POR ANTONIO MACHADO
Apesar de recebida pelo Judiciário como represália à operação Lava Jato, a comissão criada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros, para apurar os supersalários nos três poderes, com destaque para os vencimentos de juízes e procuradores federais e estaduais, é o mais forte endosso à necessidade de uma reforma fiscal sem maquiagem.
Com 12 ações no STF por indícios de corrupção, o senador Calheiros (PMDB-AL) presta um serviço à correção dos gastos públicos no país, ainda que seus motivos sejam censuráveis, como afirmam as entidades que representam os magistrados. Elas são contrárias à divulgação de quem recebe acima do teto constitucional de R$ 33,7 mil, dado pelo salário de ministros do STF, tanto entre ativos quanto inativos.
Não faltam aberrações, especialmente nas aposentadorias de juízes, desembargadores e procuradores. Já se tratava de privilégio iníquo, embora legal, aposentar-se com o último salário, benesse extinta há pouco para novos servidores. Mas, no serviço público, há bagrinhos e senhores. Estes, em regra, põem no bolso mais que o teto legal e se aposentam com múltiplos do salário básico, que podem chegar a R$ 180 mil ao mês, graças à incorporação de gratificações de todo tipo (isentas de imposto de renda enquanto pagas no período ativo).
Tais regalias vêm da Constituição que os constituintes, e queremos crer que por candura, apelidaram de “cidadã”. Enquanto havia margem para tributar e se endividar, a União, estados e municípios foram governados pelo senso dito “cidadão”, embora tal cidadania servisse mais aos interesses de políticos e da burocracia que à população em nome da qual o “tudo pelo social” encobriu as imposturas.
O Estado de bem-estar social, inspirado no modelo europeu, poderia ter funcionado se tivesse havido também preocupação com a expansão estrutural da economia e não, basicamente, do consumo movido pelas políticas de transferência de renda (e, como agora sabido, mais à elite de servidores que aos efetivamente necessitados). Fato é que, por mais que ela estrebuche, o dinheiro público acabou. E somente à custa de juros recordes o Tesouro Nacional consegue endividar-se.
Não há saída: a solução terá de vir de cortes de gastos e de maior taxação do funcionalismo (devido à irredutibilidade salarial mesmo com redução da carga horária), reforma da estabilidade, demissão de comissionados e, vencida essa etapa, a consolidação das dívidas dos entes regionais pela União. Deixar para depois será pior.
Dando viço à fruta podre
Se dúvidas ainda havia quanto ao quadro falimentar da Federação, o cenário de caos visto diariamente no Rio de Janeiro se encarregou de desfazer. Frente a isso, a PEC do Teto do gasto federal, agora tramitando no Senado, e a reforma da previdência são insuficientes.
O valor dos deficits dos estados requer mais que ações triviais, e são mais de 20 esperando a resposta do governo de Michel Temer aos apelos por socorro do governador do Rio, Luiz Fernando Pezão, para engrossar o coro dos pedintes. O que cogita o governo? Nada de bom.
O ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, falou em liberar a emissão de dívida de estados como o Rio, que mal paga o serviço do que deve à União. O chefe da Casa Civil, Eliseu Padilha, disse que parte dos repasses da reserva monetária do Banco Central ao BNDES, R$ 100 bilhões, que deveriam ser estornados e abater dívida pública, poderia dirigir-se aos estados. Enfim, seria como tentar dar viço a fruta podre.
Descompasso é permanente
Se estados como o Rio, e isso vale para o INSS e outras autarquias federais igualmente operando sem caixa, sofressem só um descompasso passageiro, os empréstimos seriam a solução. Mas não é isso. Tais instâncias foram à insolvência não bem porque a arrecadação desabou devido à recessão, mas porque vários governos foram irresponsáveis, além de alguns terem sido muito mais que isso, como atesta a prisão de dois ex-governadores do Rio, Anthony Garotinho e Sergio Cabral.
De 2004 a 2014, segundo pesquisa do Ipea, servidores dos estados tiveram aumento real acima de 53% (no Rio, até 2015, chegou a quase 100%), contra 37% do setor privado. Não há como achar que onerando mais a sociedade se resolverá o disparate. A diferença terá de sair do próprio funcionalismo, além de se fechar de vez os vazamentos.
A quem querem enganar?
Ou o governo Temer convoca os governadores para propor uma solução definitiva, que implica os estados adequarem os gastos, incluindo o previdenciário, às receitas, ou a PEC do Teto nascerá condenada.
A parte fiscal trata do fluxo descompensado. Resta o estoque, dado pela dívida absorvida pela União no governo FHC. Um caminho poderia ser o dado aos créditos imobiliários irresgatáveis do finado BNH – o saldo foi diferido mediante pagamentos anuais até 2027, saídos do orçamento fiscal. Noutra forma, os ativos privatizáveis dos estados poderiam passar à União em troca da quitação da divida. Não dá é para continuar como estamos: à base do “me engana que eu gosto”.
Chegando a 2014 em 2023
Mal comparando, a zorra fiscal do Brasil se parece com o plano de Donald Trump. Ele quer elevar o gasto e cortar impostos sem onerar déficits, inflação e dívida. Qual a mágica? A economia crescer 3,5% a 4% ao ano, contra 2% desde 2008. No Brasil, nem magia resolve.
A arrecadação em 12 meses até outubro foi R$ 197 bilhões abaixo do arrecadado em período igual em 2014, segundo o economista Fernando Montero. Significa, considerando elasticidade unitária e projeções do Focus, que levaria sete anos para a economia recuperar a receita de dois anos atrás. Só em 2023 voltaríamos à situação de 2014.
Essa perspectiva é viável socialmente falando? Os tumultos aqui e ali sugerem que não. A reforma fiscal precisará ser acelerada, com revisão de desonerações, tal como a distensão monetária. “A demanda quebrada é solução para nossos juros astronômicos”, diz Montero.
Brasília, 06h17min