Analistas reforçam alerta sobre riscos fiscais por conta da PEC dos precatórios

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ROSANA HESSEL

O ministro da Economia, Paulo Guedes, vem insistindo no discurso de que não há alternativas para o Orçamento de 2022 sem a aprovar a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que propõe adiamento no pagamento dos precatórios — dívidas judiciais da União — e ainda alega que a medida visa preservar o teto de gastos — emenda constitucional que limita o aumento de despesas à inflação do ano anterior. Contudo, cresce o número de especialistas que criticam a medida e afirmam que ela  é inconstitucional, proporciona insegurança jurídica e ameaça a regra do teto para criar espaço para despesas eleitoreiras do presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Segundo eles, além de burlar a regra do teto, a PEC 23/2021 — que vem sendo chamada de PEC das pedaladas — aumenta os riscos fiscais, porque o governo quer evitar acionar os gatilhos de corte de gastos previstos na regra do teto no caso de descumprimento, como congelamento de salários e proibição de concursos , e, de quebra, busca desculpas para arrumar espaço para gastos correntes sem uma previsão clara de receita sobre as despesas, como é o caso do novo Bolsa Família. O presidente, inclusive, vem prometendo reajuste para os servidores civis no ano que vem, em pleno ano eleitoral, já que, na pandemia, apenas os militares foram agraciados com reajustes e aqueles que estão na reserva e exercem algum cargo no Executivo ganharam um teto duplex, na contramão de qualquer princípio de austeridade fiscal.

O teto de gastos é a única âncora fiscal no momento e, para piorar, essa PEC tem um jabuti que flexibiliza a regra de ouro– , que proíbe o governo de emitir títulos da dívida pública para cobrir despesas correntes –, como salários e aposentadorias, sem o aval prévio do Congresso. Guedes insiste em minimizar os problemas dessa PEC e afirmar que ela visa preservar o teto de gastos.

De acordo com o ministro, o adiamento no pagamento de precatórios é necessário porque um “meteoro” de R$ 89,1 bilhões caiu sobre a cabeça dele e da equipe econômica para serem pagos em 2022. Nos últimos dias, Guedes chegou até a ameaçar que, sem essa PEC, vai faltar dinheiro para tudo, “até para pagar os salários dos servidores”, em um claro sinal de desespero e falta de argumentos. Mas, segundo especialistas, essa ameaça não pode ser levada a sério porque não se pode condicionar o pagamento de uma despesas obrigatória a outra, e, além disso, esse aumento expressivo das sentenças poderia sim ter sido evitado se houvesse uma boa gestão orçamentária, o que parece que não ocorreu. Não à toa, o pessimismo no mercado está aumentando e as projeções para 2022 só pioram.

“Bola de neve”

Alertas foram dados mas não foram ouvidos, de acordo com o presidente da Comissão Especial de Precatórios da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Eduardo Gouvêa. Segundo ele, o governo quer transmitir para a sociedade uma fatura que poderá virar uma bola de neve sem fim. Pelos cálculos de Gouvêa, se os R$ 89,1 bilhões não forem pagos integralmente no ano que vem, em 10 anos, esse montante poderá chegar a R$ 1 trilhão, considerando o acúmulo de multas e juros no período com a rolagem, virando uma enorme bola de neve. “Essa PEC é inconstitucional, apresenta mais de 20 problemas no texto e ainda vai criar uma dívida impagável”, alerta.

Analistas reconhecem que o novo Bolsa Família é uma prioridade, mas os argumentos do governo para defender a PEC dos precatórios como uma espécie de moeda de troca para o novo benefício geram ainda mais desconfiança no mercado. Além disso, o governo não define quais as receitas recorrentes que vão custear essas novas despesas, como determina a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e tenta fugir da necessidade de aplicar os gatilhos para cumprir o teto, último fio de credibilidade no controle das contas públicas, apesar de ter alguns defeitos. 

“A PEC dos precatórios é uma resposta mal formulada a um falso problema. Vamos nos entender: romper o teto na presença de gastos elevados não deveria requerer PEC. Deveria, simplesmente, levar ao acionamento dos gatilhos. Mas nada disso interessa. A PEC dos precatórios é imposta como tudo ou nada. Quem é contra, dizem, não seria a favor do gasto social. A desfaçatez é assombrosa. Sabemos quem relutou em pagar auxílio social em meio à crise pandêmica”, escreve Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, nas redes sociais. Em um relatório recente sobre a PEC, a entidade alerta para os riscos de burla ao teto e ainda destaca que a transparência das contas públicas deverá diminuir com essa medida.

Leonardo Cezar Ribeiro, especialista em contas públicas e economista do Senado Federal, lembra que o cenário econômico vem sendo contaminado pelas incertezas com relação aos impactos fiscais das medidas apresentadas pelo governo como essa PEC polêmica, que tende a afrouxar as regras fiscais. “A reforma tributária virou uma colcha de retalhos que pode agravar o desequilíbrio das contas públicas. A PEC dos precatórios é uma proposta invertebrada que só tem um objetivo: relaxar os instrumentos de controle das contas públicas. A própria equipe econômica se mostra insegura com o texto apresentado”, afirma. Segundo ele, a medida é uma tentativa de constitucionalizar manobras fiscais que contornam regras fiscais e geram resultados fictícios nas contas públicas. “A PEC dos precatórios tira despesas do teto e ainda parcela precatórios, que pode ser entendido como uma espécie de calote para postergação de despesas que tornaram o resultado fiscal mais deficitário no presente. Além disso, há medidas acessórias na PEC que enfraquecem a regra de ouro e a lei de responsabilidade fiscal”, alerta.

No entender de Ribeiro, o mercado vai cobrar do governo um prêmio de risco cada vez mais alto para financiar a dívida pública a partir de 2022. “Isso significa taxas de juros mais elevadas, com impacto fiscal relevante. As incertezas vão custando cada vez mais caro, comprometendo o espaço fiscal agregado. Tudo isso somado a um cenário de desemprego e inflação. Se o governo não ancorar as expectativas quanto à qualidade da gestão fiscal, o país corre o risco de cair em um abismo fiscal com consequências imprevisíveis”, acrescenta.

O economista Simão Silber, professor doutor da Universidade de São Paulo (USP), reforça que a PEC dos precatórios ajudou na piora das projeções econômicas de 2022, que terá um cenário bastante desolador, e, por conta disso ele prevê que o PIB brasileiro não deverá crescer mais do que 1% no ano que vem. “O governo está em uma pressão muito grande para gastar mais e viabilizar a candidatura e parte também para uma crise institucional que aumenta a insegurança de todos e afugenta investidores”, alerta. “Aquele desfile de lata velha em Brasília foi um acinte aos Poderes da República”, afirma citando a parada de tanques velhos no último dia 10, além de lamentar o pedido de impeachment do ministro Alexandre Moraes do Supremo Tribunal Federal (STF). “Estamos vivendo um filme de terror”, resume.

Na avaliação da economista Silvia Matos, coordenadora do Boletim Macro do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), a demanda por aumento dos gastos sociais é legítima, mas a forma como o governo está conduzindo esse tema tem contaminado as expectativas do mercado. E, por conta disso, o dólar sobe e ajuda a pressionar ainda mais inflação, que continua elevada, e vai fazer o espaço extra do limite do teto encolher cada vez mais. “O teto de gastos é uma amarra para o Executivo e ele quer burlar demais as regras impostas, buscando saídas mais fáceis, permitindo gastos que deveriam estar dentro do limite do teto”, alerta.

Em artigo no Boletim Macro, os economistas do Ibre Juliana Damasceno e Bernardo Motta alertam que desconfiança do mercado com tal iniciativa já revela que o preço dessa cartada pode ser alto. “A já comprometida credibilidade das regras ficais vigentes parece ainda mais frágil quando considerado que o parcelamento de precatórios representa, em termos práticos, a impossibilidade de honrar nossos compromissos e uma carga de dívida futura ainda maior. O risco de sistematizar tal prática – criando uma bola de neve fiscal insustentável – não deve ser ignorado, sob pena de enterrarmos qualquer expectativa de consolidação fiscal”, destacam.

O economista Marcos Mendes, professor do Insper e um dos autores da regra do teto, também não poupa críticas ao parcelamento dos precatórios. “Que fique claro, então, que a opção por adiar pagamento de obrigações judiciais não é um imperativo. É uma escolha de política pública: priorizam-se algumas despesas em detrimento de outras”, escreve Mendes, em artigo recente.

Conforme dados que o ministro Paulo Guedes e o secretário especial do Tesouro e Orçamento, Bruno Funchal, comentaram ao longo dos últimos dias, ampliar o Bolsa Família para “algo perto de R$ 300” custaria cerca de R$ 30 bilhões a mais e esse recurso.  Segundo Guedes, essa despesa  “estava dentro das previsões do Orçamento de 2022”, que precisa ser enviado ao Congresso até o fim do mês, antes do “meteoro” dos precatórios.  O aumento de R$ 34,4 bilhões a mais sobre o valor previsto para essa rubrica no Orçamento deste ano, de R$ 54,7 bilhões, supera o espaço extra de R$ 30,4 bilhões, previsto inicialmente para a folga do limite do teto de gastos, considerando alta no INPC de 6,2%, será consumido integralmente.

Folga menor

O limite do teto de gastos para o Orçamento de 2022 foi reajustado de R$ 1,485 trilhão para R$ 1,161 trilhão, considerando o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumulado em 12 meses até junho, de 8,35%, Contudo as despesas obrigatórias — aposentadorias e benefícios — deverão ser reajustadas pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), que, de acordo com algumas estimativas recentes, poderá ficar acima de 8% ao fim do ano, e, portanto, reduzir a folga extra para o governo ampliar gastos para perto de zero, o que vem deixando a equipe econômica contra a parede.

Aliás, dentro da pasta não existe um consenso sobre a PEC dos precatórios, que, de acordo com um ex-ministro do Supremo, “é ilegal e inconstitucional”, inclusive, por mudar o fator de correção pela inflação para a taxa básica de juros (Selic), que é menor. “Isso não é bom. Esses credores já esperaram por muitos anos e a União não pode usar recursos de terceiros para custear o aumento da dívida pública com outras despesas”, alerta o jurista que citou um artigo recente do ex-ministro da Fazenda Antonio Delfim Netto que, segundo ele, explicou muito bem os problemas dessa PEC.

No artigo, Delfim Netto lembra que precatórios são dívidas de um ente público, reconhecidas pela Justiça e transitadas em julgado e, uma vez reconhecidas, a Constituição determina que constem do Orçamento federal para o pagamento no ano subsequente. O ex-ministro alerta para o aumento da insegurança jurídica e chama a saída encontrada pelo governo de “marotagem”.

“Seria certamente superior à marotagem do parcelamento aliado à criação de um fundo extra orçamentário —uma operação de caráter duvidoso e odor ainda mais eleitoreiro”, escreve Delfim Netto. “A opção pelo parcelamento nada mais é do que a decisão unilateral de utilizar recursos de terceiros para pagar elevação de despesas sem que Executivo e Legislativo tenham que decidir prioridades, elevando ainda mais a insegurança jurídica”, emenda.

Vale lembrar que, diante dessa confusão na área fiscal, os juros cobrados pelos credores nos títulos públicos estão em escalada e, até mesmo os papéis com vencimento de médio prazo, como os prefixados para 2026, já são negociados com taxas de dois dígitos, refletindo a piora na confiança do mercado. Apesar de ter sido enviada por Guedes ao Congresso Nacional em 10 de agosto, a proposta aguarda designação de relator na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados, desde o dia 13.

Vicente Nunes