As ruas vão ferver

Publicado em Economia

A situação de calamidade na qual mergulhou o Rio de Janeiro poderá se repetir em outros estados mais cedo do que se imagina. A destruição das contas públicas de várias unidades da Federação foi tamanha que não há como ver uma solução rápida no fim do túnel. Muito pelo contrário. Resolver os gravíssimos problemas levará tempo e será muito doloroso. Nada, porém, do que está ocorrendo deve ser visto como surpresa. É o resultado da farra que marcou as administrações estaduais, que conjugou ineficiência, má gestão, corrupção, privilégios exacerbados e descaso com a opinião pública.

 

O mais impressionante é que o descalabro das contas estaduais foi sendo construído sem que nenhuma autoridade do governo federal, do Legislativo e do Judiciário se levantasse contra os desmandos. A complacência foi geral. Protegidos por essa cegueira conveniente, governadores — uns mais outros menos — se acharam no direito de tratar a coisa pública como a casa da mãe Joana. Os chefes do Executivo do Rio, sem exceção, foram além de todos os limites. Não por acaso, o estado faliu e está empurrando toda a responsabilidade para uma solução à população em geral e aos servidores em particular.

 

Quem acompanha o dia a dia das contas dos estados garante que as próximas unidades da Federação a ruírem serão Rio Grande do Sul, Alagoas e Minas Gerais, que, na avaliação de Selene Peres Nunes, uma das autoras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), vêm descumprindo sistematicamente a legislação. “Houve manobras nas contas estaduais por todos os lados. No caso do Rio, foram concedidos reajustes de salários e ampliado o quadro de pessoal com base em receitas extraordinárias, os royalties do petróleo, que todos sabiam que logo acabariam”, diz. “As manobras começaram em 2009, mas ultrapassaram os limites a partir de 2012”, complementa.

 

Entre 2009 e 2015, os salários dos servidores do Rio tiveram aumento médio real (descontada a inflação do período) de 70%. Selene conta que isso foi possível porque os governadores que se seguiram no comando do estado somaram as receitas extraordinárias à arrecadação real para fazer com que a dívida ficasse dentro dos limites permitidos pela LRF. “Com isso, perderam os argumentos para negar as demandas do funcionalismo. O problema é que a contabilidade dos recursos estava ferindo a legislação, sem que houvesse qualquer tipo de punição”, ressalta.

 

Fora da lei

 

No entender da especialista, o mais assustador é que as autoridades estão tratando esse tema tão grave, que está gerando forte tensão social, com paliativos. Governo federal e governadores acreditam que podem resolver os problemas de caixa dos estados com recursos oriundos da repatriação de valores não declarados à Receita Federal e com a venda de dívidas ativas (débitos não pagos pelos contribuintes). Selene destaca que, no caso da repatriação, o dinheiro entrará uma única vez. Em relação à venda de dívida ativa, além de antecipar receitas futuras, a operação está proibida pela LRF.

 

O ideal, reforça Selene, seria que os estados fossem submetidos a um forte processo de enxugamento de suas estruturas. Mas não pode ser por meio de enganação, como no Rio. O governador Luiz Fernando Pezão anunciou a redução de secretarias, sem, no entanto, cortar pessoal. “O melhor a ser feito é um amplo programa de demissão voluntária (PDV), reduzir incentivos fiscais e cortar privilégios. Esse é o verdadeiro choque de gestão, e não, por exemplo, propor uma alíquota de 30% para bancar a previdência estadual. Isso, no meu entender, é confisco. Só vai gerar demandas judiciais à frente”, diz.

 

Para Selene, as soluções para os problemas dos estados estão com pelo menos 20 anos de atraso. As reformas estruturais — tributária, da Previdência e política — foram sempre relegadas. Não se buscou dar qualidade aos gastos públicos. O sistema de repartição de tributos deixou de refletir a realidade. Os tribunais de contas, que deveriam fiscalizar os estados, foram loteados de indicações políticas. “No período de bonança, de crescimento econômico, o então presidente Lula se acomodou. Com Dilma Rousseff, veio a recessão e a irresponsabilidade fiscal. A crise expôs todos os problemas nacionais e os locais. Deu no que deu”, frisa.

 

Sem 13º salário

 

Na opinião de técnicos da equipe econômica, a tendência é de o quadro atual se agravar. A tensão que tomou conta das ruas do Rio, com embates violentos entre manifestantes e policiais, pode se repetir em outras unidades da Federação. Há fortes indicativos de que pelo menos 20 estados não terão condições de pagar o 13º salário e parte dos rendimentos normais. Estimulados pelo que estão vendo no Rio, os trabalhadores se sentirão fortalecidos para cobrarem o que lhes é devido. Dezembro, portanto, será um mês de muito tumulto, bem longe da tranquilidade que o caracteriza, devido ao clima de Natal.

 

“Caminhamos para uma ebulição social, com sérias repercussões na política e na economia”, assinala um auxiliar do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles. “Os estados estão sem dinheiro para o pagamento de coisas básicas. Temos levantamentos que indicam a incapacidade de honrar salários e 13º”, completa. Para ele, tudo indica que a gritaria não se restringirá às carreiras mais afetadas. Haverá um movimento em massa do funcionalismo em direção às ruas. “Estamos vendo um cenário preocupante, sem chances de solução a curto prazo.”

 

No Palácio do Planalto, a apreensão subiu muitos degraus. O presidente Michel Temer admite que, com o estouro da crise nos estados e as ruas inflamadas — a Câmara foi invadida ontem —, votações importantes no Congresso podem ser prejudicadas, entre elas a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que limita o aumento dos gastos públicos à inflação do ano anterior. “A bomba está armada. Ou a desativamos rapidamente, ou o estrago será geral”, afirma um assessor palaciano. Ele está coberto de razão.

 

Brasília, 06h30min