POR SIMONE KAFRUNI
O mercado de energia do Brasil nunca mais foi o mesmo depois do que ficou conhecido como o 11 de Setembro do setor elétrico: a publicação da Medida Provisória 579, editada naquele mês de 2012. Desde então, quase 300 liminares judiciais travam as negociações, com impacto direto nas operações das empresas, e provocam uma inadimplência da ordem de R$ 1 bilhão na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE).
Mais do que questionamentos jurídicos, a judicialização do setor revelou cobranças absurdas, embutidas na Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e rateadas entre todos os consumidores, os chamados “jabutis elétricos”. A coordenadora de Energia da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace), Camila Schoti, explica que, ao anunciar o fim dos encargos na conta de energia para reduzir as faturas em 20%, numa medida considerada eleitoreira, a presidente Dilma Rousseff, hoje afastada, nada mais fez do que jogar todos eles dentro da CDE.
“Até hoje temos efeitos colaterais da MP 579. Isso porque a medida transformou a CDE num grande fundo setorial, agregando todas as despesas. A questão é que a CDE é rateada entre todos os consumidores, que acabaram bancando todos os encargos”, diz Camila. Nela, foram colocadas duas contas bastante significativas: a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC), um fundo usado para abastecer os sistemas isolados do Norte do país, que não estão conectados no Sistema Interligado Nacional (SIN); e subsídios que eram dados na tarifa de energia de diversos segmentos de consumo (irrigação, baixa renda, energia incentivada). “A CDE foi usada para bancar políticas públicas”, diz Camila.
No início, o Tesouro Nacional se comprometeu a injetar recursos na CDE, mas, diante do rombo fiscal, abandonou o barco e os custos passaram a ser rateados entre todos os consumidores. Não à toa, de uma média de R$ 1 bilhão por ano, a CDE passou para R$ 23 bilhões em 2015 e foi a principal responsável pela disparada nas tarifas no ano passado, alerta o ex-diretor da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) Julião Coelho, especialista em direito de energia.
Como a Abrace tem entre seus associados grandes consumidores de energia, para os quais o insumo representa entre 60% a 70% dos custos, a associação entrou com uma liminar contra a cobrança e seus sócios foram isentados de pagar o rateio da CDE. Outros consumidores seguiram o exemplo da Abrace, cuja argumentação jurídica descortinou os “jabutis elétricos” (veja quadro ao lado).
Anomalias
Várias irregularidades foram constatadas, como o pagamento de R$ 210 milhões, em 2015, de carvão combustível para uma termelétrica que estava desativada desde 2013. A CDE também bancou R$ 2,3 bilhões da conta de combustível para Manaus e Macapá, sendo que o fundo é específico para os sistemas isolados do Norte do país. Tanto Manaus quanto Macapá já estão interligados ao SIN desde 2013 e 2014, respectivamente; portanto, deixaram de ser isolados.
Outra fatura de R$ 2 bilhões estava embutida na CDE para bancar a construção do gasoduto Urucu-Coari-Manaus, investigada na Operação Lava-Jato. Apenas em 2015, a parcela da conta foi de R$ 463 milhões. O Tribunal de Contas da União, ao fiscalizar os custos envolvidos na implantação do gasoduto, identificou irregularidades e não legitimou os valores declarados, apesar de estarem embutidos na CDE e terem sido pagos por todos os consumidores. “Achamos as mais diversas anomalias dentro da CDE, que provocaram o tarifaço em 2015. Outra distorção era a Eletrobras gerir a conta, sendo que se beneficia dela, usando recursos para financiar suas distribuidoras”, avalia Julião Coelho. Por conta disso, a Justiça concedeu as liminares à Abrace e demais empresas, que estão isentas do rateio da CDE.
Além disso, conforme levantamento feito em maio pela CCEE, existem 143 liminares vigentes relativas ao risco hidrológico, o chamado GSF (Generation Scalling Factor, na sigla em inglês), que geraram R$ 1,07 bilhão de inadimplência. Essas ações protegem as usinas geradoras de energia da responsabilidade por não terem tido condições de honrar contratos por conta da seca. Outras liminares questionam as regras de tratamento de inadimplência em liquidações financeiras do mercado de curto prazo de energia.
A Resolução nº 3 do Conselho Nacional de Pesquisa Energética (CNPE), que implementa mecanismos de aversão a risco para formação de preço, gerou mais 126 liminares. Há, ainda, outras 15 liminares judiciais. Para Rafael Herzberg, sócio da Interact Energia, a judicialização do setor paralisou o mercado livre. “Há muitos agentes sem receber pela energia”, diz.
Compromisso
O Ministério de Minas e Energia (MME) garante que está atuando para desjudicializar o setor. “O assunto é prioridade e está sendo debatido no âmbito do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico (CMSE)”, informa a pasta, ressaltando que a Medida Provisória 735, publicada em 23 de julho, estabelece o compromisso de reduzir os custos da CDE. “O governo deverá apresentar um plano de redução estrutural das despesas da CDE até 31 de dezembro de 2017. Além disso, a gestão da conta foi delegada para a CCEE, retirando da Eletrobras esse compromisso”, afirma o ministério.
Aumentos em 2017
O próximo capítulo da triste história de judicialização do setor elétrico tem data marcada: o pagamento das indenizações de transmissão, que podem chegar a R$ 24 bilhões, ocorrerá a partir de 2017. Mais uma vez, a fatura será cobrada dos consumidores, por meio de um repasse tarifário que deve provocar o aumento da conta de luz em 2%, calculam especialistas. Eles também estimam que a medida vai gerar mais disputas na Justiça, por conta da cobrança em duplicidade.
A coordenadora de Energia da Associação Brasileira de Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres (Abrace), Camila Schoti, diz que a chamada Tarifa de Uso dos Sistemas de Transmissão (Tust) é “outra bomba que está para estourar” em 2017. “A nossa perspectiva é de um custo elevadíssimo de novo. Mais uma herança da MP 579, que é o pagamento da indenização dos ativos de transmissão anteriores a 2000 a partir de 2017”, explica.
São indenizações que poderiam ter sido pagas a partir de 2013, mas que a lei criada pela MP 579 estabeleceu que seriam quitadas em até 30 anos. “A portaria MME 120/2016 estabeleceu que o pagamento vai se dar a partir da inserção na tarifa de transmissão. Isso vai começar a ser cobrado de todo mundo no ano que vem. A gente está tentando mapear. Mas já está homologado pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica) algo em torno de R$ 16 bilhões, que podem chegar a R$ 24 bilhões, e que, numa estimativa otimista, terá impacto médio de 2% na tarifa de todos os consumidores”, assinala Camila.
Uso indevido
Este custo é decorrente de mudanças no marco regulatório. Antes da MP 579, os agentes do setor elétrico contribuíam com a Reserva Global de Reversão (RGR), cuja finalidade expressa era indenizar ativos não amortizados ou depreciados. No entanto, o governo utilizou o dinheiro desse encargo para outras finalidades e o fundo acabou esvaziado após o processo de renovação das concessões em 2013. Além disso, com a 579, o governo acabou com o recolhimento da RGR, que parou de receber recursos.
Camila estima um aumento de 40% na Tust. “Vamos avaliar todas as alternativas possíveis para minimizar esses impactos para os nossos associados”, diz. Isso pode incluir novas ações judiciais. Ela lembra que, no momento da aplicação da MP 579, os geradores tiveram redução considerável na Tust e questiona se a indenização só deve ser paga pelos consumidores.
Brasília, 02h30min