Coluna no Correio: Questão de ousadia

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POR ANTONIO MACHADO

A corrupção revelada pelos delatores da Lava-Jato desfia uma trama devastadora para os partidos, tamanha a sordidez dos personagens e dos relatos em série do que fizeram em benefício próprio e de seus chefes políticos, arruinando o sistema de coalizão que a gestou. O que vai sendo desvendado em pedaços sugere a arte dos thrillers, em que se ocultam detalhes cruciais para criar suspense e prender a atenção.

Tramas de conspiração fazem grande sucesso e deixam marcas na vida real quando já há propensão a se crer em mistérios (ETs) ou falam sobre o que a sociedade suspeita (carteis, máfias políticas). A Lava-Jato parece flertar perigosamente com esse inconsciente, já que os inquéritos entregues à Procuradoria-Geral da República (PGR) e sob a guarda do STF, a jurisdição para ministros e parlamentares ignoram as urgências da política, deixando-a contaminar a economia. A força-tarefa reunida em torno do juiz federal Sérgio Moro faz o embaraçoso contraponto, ao não se perder em filigranas — sentencia sem delonga.

É o que explica o apelo do ex-presidente Lula e seus filhos ao STF para que a ação contra eles não “desça” a Curitiba. Moro e o aparato de delegados e procuradores federais obtiveram confissões de gente acostumada a dar carteirada, criando o ambiente que levou ao afastamento da presidente Dilma Rousseff e, em algumas semanas, ao seu provável impeachment. Já as autoridades de Brasília, com a cautela inexpugnável do ministro Teori Zavascki, o relator da Lava-Jato no STF, e o estilo meio juvenil do chefe da PGR, Rodrigo Janot, provocam mais calor que resultado.

Quando o presidente interino Michel Temer estava pronto para expor à sociedade seu plano para recuperar as contas públicas federais e se mostrar apto a aprová-lo no Congresso, surgem as gravações com figurões do PMDB do Senado feitas pelo ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado, que já estava com sua delação acertada com a PGR.
A que serve tal vazamento, se o conteúdo exposto, embora deixe mal os grampeados, não sugira ações criminosas? E em que incrimina Temer a acusação de Machado, segundo a qual o então presidente do PMDB lhe pediu ajuda na eleição de 2012? O país quer respostas, não questões evasivas instigadas por quem não tem nada a perder e tudo a ganhar.

Riscos de bonapartismo

Ou Machado entregou provas já conferidas pela PGR e validadas pelo ministro Teori, desdobrando-se em novas apurações, ou nada havia a divulgar, sabendo-se de antemão a fragilidade do governo interino e a intenção da turma encrencada em generalizar as suspeitas visando banalizar os seus atos criminosos, além de confundir a sociedade.

Em tese, não há crime se a transgressão for geral. É o que afirma a defesa de Dilma, ao alegar que todos os governos que antecederam o dela também apelaram a pedaladas fiscais, o que não para de pé. O risco no caso da Lava-Jato é que o sentimento de que ninguém presta na política leve a movimentos bonapartistas, ao salvador da pátria — chaga recorrente na América Latina e atualíssima no Brasil. A Lava-Jato não pode parar. Mas poderá ser vencida se não apressar os resultados, protegendo-se dos tais “pescadores de águas turvas”.

Assobiar e chupar cana

A devassa da corrupção habitual nos órgãos estatais, que adquiriu dimensões sistêmicas nos governos petistas, não é incompatível com a implantação de um programa que imponha um teto para a expansão das despesas públicas, conforme a proposta de emenda constitucional que foi enviada ao Congresso. Ela trata do que arruinou a economia nos últimos anos, ao lado do viés estatista, depois da crise de 2008.

O governo Lula e, sobretudo, o de Dilma fizeram da demanda inflada a crédito, gasto fiscal e desoneração tributária a variável chave para o crescimento, ignorando o que lhe é efetivo: a produtividade, a taxa de lucro e o investimento, nessa ordem. O mergulho do PIB desaconselha, ao menos por ora, insistir com esse modelo financiado por aumentos sucessivos de impostos (com o Brasil impondo a maior carga entre os países emergentes) e de dívida pública, cujo custeio expropria 70% da poupança financeira do país, acirrando os juros.

O Congresso valorizado

O governo Temer propõe ampliar o gasto no orçamento federal já de 2017 só pela aplicação da inflação de 2016, e assim sucessivamente nos próximos 20 anos. Isso, na prática, congela o orçamento em base real. Qualquer gasto a mais numa rubrica, saúde, por exemplo, terá de ser compensado com cortes nas demais. As implicações são óbvias.

O Congresso é valorizado como nunca foi desde o fim da ditadura, pois sempre terá de avaliar prioridades e resultados — hoje inútil, devido à automaticidade do equivalente a 90% do gasto fiscal. A boa gestão se torna obrigatória, tal como a fiscalização da sociedade. O político biscateiro perde função, a burocracia fica sem o álibi social para impor suas regalias e o desperdício vira palavrão. Não é tudo, mas a chamada PEC do Teto já é quase tudo.

Para ecoar o Plano Real

O governo Temer dispõe de equipe econômica inventiva e ideias para não ser medíocre. Falta-lhe ousadia. Tipo ignorar a pressão de sua base parlamentar por cargos e selecionar melhor os auxiliares. Ela não tem opção nestes tempos de ruína política a não ser apoiá-lo. Na economia, ele também pode fazer mais. O desgaste para aprovar a superindexação do orçamento pela inflação passada não é menor do que fazê-la pela meta oficial da inflação.

Com regra de passagem, tal mecanismo desmonta a indexação, podendo gerar um efeito similar ao da reforma monetária de 1994. É isso que mantém a inflação alta, com recessão de 8% no biênio e desemprego de 12%. Com ajuste fiscal e fim do ciclo recessivo, a economia tende a uma ligeira distensão. Mas, com risco de recaída, se faltarem ações adicionais. Desindexação e fiscal em linha viabilizam juro menor, mais crédito, ativação do mercado de capitais e a volta do investimento. É isso e já é muito.

Brasília, 00h01min

Vicente Nunes