POR FLÁVIO MIRAGAIA PERRI*
O presidente da República tem atuado na mais alta investidura no país, a mais poderosa e a mais decisiva nos poderes que confere a seu titular, como um mero parlamentar. Michel Temer custa, no entanto, a descobrir o imenso poder que a Presidência lhe dá. Temer falou no último domingo à Nação, mas ainda no tom habitual, sem ênfases e sem muito a revelar de novo sobre seus atos administrativos, especialmente na área econômica, de que quase tudo se sabe. Foi positivo em seu tom ameno.
Não conseguiu talvez ser sempre convincente, quando abordou, tangencialmente, a questão Geddel Vieira Lima. Deixou de abordar de frente uma causa pequena, muito pequena, que é a guerrinha pessoal do ex-ministro para liberar a construção de um espigão na Bahia (30 andares) no qual comprou um apartamento de andar alto e vê-se ameaçado pela ingerência devida do Iphan, que autorizou apenas a construção de 13 andares para proteger o Patrimônio Histórico, Artístico e Urbanístico de Salvador, uma das joias da história brasileira.
Triste a situação de ser envolvido numa briga de quintal, contra a opinião de um órgão técnico de prestígio e a missão de um jovem (agora ex) ministro da Cultura. Trata-se da batalha do velho contra o novo, da história cultural dos assim considerados “pequenos” delitos da corrupção administrativa, que inspiram os grandes crimes neste país abençoado por Deus, mas esquecido pelos homens de poder.
Geddel é um velho político calejado pelo mau uso de suas funções. Será que o presidente da República teria de ser levado a se envolver em episódio tão pequeno, quando tem o país para gerenciar? Terá esse reles Geddel tantos poderes que o faça primeiro entre pares, capaz de supor que seria preservado cometendo um crime administrativo? Não teria o presidente assuntos mais sérios e de maior alcance para o interesse nacional?
Comédia trágica
Estamos diante de uma comédia trágica! Umberto Eco tem um parágrafo em seu belo O nome da Rosa, de sugestivo significado: “Os homens de outrora eram grandes e belos (agora são crianças e anões), mas esse fato é apenas um dos muitos que testemunham a desventura de um mundo que envelhece…[…] o mundo inteiro caminha de cabeça para baixo, cegos conduzem outros cegos e os fazem precipitar em abismos, os pássaros se lançam antes de alçar voo, o asno toca lira, os bois dançam. Maria não ama mais a vida contemplativa e Marta não ama mais a vida ativa. Lia é estéril e Raquel tem olhos lúbricos, Catão frequenta lupanares. Tudo está desviado do próprio caminho“.
Faço dele minhas as palavras: “Sejam dadas graças a Deus por eu naqueles tempos ter adquirido de meu mestre a vontade de aprender e o sentido do caminho reto, mesmo quando o atalho é tortuoso“! [Nota: Lia foi sempre a portadora de boas notícias, a Lia de Jacó, que, no antigo hebraico, era entendida como a mulher casta, fiel a seu papel; Raquel, a “serrana bela” de Camões, mulher inocente e bela, por quem se podia esperar e lutar, e Catão, o velho, Cônsul eleito na República Romana, foi censor, atuou em defesa das tradições romanas contra o luxo e a frivolidade, ou Catão, o moço, partidário da filosofia estoica, avesso a qualquer tipo de suborno].
É triste a República de que se vão acumulando os defeitos e os vícios! É alarmante que Geddel Vieira Lima receba o apoio corrompido das lideranças no Congresso para se manter na função; seria destruidor se de fato o tivesse conseguido. A nossa República parece hoje, no ano de 2016, uma reprodução do que aponta Umberto Eco. A corriola do quintal do presidente o afasta da figura do condutor, mais velho e mais sábio, a que se ligam os jovens pelo exemplo. Na entrevista de domingo, Temer pareceu assumir as rédeas do país!
Fiel, entretanto, a uma velha “amizade”, o presidente foi sutil quando insinuou que tem suas próprias maneiras de convencer alguém a deixar um posto. Teria desejado a saída de Geddel, mas pareceu ainda tentar poupar quem de fato o traiu, que foi Geddel.
Anonimato
O que me parece mais positivo foi o presidente da República haver saído do anonimato que se esconde, talvez por índole, talvez por recear reações a sua investidura, ainda que perfeitamente constitucional. Essa sua atitude discreta seria elogiável se contasse com amplo apoio popular e se retirasse apenas para produzir resultados de uma sua pregação anterior, que, no entanto, nunca houve. Temer foi eleito numa chapa tornada odiável pelas diatribes de quem a encabeçava.
Nesse trem em novo ritmo, tratou da lamentável tentativa na Câmara de passar uma anistia para aqueles que tenham praticado uma indecente caixa dois no passado, o presidente parece ter conseguido aliviar o ambiente, recusando-se a apoiar qualquer tentativa nesse sentido. Essa é a “voz das ruas”. O que se espera agora é a ação consequente dos presidentes das duas casas do Congresso. A vergonha nacional está evidente quando se presenciam parlamentares legislando em causa própria para livrar-se de acusações e penas por corrupção.
Bravo! Faltava sua palavra, presidente! A meu ver, Temer deve se expor mais e combater ou denunciar, em campo aberto, erros políticos ou de procedimento pessoal de quem quer que seja. Ele pode e deve demonstrar indignação com abusos. O problema econômico está bem claro, decorre dos erros dos últimos anos de governos do PT. A corrupção e os descaminhos de seus “amigos” ou inimigos continuarão na berlinda se ele não se manifestar, e acabarão novamente por envolvê-lo. Resta-lhe pouco tempo e uma imensa tarefa: salvar a economia, retemperar a ética por seus valores absolutos, abandonar, se não pode condenar, os malfeitores, dar valor ao decoro, seguir a Constituição!
(*) Embaixador. Já passou por alguns dos postos mais relevantes do país no exterior.
Brasília, 00h20min