Eu quero crer que sim. A minha visão é de que houve muitas mudanças neste ano, mesmo legislativas. Mudanças na área de petróleo e gás. Na área de mineração, estão sendo discutidos vários temas, inclusive a privatização. A reforma trabalhista, que não é simples, já que há diferenças de opinião importantes, inclusive nos próprios tribunais. Teve a discussão do ensino médio. No nosso mundo, tivemos a discussão da TLP, que não foi unânime, sempre com dois lados. Hoje, temos o projeto do cadastro positivo já aprovado no Senado. Vários debates estão ocorrendo e nenhum deles é unanimidade.

 

O governo está no caminho certo? Vemos que o ajuste fiscal ainda é um problema. Inclusive já se discute a possibilidade de o Tesouro descumprir a regra de ouro e emitir dívida para pagar despesas correntes.
O ajuste está acontecendo. Mas por que está batendo na regra de ouro? Por que foram anos de deficit primário. E como se resolve isso de uma forma perene? Quando o deficit vai a zero ou se tem superavit. Aí se resolve o problema de forma permanente. O ajuste está sendo feito.

 

A retomada do crescimento trará uma nova dinâmica para a questão fiscal com a alta da arrecadação? O crescimento resolve ou ameniza o problema fiscal?
Não resolve. O país precisa das reformas e de mais ajustes. Mas acho que há uma parte cíclica. A arrecadação começará a recuperar à medida que a economia voltar a crescer. Na dinâmica da dívida pública, não só a arrecadação subindo ajuda, mas também o fato de se ter uma taxa de juros estrutural menor. Então tem uma parte que a gente consegue fazer, que é cíclica, e outra, que é estrutural.

 

Em relação à dívida pública, há risco de que o governo dê calote, uma vez que a trajetória é preocupante? Em 2018, a dívida deve passar de 80% do PIB. O endividamento do governo está sob controle?
Nos últimos tempos, dado o caminho que a gente está perseverando, acho que esse risco (de calote) não está colocado. Mas é preciso continuar nessa trajetória que estamos. Eu ficaria mais preocupado se ainda estivéssemos andando para o lado contrário, com alguns dos excessos. Excesso de gastos, por exemplo.

 

“Acho que a recuperação está vindo, é gradual. Mas a estrada ainda é longa. Foram dois anos de recessão, uma queda acumula de quase 8% (do PIB), aumento do desemprego”

 

Quando o senhor diz que o caminho é longo para a recuperação da economia, existe alguma expectativa de quando veremos uma melhora efetiva?
Quando eu digo que é longo é porque o Brasil pode crescer muito mais do que as projeções que estamos vendo. A expectativa dos analistas é de queo país crescerá 2,5% no ano que vem. Eu acho que está bom. Mas creio que o Brasil pode crescer muito mais do que isso.

 

A retomada do crescimento vem sendo puxada pelo consumo. Mas falta outro pilar, que é o crédito. Por que os bancos continuam restritivos na oferta, mesmo com a queda da inadimplência?
A razão principal é que essa recessão é diferente e veio com desalavancagem (redução das dívidas por famílias e empresas). Quando há uma recessão com desalavancagem, significa que houve excessos antes. As empresas e as famílias chegaram à recessão endividadas. Então, há uma demora para normalização. As dívidas não são pagas de uma hora para outra. Isso ocorre na medida em que há renda. Você não gasta e, sim, paga. Enquanto só está se pagando dívidas, a economia não se recupera. Mas, recentemente, com relação às famílias, tivemos uma mudança nesse quadro. O processo de desalavancagem andou mais rápido. O crédito para pessoa física está positivo há cinco meses. Por coincidência ou não, o consumo anda junto. Sob o nosso ponto de vista, tivemos a queda da inflação. Isso ajudou bastante. As empresas, entretanto, ainda não acabaram esse processo. Temos boas chances de isso ocorrer em pouco tempo. O crédito na pessoa física já cumpre o seu papel e, na pessoa jurídica, ainda não chegou lá.

 

A recuperação do investimento vai demorar muito?
Acho que o investimento é o próximo passo. Uma recuperação não pode estar baseada só no consumo. Precisa do consumo para começar a vender. Quando vende, a indústria começa a utilizar a capacidade ociosa. Uma vez que a capacidade ociosa diminui, vem o investimento.

 

Mas o investimento está abaixo até da poupança. Quando voltará a ser uma coisa razoável?
Tem um lado cíclico. Quando você utiliza a capacidade (produtiva disponível), você tem vontade de ampliar essa capacidade. Do contrário, não há incentivo para investir. Outras questões são estruturais e dependem de esforço de infraestrutura. Tem que dar frutos para investimentos. Um esforço são as privatizações. Quando (um ativo) muda de mãos, dá um novo ar e vem investimento.

 

Uma vez que o consumo está crescendo antes, pode haver, mais à frente, uma pressão de demanda?
A nossa visão é de que, dada a capacidade ociosa (das empresas), ainda temos um bom espaço para a recuperação (sem pressão inflacionária), ainda mais porque a recuperação é gradual. Isso é uma questão que vai se colocar no futuro, mas não em um futuro próximo. A gente acha que ainda há capacidade ociosa e uma recuperação gradual. Um problema de demanda que vem mais para frente.

 

Do ponto de vista do investimento, o ex-presidente do BC Armínio Fraga afirmou que o investimento só voltará após as eleições de 2018. Como o senhor avalia isso?
Eu diria que o investimento depende da capacidade ociosa, do esforço de infraestrutura, das privatizações, mas também do grau de confiança que você tem. A confiança tem subido, mas existem incertezas que permanecem. E, quanto menor for incerteza e maior for a confiança, mais o investimento se confirmará. Algumas incertezas vão ficar.

 

Que erros o Brasil não pode repetir?
Um é achar que não tem deficit onde tem deficit. É o caso da Previdência. Se a gente começa a dizer que não tem deficit, é o primeiro passo para ter muito deficit e ter, depois, que corrigir. Também temos que tratar bancos públicos e bancos privados da mesma forma. Muitos perguntam por que o governo não usa os bancos públicos para resolver determinados problemas. Isso ficou no passado. Congelamento de preços é outro ponto. Algumas pessoas perguntam por que a gasolina subiu tanto. Subiu porque o preço estava congelado.

 

“Acho que já cometemos vários excessos no passado. Essa recessão, que foi profunda, não seria possível só por inércia. Alguns erros foram cometidos”

 

A vontade de cometer os mesmo erros é grande por parte de algumas pessoas?
Parece que há algo intuitivo e que atrai para esse tipo de solução. Outro erro que a gente não cometeu, mas que é sempre lembrado, é usar reservas internacionais para cobrir o deficit fiscal. A minha resposta é que, infelizmente, a gente não acumulou essas reservas com sobras, como em outros países que possuem fundo soberano. A gente acumulou emitindo dívida. Se gastar as reservas, só vai sobrar dívida. O Brasil já errou demais.

 

O Natal será melhor?
Acho que será um Natal melhor. A economia está se recuperando. Mas, de novo, é um processo gradual, a dona Maria não pode achar que mudou tudo. O brasileiro precisa perceber que as coisas estão melhorando, não de uma hora para outra. Temos feito algumas campanhas e uma delas é falar para as pessoas que têm cartão de crédito que faz uma enorme diferença se elas pagam o mínimo da fatura. Quando o cidadão paga pelo menos o mínimo, os juros são a metade daqueles que não pagam nem o mínimo. A campanha diz para as pessoas gastarem o que têm no bolso. Não é para deixar de comprar, mas, sim, comprar o que cabe no bolso.

 

A última ata do Copom não trouxe a expressão “encerramento gradual do ciclo” de baixa dos juros e deixou claro que o BC deve “manter liberdade de ação e adiar qualquer sinalização sobre as decisões futuras de política monetária”, indicando uma disposição do BC em estender o corte de juros para 2018. Esse foi o recado que o BC quis transmitir?
Nossa tentativa, em termos da comunicação, é ser o mais transparente possível. A sua pergunta é em relação ao ano que vem. Você não fez a pergunta em relação ao próximo Copom. Por quê? Porque você acha que a mensagem é clara e estamos tentando ser o mais transparentes possível. Não significa que a decisão está tomada no próximo Copom. Apenas dizemos que, se tudo ocorrer de acordo com o que projetamos, tomaremos aquela decisão. Mas, se houver uma grande mudança, mudaremos também. Temos menos clareza para frente porque, dada as projeções de inflação, estamos caminhando em direção à meta (de 4,5%) quando olhamos para 2018 e 2019. A extensão do ciclo não é os juros estarem em 14% ou 13%. Estão em 7,5%. Dada a extensão do ciclo e dadas às projeções, é uma questão de olhar para frente e tomar uma decisão mais fina.

 

Há um simbolismo em levar os juros para abaixo de 7% até dezembro?
A gente vai decidir em relação a coisas palpáveis, que são projeções de inflação e riscos. Temos dito é que há risco para os dois lados. Um risco é que a inflação, em vez de ir em direção a 4,5% ou a 4,3%, fique mais baixa. Por que ela ficaria baixa? Tivemos um choque de alimentos, que não voltou. Na verdade, já está começando a voltar. A inflação baixa é um problema bom para ter. O outro risco é para o lado oposto. Se tivermos um choque externo e pararmos de fazer os ajustes e as reformas? O ambiente ficará mais incerto, com alta dos prêmios de riscos e das projeções (de inflação).

 

Chegaremos ao ponto de ter a autonomia do BC em lei?
Eu acho que sim. Há entendimentos diferentes entre parte do Congresso e o nosso quanto aos benefícios e aos custos de uma reforma dessas. Nós achamos que a autonomia em lei do BC trará muitos benefícios e pouco custo. Não é como a reforma da Previdência, que altera regras para a concessão de benefícios.

 

Isso reduziria a taxa estrutural de juros?
Sim.

 

Quanto?
É difícil saber. Seria fácil colocar um número, mas não temos certeza. Sabemos a direção. Quanto, a gente não tem certeza. Mas, às vezes, a discussão política pode ter um custo maior do que aprovar uma autonomia.

 

Dizia-se que, no processo de recuperação, o emprego seria a última variável a reagir. E estamos vendo a recuperação do emprego junto com a economia. O que mudou?
Não se esperava isso. No ciclo tradicional, você começa a vender, aí a produção aumenta. E só depois que se produz mais é que se começa a voltar a contratar. A gente esperava o processo de contratação para o fim do ciclo, com recuperação gradual, volta da produção e, depois, a contratação. Veio mais cedo do que se imaginava. Talvez esteja associada ao ganho do poder de compra, que se recuperou mais rápido, e da queda do endividamento (das famílias). Mas o que estou falando é especulação.

 

“Teremos um Natal melhor. Mas as pessoas só devem gastar o que tem no bolso. Não é para deixar de comprar, mas, sim, comprar o que cabe no bolso”

 

Isso é uma mudança estrutural do mercado de trabalho?
Acho que não. É uma questão de timing. O que deveria ocorrer daqui a seis meses ocorreu agora.

 

O BC tem feito o seu trabalho, mas as taxas praticadas pelos bancos, embora em queda, ainda são muito altas. Quando isso mudará de forma estrutural?
Aqui também tem questões cíclicas e estruturais. Se olharmos a taxa Selic de setembro de 2016 em relação a setembro de 2017, houve queda de seis pontos percentuais. Se olharmos a taxa média de juros, a baixa foi de 10 pontos. Então, os juros estão se mexendo. Claro que não é uma coisa automática. Depende do grau de segurança, da inadimplência e de outras questões estarem mais estáveis.

 

Mas o processo tem sido bem lento. Consumidores e empresas reclamam dos bancos.
Há questões, em parte, estruturais. Questões que levam a taxa Selic a ser maior (do que poderia ser). Primeiro, sabemos que todas as linhas (de crédito) que têm uma garantia apresentam taxa de juros melhor que as que não têm garantia. E a diferença é muito maior no Brasil do que no resto do mundo. O crédito consignado é um exemplo. Mas não só ele. O imobiliário, com alienação fiduciária. Gostaríamos que todas as linhas de crédito tivessem custos menores. Mas temos que reforçar as garantias. Tivemos um projeto que permitia que os registros das garantias fossem eletrônicos, sem precisar apresentar um papel. Isso facilita as pessoas a perceberem o que tem garantia ou não. No registro eletrônico, todo mundo consegue ver (as garantias). Outra é a TLP. Metade do crédito no Brasil é subsidiado e a outra metade não é. Isso é uma anomalia do Brasil. No resto do mundo não existe isso.

 

É a pior situação no mundo?
É. Não quer dizer que não existam subsídios. Os Estados Unidos dão subsídio para quem compra uma casa. Deduz do imposto de renda todos os juros que foram pagos. É um subsídio, mas não via o empréstimo. Tenho usado o conceito mais amplo, a ideia da meia-entrada. Se a gente quer ter meia-entrada para metade do sistema, está claro que alguém tem que pagar. Uma das meias-entradas, a gente lidou com a criação da TLP. A nossa percepção é de que isso vai diminuir o custo do investimento. Outra questão estrutural é a informação, que tem um valor para quem tem e é enorme para quem não tem. No mercado de crédito, saber para quem está emprestando é um valor muito grande, ainda mais em um país como o Brasil, em que você recupera muito pouco. Se você emprestar e ocorrer inadimplência, no resto do mundo, você recupera 70%. No Brasil, só 10%. O projeto do cadastro positivo é algo que permite que todo mundo tenha acesso à informação. Ele não funcionou (no Brasil), porque não tivemos um cadastro completo. Meio cadastro não funciona.

 

A diferença do atual projeto para o cadastro positivo em relação ao anterior é que o cidadão terá que dizer que não quer participar?
Exatamente. O Brasil é cheio de atritos e dificuldades. Todos estarão no cadastro. Se, por acaso, alguém não quiser participar, pedirá para sair. No outro, você tinha que correr atrás de todo mundo para entrar. Outra diferença é no nível de informações. Milhões de pessoas não tomam crédito. Então, como você sabe? Você olha se o cidadão pagou a conta de luz, de gás, de água e de esgoto. E ainda conhece o bom pagador. Essas mudanças democratizam a informação. Um grande banco tem uma base de dados. Um grande varejista, também. Quando se tem um cadastro público, democratiza-se a informação. Esse conceito de democratização não é muito claro. Por isso, não há unanimidade. Dizem que haverá problema de sigilo. Não haverá. Você não vai abrir os dados da pessoa.

 

Mas tudo isso justifica esses spreads altíssimos que os bancos brasileiros praticam?
Não sei se justifica ou não, mas eu sei que vou trabalhar, inclusive na competição.

 

O que será feito?
Tem que empoderar quem pode para competir. E quem pode competir? Pequenos e médios bancos. Baixamos, recentemente, uma segmentação do mercado. De S1 a S5. S1 são os cinco maiores bancos. O S5 são as cooperativas (de crédito). No meio, fica aquela indefinição. Por que é importante onde você fica? Porque vamos colocar um custo maior regulatório e de capital. Se exigirmos menos custo para os pequenos e médios, estaremos empoderando essas instituições para competirem. O segundo ponto que ajuda na competição são as inovações tecnológicas. São outra forma de pensar. São as fintechs, empresas de tecnologia no mercado financeiro. Um cartão de crédito diferente ou um empréstimo em que uma pessoa empresta a outra por meio de uma plataforma eletrônica.

 

A concentração bancária e no mercado de crédito no Brasil são maiores do que em outros países?
Não. A concentração do Brasil, na média, é igual à mundial. Onde há uma concentração menor é nos Estados Unidos e na Inglaterra. Na França, na Alemanha, na Espanha e em Portugal, todos têm quatro ou cinco bancos com concentração até maior que no Brasil. Mas não significa que vamos deixar de olhar o tempo todo para a competição.

 

No caso das inovações, há preocupações em relação a moedas digitais?
Tem que diferenciar as fintechs do bitcoin. Não é a mesma coisa.

 

Mas será inevitável o mundo lidar com a proliferação dessas moedas.
As fintechs têm uma utilidade e um valor. Tem uma que empresta de forma digital, outra que é um cartão completamente eletrônico. Qual o papel do bitcoin? Ele tem basicamente dois papéis hoje. Um é uma forma de encobertar dinheiro ilícito. Segundo, às vezes não é só ilícito. Tem gente que compra aquilo para valorizar. Aí é uma bolha, e não é algo que o Banco Central quer. Temos alertado, acompanhado os discursos. Não é qualquer inovação que é boa.

 

Há uma pressão vinda dos Estados Unidos com a escolha do novo presidente do Federal Reserve, o banco central norte-americano. Trump escolheu Jerome Powell.
O mercado acha que Powell não mudará muito a trajetória dos juros nos EUA. As decisões do Fed mexem com todos os ativos, e também os brasileiros.

 

O Fed não possui metas explícitas e, sim, metas implícitas, sobretudo relacionadas a desemprego. O BC deveria olhar mais para as questões relacionadas ao emprego?
A diferença do regime de metas para inflação no Brasil para os demais países e o Fed é muito mais de percepção do que de realidade. No fim das contas, todo mundo trabalha igual. O Fed tem uma meta de 2% (de inflação), quase como se tivesse (um sistema de) meta de inflação. Se (o índice de preços) estiver abaixo da meta, vai estimular a economia. Pense no Brasil agora. Temos dito, explicitamente, que a política monetária é estimulativa, com juros abaixo do que seria estrutural. Quando você está abaixo da sua meta de inflação, você pode ser estimulativo, não só para a volta da inflação, mas para ajudar na recuperação da economia. São coisas muito parecidas. Se o Fed estiver com a inflação acima da meta, não vai olhar o emprego. Vai olhar o emprego na decisão sobre qual é a velocidade de volta (da inflação para a meta). A gente faz a mesma coisa. Tivemos inflação de 11% em 2015, de 6,13% em 2016. Não voltamos para 4,5% em um pulo. Não é impossível, mas precisa calibrar os juros de tal maneira, tão forte, que leve a inflação para 4,5%. Mas você leva em conta a atividade e a velocidade da volta. No fim das contas, essa discussão de que o Fed tem mandato de inflação e emprego é só uma questão de nomenclatura. No nosso caso, temos mais receio, porque não temos autonomia em lei e, sim, de fato.

 

 

Bom padrão de vida e mais segurança

 

O presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn, está na sua segunda passagem por Brasília. A primeira foi na segunda metade dos anos 1990, quando comandou a diretoria de Política Econômica da instituição. Nesse período, foi peça central para que o país consolidasse o tripé da estabilidade econômica: metas de inflação, câmbio flutuante e superavit nas contas públicas.

“Eu gosto de Brasília. Acho que o padrão de vida aqui é bom. Vejo as pessoas voltando para casa para almoçar. Já tem mais trânsito do que na minha primeira passagem. Mas as pessoas vivem em um ambiente menos inseguro do que em outras capitais. Me parece que o padrão de vida é melhor”, diz.

Discreto, Ilan acha que não é reconhecido nas ruas. Na Esplanada dos Ministérios e no mercado financeiro, porém, é visto como o goleiro da economia. Em mais de um ano no comando do BC, avalia como positivo os resultados alcançados até agora pelo país.

“Foi um período em que conseguimos alguns resultados. A inflação caiu, ajudamos na recuperação. E também atuamos no ataque, não só na defesa. Aprovamos algumas reformas. Não tem porque reclamar. Foram vários avanços, mas com muito trabalho”, resume.

 

Brasília, 09h03min