Aprendiz de líder

Publicado em Economia

POR ANTONIO MACHADO

 

Tão logo os institutos de pesquisa, a imprensa e os muitos órfãos da derrota de Hillary Clinton para Donald Trump parem de culpar os eleitores pelo que não conseguiram prever, as questões de fundo da eleição do republicano vão emergir e revelar se os Estados Unidos levaram à Casa Branca o fanfarrão que interpretou para chocar e chamar a atenção para uma candidatura desprezada até pelo seu partido ou um líder improvável.

 

Trump ganhou manchetes praticamente diárias ao se mostrar como uma personalidade odienta e provocativa, dizendo que, se eleito, mandaria construir um muro com o México, expulsaria os estimados 11 milhões de imigrantes ilegais, vetaria a entrada de muçulmanos. Ele caçoou das mulheres e das minorias. Foi, em suma, um pesadelo ambulante.

 

Funcionou para colocá-lo em evidência e atrair o apoio de quem já via com rancor as teses “politicamente corretas”, identificadas com as causas do declínio econômico da parte da sociedade desempregada, pouca instruída e moralista. Ela votou por mudanças na economia. E Trump não deve desapontá-la. A questão é o quê, como e quanto.

 

Um bilionário mais visto como playboy que empresário de respeito, a quem nunca seus pares e a imprensa deram muita atenção, Trump se elegeu talvez por isso mesmo. Ele se apresentou como a antítese do establishment de Washington, de Wall Street e das corporações – os culpados, segundo ele, pela degradação do poderio americano.

 

Onze anos de exposição na tevê como apresentador do reality show The Apprentice (O Aprendiz, na versão brasileira) deram a ele o domínio do “show”, atributo ausente em Hillary, apesar de sua experiência. No fim, ambos tiveram votação equivalente, indicando a divisão da sociedade e o apoio relutante aos programas de um e de outro para tirar os EUA não da recessão, superada já em 2009, mas de um lento, progressivo declínio, a despeito da capacidade tecnológica do país.

 

Hillary ousou menos que Trump ao falar à classe média tradicional. Ela se sente abandonada pelos governantes, tratada como mercadoria descartável pelas corporações e ignorada pelos bem pensantes – um sentimento de humilhação detectado nos EUA e, sobretudo, na Europa. O Brexit refletiu a desesperança dos ingleses, tal como a votação crescente de partidos nacionalistas e xenófobos espelha a profunda insatisfação e angustia dos franceses, italianos, alemães etc.

 

O voto dos ressentidos

 

Trump soube captar o ressentimento de grande parte do eleitorado e transformá-lo na narrativa agressiva que o elegeu. Menos certo é se o seu plano de governo, ainda excessivamente vago, corresponderá à expectativa que criou nos EUA e no mundo. Para o bem e para o mal.

 

A incerteza atual pouco conta. Ao contrário de Trump, Barak Obama se elegeu em 2008 pensando alto e com um plano minucioso preparado por luminares como o banqueiro Robert Rubin (ex-Goldman Sachs, ex-Citi) e o economista Lawrence Summers, ambos ex-chefes do Tesouro.

 

A crise de Wall Street o intimidou e Obama não seguiu o combinado: desperdiçou os dois primeiros anos, quando tinha maioria na Câmara, para reformar a banca, investir em infraestrutura, fechar a prisão extraterritorial de Guantánamo. Seu projeto mais visível, a reforma do seguro saúde, conhecida por Obamacare, Trump promete liquidar.

 

Reformismo interditado

 

Fato é que muitas das reformas anunciadas por Trump são reclamadas desde o primeiro governo de George W. Bush e sempre embargadas. Os pontos principais envolvem a emissão de dívida pública para bancar a partida do rejuvenescimento da logística do país, estimado em US$ 1 trilhão em quatro anos, e medidas fiscais para forçar as empresas a repatriar seus lucros obtidos no exterior e não tributados.

 

O aumento da dívida pública é execrado pelo Partido Republicano de Trump, que manteve a maioria na Câmara e no Senado. Já a tributação das multinacionais mexe com interesses sutis. As maiores, segundo relatório do Moody’s, mantém um caixa livre de US$ 1,8 trilhão, dos quais US$ 1,3 trilhão fora dos EUA. Se internassem esses recursos, pagariam 35% de imposto. Elas querem anistia e imposto menor.

 

A meta é crescer 3,5%…

 

Se o novo governo começar com uma proposta ousada para as maiores corporações, poderá desfazer a má impressão e construir as reformas que façam a economia crescer 3,5% ao ano, única meta quantificável de Trump, contra a média de 2% desde 2008. Fala-se numa taxa de 10% sobre os lucros retidos no exterior, seguida de redução para 15% do imposto de renda. Funcionará? Só se o investimento acontecer.

 

É ele que viabiliza de modo sustentado o crescimento econômico. Lá e aqui. Mas um comitê do Senado apurou que numa anistia semelhada, em 2004, 92 centavos de cada dólar internado serviram para pagar dividendo, bônus a executivos e recomprar ações. Acusado de driblar o Fisco dos EUA, supõe-se que Trump conheça tais expedientes. Sem a promoção de emprego e salários, a chance de redenção, depois de sua campanha sórdida, é mínima. Caminha-se, ainda, sobre gelo fino.

 

Temer e Trump sem tempo

 

As análises mais frequentes sobre as implicações do governo Trump para a economia brasileira praticamente se resumem ao protecionismo que ele defendeu em campanha e à curva do dólar, que se valorizou e põe em risco a política de desinflação do Banco Central. É isso.
E é mais: está claro que ele não terá a indulgência dos mercados e da sociedade. Tem de dizer logo a que veio. Essa é a semelhança com Temer, também sem tempo para tergiversar, sobretudo no Congresso.

 

Sua demora em aprovar a reforma do orçamento e da previdência deu tempo aos interesses contrariados se mobilizarem, graças também à lentidão do STF em dar cartão vermelho aos políticos envolvidos na Lava-Jato. Estamos no pior dos mundos: com o Congresso subjudice e um Executivo intimidado pelo cenário que o circunda. Soa pueril por tais coisas o governo anunciar a volta do tal Conselhão com mais de 90 participantes. Perda de tempo, que é o que não temos. Como Trump.

 

Brasília,