FAMÍLIAS PERDEM TUDO

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“Se eu quiser beber, eu bebo. Pago tudo o que consumo com o suor do meu emprego”(Chico da Silva)

» DIEGO AMORIM

Nas rodas de conversas da irmandade Alcoólicos Anônimos, que completa 80 anos de existência em 2015, se conta a história de um homem que certa vez parou em frente a um bar e, esforçando-se para manter o equilíbrio do corpo, começou a se questionar como que, por aquela pequena porta, tanta coisa podia ter entrado e se perdido: a aparência, a dignidade, a reputação, a família, os bens, tudo.

O mau uso do álcool corrói não apenas o fígado. Maltrata também a renda e o patrimônio de quem não sabe mais viver sem a bebida, mesmo acreditando exercer domínio sobre ela. O porre na saúde financeira deixa sintomas irrecuperáveis. Em não raros casos, pais e mães de famílias acumulam dívidas, poupam apenas o dinheiro da cachaça e, por ela, abrem mão de tudo o que conquistaram.

Sem equilíbrio emocional nem domínio pleno das decisões, quem não se dá bem com o álcool não consegue manter uma boa relação com as contas. “É quase impossível encontrar um alcoólatra com a vida financeira ajustada. Geralmente, é perda total”, diz o presidente da Dsop Educação Financeira, Reinaldo Domingos.

Vulneráveis

Bêbado costuma gastar mais do que poderia. Empresta e toma dinheiro no mercado com facilidade. Vira amigo de agiota, enrola o dono do bar, os amigos, os parentes e a si mesmo. Com muita frequência, sublinha Reinaldo, se enrosca nos juros do cheque especial e do cartão de crédito e fica vulnerável às pegadinhas de profissionais especializados em dar golpes.

A situação financeira de um dependente de álcool é definida pelo educador financeiro Rogério Olegário como caos total. “Se a pessoa não sabe controlar a bebida, dificilmente saberá cuidar do dinheiro”, reforça ele, rotineiramente procurado por filhos e mulheres de alcoólatras dispostos a salvar o que restou do patrimônio.

O alcoólatra arrasa tudo o que está ao seu redor. Quem convive com ele acaba tendo de se virar para arcar com os prejuízos provocados pela bebida. A doença — assim considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) — acomete toda a família. “Muitas vezes, é necessário vender bens para garantir o tratamento da pessoa ou minimizar os baques na vida financeira. Além disso, a produtividade de todos despenca”, completa Olegário, autor do livro Família, afeto e finanças.

Carreira prejudicada

O primeiro gole de Marcelo* veio aos 7 anos. “Era cachaça das boas, direto da boca de engenho”, lembra o mineiro, hoje com 75. Ele chegou a Brasília em 1958, já de joelhos para a bebida, ainda que, à época, não reconhecesse o vício. Inspirado na rotina de um tio alcoólatra, por quem tinha profunda admiração, bebia de tudo, até álcool puro. “Minha maior paixão era o álcool, era para ele que eu vivia”, resume.

Com os estudos concluídos, conseguiu oportunidade em três órgãos públicos e em um laboratório farmacêutico. Foi demitido de todos eles. Chegava a faltar metade do mês. Quando ia ao trabalho, estava bêbado ou de ressaca. “Às sextas-feiras, nunca voltava do almoço”, recorda. Não à toa, a carreira nunca deslanchou.

Desvio mental

Foram pelo menos 40 internações em um tempo em que não existia clínica especializada. Em meio a crises epilépticas, era tratado como louco nas alas de psiquiatria dos hospitais públicos do Distrito Federal. No corpo e na alma, acumulou cicatrizes. Uma delas de um corte no pulso do dia em que quebrou a cristaleira do corredor que levava à cozinha. Ao se ver no reflexo do móvel, deduziu que havia outro homem em casa e começou a esmurrar os vidros.

A mulher, que tinha decidido não trabalhar para cuidar mais de perto dos três filhos, mudou de ideia e foi em busca de emprego para sustentar a família. Parte do dinheiro que ganhava, o marido roubava para beber e gastar nos cabarés dos arredores da recém-inaugurada capital federal. Certa vez, em uma das inúmeras brigas com a mulher, jogou uma televisão pela janela. Por sorte, não acertou ninguém.

No Ministério da Agricultura, por onde se aposentou em 1997, bebia escondido no subsolo. “Os chefes tinham dó de mim”, conta ele, que andava com atestado de “desvio mental” dobrado no bolso, para ser apresentado em casos de emergência.

A reviravolta teve um marco: 17 de junho de 1980, quando participou da primeira reunião dos Alcoólicos Anônimos. “É a data do meu nascimento”, diz. Na luta diária pela sobriedade, sem recaídas até aqui, ele voltou a trabalhar. Deixou de frequentar o porão para beber e foi transferido de setor. Formou-se em economia, viu nascer os sete netos e os dois bisnetos. “Eu sei que poderia estar bem melhor: o álcool me cegou, acabou com as minhas finanças e não me fez aproveitar as chances da vida. Mas meu maior patrimônio hoje é ser feliz e livre das amarras do álcool.”

Pinguço, cachaceiro, pé inchado, esponja

Manoel* jamais esquecerá aquele dia: depois de mais uma noite de bebedeira, conseguiu levantar para ir ao trabalho, mas, quando voltou, não encontrou a mulher nem os dois filhos. “Ela costumava dizer: ‘ou o álcool ou eu’. Eu respondia sempre que havia conhecido o álcool antes dela, que ela aceitasse. Ela não suportou e saiu de casa. Fez bem. Foi a sacudida de que eu precisava”, avalia ele, hoje aos 65 anos, sem beber há 30.

Ninguém podia competir com o álcool. Manoel não poupava um centavo e tirava dinheiro da alimentação da família para garantir as doses diárias. Chegou a ter empréstimo com seis agiotas ao mesmo tempo. “Pegava de um para pagar para o outro”, relembra.

O salário caía na conta e, no dia seguinte, Manoel já tinha se livrado dele. “Todo bêbado acha que é rei do boteco. Eu mentia, dizia que era coronel do Exército, técnico da Seleção brasileira”, relembra, sem achar mais o mínimo de graça de si mesmo. “Viajava sem poder, somente para esbanjar e encher a cara. Batia o carro com frequência. O que me importava era manter a tonturinha.”

Beber era prioridade. Por isso, nunca concluiu a faculdade. O curso de administração ficou pela metade, porque as aulas eram à noite, justamente a hora sagrada do bar. “Fui homem para começar a beber, mas não fui homem para parar de beber”, diz ele, que recorreu ao álcool pela primeira vez para “criar coragem e tirar as meninas para dançar nos bailes”.

Servidor aposentado pelo Ministério da Educação, Manoel era mais visto no posto médico do órgão do que na sala de trabalho. “A turma me chamava de pinguço, cachaceiro, pé inchado, esponja. E eu era tudo isso mesmo. Diziam que eu não tinha jeito, que eu ia morrer logo, logo. Estou aqui”, comenta ele, que se dedica a levar esperança a quem já a perdeu.

Só restou a vergonha

O pai adotivo de José*, pastor da Assembleia de Deus, morreu sem ver o filho parar de beber, um milagre que completou 15 anos. “Graças a Deus, estou vivo hoje para contar a minha história”, acredita ele, que, por duas décadas, esteve dominado pela bebida. “O álcool não escolhe. Chega e, se você deixar, entra e destrói tudo”, emenda, com autoridade.

A cachaça passou a ocupar espaço nobre na vida de José depois que colegas exigiram que ele “virasse homem” e parasse de tomar “apenas refrigerante”. O vício sem freio começou com alguns copos de quentão em uma festa junina durante a Copa do Mundo de 1970. De orgulho do casal que o adotou, José virou um peso. Envergonhado, afastou-se de quem pôde.

Pai de cinco filhos, ele não convive com nenhum da maneira como gostaria. Enquanto bebeu, perdeu as três famílias com as quais a vida lhe presenteou. “Não tem quem aguente conviver com um homem chato, bêbado, que fica dias sem tomar banho, cheirando a álcool”, desabafa um dos pioneiros de Brasília, hoje com 63 anos. Aposentado há quatro pelo Senado Federal, ele não acumulou bem algum. O apartamento no Plano Piloto ficou com uma das ex-mulheres. Hoje, mora em uma casa financiada com muito custo no Novo Gama, município goiano no Entorno de Brasília.

Enquanto recorda o passado, José vez ou outra se confunde na fala. O álcool, logo justifica ele, atrapalhou a capacidade de raciocinar. “Desculpe, não estou conseguindo. A bebida era meu calmante, minha razão de ser”, desabafa, com os olhos marejados. José ainda fica irritado com a própria trajetória. Tem dificuldade de aceitá-la e pressa para reconstruí-la. Quer recuperar o tempo e o dinheiro perdidos. “Eu não abria as contas de casa e só não vendi meu apartamento porque não tinha jeito”, conta.

Desequilíbrio

No Senado, chefes de três gabinetes o mandaram de volta para o setor de recursos humanos. Sóbrio, José era um bom funcionário. Mas isso era algo raro. Cansado de si mesmo, chegou a pedir exoneração. Não tinha ânimo para bater ponto e desejava mais tempo para beber antes, durante e depois das partidas de dominó nas praças.

José só bebia se fosse para ficar bêbado. Não sabe como nunca se desequilibrou da janela do sexto andar onde morava. Um dia, começou a noite em um bar e a terminou em outro: acabou perdendo um Passat que comprara há pouco. Até hoje, não faz ideia de onde o carro pode ter sido estacionado. Após uma briga com uma ex-mulher, em Anápolis (GO), José capotou um outro veículo na BR-060, quando a pista ainda não era duplicada. O carro teve perda total e os bombeiros se surpreenderam por ele ter sobrevivido.

(*) Nomes fictícios.

Brasília, 17h10min

Vicente Nunes