Desde 1995, mais de 56 mil trabalhadores foram resgatados
“O reclamante nunca pegou em dinheiro, já entrou devendo, deixavam rancho para a família dele a preços exorbitantes e o tempo inteiro ele estava devendo, trabalhou anos e anos nessa fazenda nessas condições, assim como o pai e o avô dele, desde 1941”.
As palavras acima, do desembargador Vicente Malheiros da Fonseca, entraram para a história naquele 9 de dezembro de 1976, quando ele escreveu aquela que é considerada a primeira sentença no Brasil sobre trabalho escravo na Justiça do Trabalho. Discretamente, Fonseca marcou assim a trajetória da Justiça do Trabalho no país e, após mais de 48 anos dedicados à Magistratura do Trabalho, ele teve sua aposentadoria publicada no Diário Oficial da União, na última sexta (13/8).
O processo, da então Junta de Conciliação de Abaetetuba, localizada no nordeste do Estado do Pará, retratava, em vários aspectos, a realidade da exploração do trabalho na cultura da cana-de-açúcar em um período anterior à Constituição Federal de 1988, que ampliou a proteção dos direitos sociais para trabalhadores urbanos e rurais.
A histórica sentença, que ganharia repercussão internacional e seria fonte para diversas pesquisas acadêmicas, foi analisada pela juíza Luciana Paula Conforti, vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), na tese de Doutorado em Direito, na Universidade de Brasília (UnB). (https://repositorio.unb.br/handle/10482/35463). “O tema era tão inexplorado e as condições de vida e de trabalho tão desfavoráveis que os próprios trabalhadores ainda não tinham a consciência de que eram ‘escravos disfarçados’, destacando-se na sentença a importância do esclarecimento de direitos”.
Quase 45 anos depois, a exploração do trabalho forçado ainda é uma realidade no Brasil. Desde 1995, ano em que o Brasil reconheceu a existência do trabalho escravo no país perante às Nações Unidas, segundo dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil (Ministério da Economia), mais de 56 mil trabalhadores foram resgatados.
Uma exploração que não é restrita ao meio rural e nem à vida adulta. Operação recente do Grupo de Exploração Móvel iniciada no último dia 11 de agosto, resgatou duas pessoas vivendo em condições análogas à escravidão em uma fazenda no município de Formosa (GO), no entorno do Distrito Federal.
Uma delas, um adolescente de 15 anos, ambos vivendo em ambiente sem água encanada, energia elétrica, juntamente com familiares, incluindo cinco crianças, nas proximidades de uma mineradora de calcário.
Para a juíza do Trabalho Luciana Conforti, o remanescente estado de exploração do crime na atualidade revela que, em que pese o Estado Democrático de Direito ser reconhecido como o mais evoluído na dinâmica dos direitos humanos, vê-se que a constante capacidade de renovação e transformação do capitalismo impõe a racionalidade do mercado, uma suposta “modernidade”, que passa a justificar, cada vez mais, o aumento das desigualdades.
“O quadro de exclusão social que afeta milhões de brasileiros, concentrando a riqueza nas mãos de parcela ínfima da população, o alto índice de desemprego e a carência de oferta de postos de trabalho devem ser sopesados na compreensão do trabalho análogo a de escravo e respectiva apreciação dos casos pelo Poder Judiciário”, ressalta.
Nessa linha, a vice-presidente da Anamatra defende a importância de que o conceito de trabalho análogo ao de escravo, previsto no art. 149 do Código Penal, seja mantido para a proteção do trabalho digno e não, apenas, da liberdade de ir e vir. Projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional caminham em sentido contrário, retirando as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva do tipo penal.
“Isso nos traz muita preocupação, porque, na verdade, desatualiza o conceito com relação às práticas contemporâneas. Os casos de escravização de trabalhadores ainda são comuns, geralmente pelas modalidades trabalho degradante e servidão por dívida. O arcabouço jurídico não pode retroceder”, aponta.
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