Chá de bom senso

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POR ANTONIO MACHADO

Brasília nestes dias de pedaladas fiscais, Lava-Jato, impeachment, presidente interino, recessão é pura ebulição, embora a água quente na chaleira da política produza mais queimadura nos que a manipulam que chá de bom senso. Ou, com alguma sorte, chá de inteligência.

A sua escassez fez o governo afastado praticar “economicídios” em massa, que legaram o quadro atual de ruína das finanças federais e de insolvência aberta em vários estados, como Rio de Janeiro, Minas e Rio Grande do Sul, incapazes de pagar as folhas de servidores, as dívidas e até o gasto corrente dos serviços essenciais. Tal cenário na área federal, certo com Dilma Rousseff, hoje é menos provável.

Depende do que o presidente em exercício Michel Temer fizer com as medidas fiscais propostas pelo ministro Henrique Meirelles. Os seus alvos são claros e defensáveis: interromper o aumento automático do gasto definido em lei ou na Constituição ou pela pressão de lobbies (sobretudo de corporações de funcionários e grupos econômicos), com efeitos sobre o déficit no curto prazo e também de modo permanente.

A criação de um teto para o aumento dos gastos na lei orçamentária anual (LOA), que seriam corrigidos pela inflação do ano anterior, é a principal providência. Faltam detalhes, mas a ideia é que perdure o tempo necessário para desacelerar o ritmo de aumento da dívida do Tesouro em relação à dinâmica do Produto Interno Bruto (PIB).

Tal relação indica a solvência do Tesouro Nacional e, sobretudo, o custo do endividamento público avaliado pela taxa de juro básica (a Selic), regulada pelo Banco Central também em função da inflação. E não só. O giro dessa dívida, que significa renová-la no vencimento, acrescida de juros, influencia as taxas bancárias em geral – seja do capital de giro, do cartão de crédito ou do cheque especial.

A regra é simples: quanto mais poupança financeira for sugada pelo Tesouro, menos dinheiro sobrará aos bancos para emprestar a pessoas e empresas e, portanto, mais caro o crédito (exceto o subsidiado na banca federal, que tende a ser racionado devido ao endividamento do governo). A lógica de Meirelles visa liberar crédito a custo menor, função de menos gasto público. Só diverge quem renega a aritmética.

O que falta a Meirelles

Os números correlacionados à dívida pública, ao volume do crédito e ao custo do dinheiro são por si favoráveis ao plano de Meirelles. Desfavoráveis não são a resistência do Congresso em aprovar medidas amargas do ponto de vista eleitoral, a pouca familiaridade do PMDB de Temer & Cia. com os fundamentos da macroeconomia e a aversão dos economistas ditos progressistas à disciplina fiscal.

O problema é a péssima comunicação do governo interino para expor à sociedade a herança maldita de Dilma e explicar que a correção de seus desatinos visa salvar as políticas sociais, não desmontá-las. A crítica à austeridade fiscal se aplica a países avançados, onde a dívida pública passa de 100% do PIB (contra 72% do PIB no Brasil este ano), mas custa menos de 1% ao ano e o dinheiro que a financia não compete com o funding do crédito privado. Disciplina fiscal no Brasil, hoje, é diretriz desenvolvimentista e não conservadora.

Dívida fermenta os juros

Aos dados. A relação entre o estoque de dívida do Tesouro e o PIB saltou de 51,7% do PIB em 2013 para 66,2% no ano passado, avançando 14,5 pontos de percentagem em apenas três anos. Em dinheiro atual, Dilma gastou o equivalente a R$ 905 bilhões para nada, já que o PIB ficou estagnado em 2014 (+0,1%), recuou 3,8% em 2015 e tende a cair de 3% a mais de 4% este ano, conforme a dispersão das projeções.

Para bancar esta montanha de dívida, o setor público se apropriou de 69,5% da captação bancária em 2015, conforme estudos de Carlos Antonio Rocca, do Cemec/Ibmec. Grifando: cerca de 70% dos recursos financeiros do país financiam o Tesouro, que cresce a cada déficit primário (-0,6% do PIB em 2014, -1,9% em 2015, previsão de -2,4% este ano, -1,5% em 2017). O resto do funding bancário, 30%, é o que sobra para financiar carros, móveis, roupas, a produção etc.

Déficit é como imposto

Os déficits orçamentários são a emergência a resolver, pois tomam dinheiros que deveriam bancar investimentos – sem o qual o PIB não avança, não há expansão do emprego nem um fluxo crescente e real de impostos para viabilizar os programas sociais. Déficit é um imposto indireto ou um direito do setor financeiro sobre o setor público.

O Banco Central fica sem autonomia para gerenciar a taxa de juros e o preço do dólar, que acaba refém dos capitais externos voláteis. Tais digressões são primárias a Meirelles e ao novo presidente do Banco Central, Ilan Goldfajn. Mas são complexas para Temer e à sua base, e foram bem mais para Dilma – uma economista cuja arrogância e autoritarismo potencializaram a sua má formação acadêmica. O que Temer deve atentar é para o que precisa acompanhar o ajuste fiscal: ações para mover o crescimento. Esse processo não é espontâneo.

Evitando as lavas-jatos

A discussão relevante a fazer, no contexto de um Estado capturado pelas corporações e que desperdiça dinheiro social com projetos que nunca se pagam, não pode ser simplista como pregam os que defendem a redução do governo ou, na mão oposta, o aumento do gasto fiscal.

O tamanho do estado é o que tiver de ser, desde que se controle o resultado do que faz e não esteja a serviço de lobbies. Boa parte está hoje representada em partidos de esquerda, como o PT, mas já esteve na Arena, PFL, PSDB… Eles se unem para manter privilégios, como aposentadoria integral e emprego estável.

Esse é o atraso que frustra o progresso, aliado ao protecionismo empresarial. Abertura econômica, desburocratização, fim da cultura dos alvarás, coisas assim, formam essa nova economia que parte do ajuste fiscal. Em suma: ajudar quem precisa e não atrapalhar a veia progressista da sociedade. Mais que isso descamba em lavas-jatos.

Brasília, 00h01min

Vicente Nunes