INDÚSTRIA DO ATESTADO

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“Vamos simbora prum bar: beber, cair e levantar” Marcelo Marrone, Bruno Caliman e Thiago Basso

» DIEGO AMORIM

Não bastasse a destruição de 7,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do país todos os anos, o alcoolismo tem impulsionado a invisível e criminosa indústria do falso atestado médico. Ressacados, principalmente no início da semana, trabalhadores pagam por documentos ilegais que os livram da obrigação de ir ao serviço. As ausências forjadas pelo álcool alimentam a prática da falsidade ideológica e atingem em cheio a produtividade de empresas e órgãos públicos.

O Correio conseguiu um atestado médico falso para escancarar a facilidade com que isso é feito. Brasília, 12h18 de uma segunda-feira: a reportagem aborda, em frente ao Conic, no Setor de Diversões Sul, um dos homens que, identificados com coletes, dizem trabalhar com “ouro e atestado médico admissional”. “O senhor quer atestado para faltar ao serviço, não é? Esse só uma mulher que faz, a gente concentra nela”, adianta.

A tal mulher se apresenta como Jane e aparenta ter pouco mais de 40 anos. Interrompeu o almoço para atender, conforme as contas dela mesma, o 10º “cliente” daquela manhã. Atenciosa, inicia as explicações: “É o seguinte: a gente trabalha com dois médicos. Um é clínico geral do Hospital do Paranoá; a outra, ‘otorrina’ do Hospital de Base. Eles mesmos emitem o atestado, o senhor vai conferir”, garante.

Utilizando-se de um discurso que soa recorrente e decorado, Jane emenda: “A partir do momento em que você é atendido aqui, seu nome vai automaticamente para a portaria do hospital, entendeu? Não tem erro”. Em seguida, a mulher diz que a irmã trabalha com os médicos há nove anos. “Para eles atenderem aqui, só se for com a minha confiança.”

Concluída a metódica introdução, no intuito de tranquilizar o interessado no atestado falso, Jane avança para a parte prática. “Onde você mora?”, pergunta ela, relembrando que o documento só pode ser emitido pelo Hospital de Base do Distrito Federal ou pelo Hospital do Paranoá. “Correto, Hospital de Base para você. Mas lá tem que ser uma sinusite, dor de garganta ou dor de ouvido”, impõe.

Diagnóstico

Indagada sobre o que mais leva as pessoas a recorrerem a ela, Jane não titubeia: “Matar o serviço por causa de ressaca”. A seguir, quando escuta da reportagem que o sintoma era dor de cabeça justamente por causa de ressaca, ela logo diagnostica: “Pronto: sinusite. Nome completo do senhor?”. Após pedir para ser aguardada em um dos bancos de uma lanchonete, a negociadora desaparece e, menos de três minutos depois, retorna com o atestado preenchido. “Está aqui”, mostra, confirmando as informações dadas anteriormente.

Jane volta a dizer que vende atestados falsos há nove anos e que nunca teve problema. “Mas dobra, dobra direito (o atestado)”, pede ela, pela primeira vez preocupada com a movimentação de pessoas próximas. A licença de um dia custa R$ 30 na mão de Jane. “Mas a partir de cinco dias, a gente faz por R$ 15 cada, tá?”, informa ela. O pagamento precisa ser feito em dinheiro.

Por fim, mantendo a simpatia, a mulher tenta fazer freguês: “Meu nome é Jane, trabalho das 9h da manhã às 5h da tarde. Se quiser, é só me chamar. Chega aqui e pergunta: a Jane está aí? Aí eles me chamam”. Na despedida, ela ainda agradece e, certa do uso do atestado falso que acabara de conceder, deseja “bom descanso”.

Espanto

No documento comprado pelo Correio, consta o carimbo de Elaine Alves de Oliveira, residente em otorrinolaringologia do Hospital de Base do DF. Avisada do fato pela reportagem, a médica de 28 anos reage com espanto. “Estou sendo vítima de um crime, essa informação é muito grave. Posso garantir que o uso do meu nome nesse atestado não tem procedência”, afirma ela, que acredita na possibilidade de ter tido o carimbo furtado e clonado. Na última semana, ela procurou a polícia e informou o Conselho Regional de Medicina (CRM). “Isso não é possível. Nunca trabalhei fora do hospital e sou extremamente rígida com a emissão de atestado”, reforça.

A Secretaria de Saúde informa ter encaminhado para a corregedoria a denúncia dos falsos atestados. A comissão de residência médica abrirá sindicância, permitindo à profissional envolvida amplo direito de defesa. O órgão deixa claro que irregularidades como essa podem resultar na demissão de médicos e que o CRM poderá ser acionado para uma investigação paralela. O conselho não se pronunciou.

Quem vende atestado ilegal comete crimes, como o de falsidade ideológica, cuja pena pode chegar a cinco anos de reclusão. Os médicos que emitem o documento podem ser enquadrados no delito específico de falsidade de atestado médico, com punição que varia de um mês a um ano de detenção. Já quem apresenta atestado médico falso no trabalho fica sujeito à demissão por justa causa. No ano passado, um jovem de 26 anos, morador de Vitória (ES), conseguiu uma liberação do serviço alegando estar com dor de cabeça e sinusite. Acabou desmascarado pela empresa e, além de perder o emprego, foi levado à delegacia pelo crime de uso de documento falso.

Incentivo à violência

O álcool encoraja o crime ou conduz a ele sem avisar. Qualquer agente de segurança pública tem consciência do efeito do alcoolismo na criminalidade, principalmente a que ocorre dentro de casa. Se as estatísticas são frágeis, a rotina das delegacias por si só reflete essa constatação. Mesmo aqueles que jamais se considerariam viciados em bebida ficam sujeitos, impelidos pela embriaguez, a cometerem atos de violência.

No Distrito Federal, os dados mais recentes indicam que o álcool e outras drogas aparecem como estopim em 27% das ocorrências. Essa proporção pode ser bem maior, uma vez que os boletins não trazem os detalhes de toda a investigação. “É indiscutível que o álcool potencializa o crime. O indivíduo perde as amarras sociais, fica sem noção do que é certo ou errado”, sentencia Paulo Henrique de Almeida, delegado da Polícia Civil do DF.

A influência do álcool prevalece em homicídios, estupros e agressões domésticas. Na delegacia de Anápolis (GO), a 160 km de Brasília, sete em cada 10 prisões em flagrante têm relação direta ou indireta com o álcool. “Delegacia é lugar de bêbado”, resume o delegado Manoel Vanderic. No ano passado, conta ele, três garotos apreendidos após cometerem latrocínio na cidade confessaram ter “enchido a cara” para vencer o medo de agir.

Transgressões

Realizar o flagrante de uma pessoa embriagada é, naturalmente, mais difícil. O suspeito, fora de si, não consegue responder ou, no mínimo, não leva a sério as perguntas dos agentes. Além disso, atrapalha a realização de eventuais exames de corpo de delito e, ainda, pode, no dia seguinte, já sóbrio, ser orientado por advogados a optar pelo silêncio, dificultando a conclusão do inquérito.

Geralmente, os bêbados travam o funcionamento da delegacia: fazem barulho, tentam se soltar, quebram objetos e desacatam policiais. “Até refrigerante a gente já comprou para ver se melhorava a situação de um suspeito embriagado. A equipe perde um tempo que poderia estar sendo dedicado a outros inquéritos”, pontua Almeida.

No entanto, o alcoolismo também não perdoa os próprios agentes de segurança. No Rio de Janeiro, levantamentos indicam que metade do efetivo das polícias Civil e Militar faz uso de álcool mais de uma vez por semana. Em Alagoas, oito em cada 10 atendimentos registrados no Centro de Assistência Social da Polícia Militar são motivados pelo consumo exagerado de bebida alcoólica, o que favorece as transgressões disciplinares, como falta ao trabalho e crimes praticados nas horas de descanso.

Brasília, 00h01min

Vicente Nunes