Renata Gil de Alcântara Videira é a primeira mulher a ocupar o cargo de presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), desde a criação, há 70 anos
Foto: Marcelo Cardoso
Ela teve também o maior número de aprovação da história – 6.584 votos (80%). Na associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, ela também foi a primeira mulher a assumir a presidência (2016 a 2017). Renata Gil faz parte do grupo de trabalho, no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que institui a política nacional de incentivo à participação feminina no Poder Judiciário. Ela assume em 11 de dezembro com o principal desafio de unir a magistratura, estabelecer o diálogo com o Executivo e o Legislativo e eliminar as barreiras de comunicação com a sociedade, a começar pela simplificação da linguagem. Sucessora direta do ex-presidente, Jayme Oliveira, Renata destaca que sua gestão “vai ser firme e forte, como tem sido”.
Em relação à inclusão dos magistrados em um possível pacote de mudanças administrativas, ela informa que já está conversando com as partes para apontar as inconstitucionais. “Estamos em interlocução com o governo e com o parlamento, para explicar que questões referentes à magistratura têm proteção constitucional. Quando se mexe na estrutura do Poder Judiciário, alterando salários, forma de acesso ou estabilidade, se mexe na proteção da sociedade”, explica. Magistrados têm prerrogativas especiais que devem ser obedecidas, diz. “Não é questão de privilégio, é questão de proteção do Estado”. Apesar da crise econômica e do ajuste fiscal, a classe insiste no direito à correção anual dos subsídios. Além da reivindicação a prêmios quinquenais para diferenciar o salário de quem entra e de quem está prestes a se aposentar.
Sendo a primeira mulher a assumir um cargo dessa relevância, aos 70 anos da entidade, como a sra. se sente?
Muito orgulhosa. Na representação das mulheres, no momento em que o Brasil discute a ascensão feminina, a voz da mulher na sociedade. Além dessa honrosa função de representar os 18 mi juízes brasileiros. Escuto muito que na iniciativa privada, ainda se nota muita diferença de salários. E no serviço público, nos cargos de maior relevância, as mulheres não ascendem ainda. Agora, as estruturas institucionais já estão discutindo os motivos desses entraves, alguns visualizados e outros invisíveis. O CNJ criou uma comissão para intensificar a Resolução 255, que trata exatamente da participação feminina no Poder Judiciário. Faço parte dessa comissão. Sou chamada há muito tempo a falar sobre aumento do feminicídio e do subregistro desse crime. Como sou juíza criminal, tenho acompanhado essas discussões também no âmbito carcerário.
A sra. já atua em Brasília?
Desde 2008, tenho atuado fortemente, tanto em relação ao movimento associativo, como no trabalho de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Sou integrante da Estratégia Nacional de combate à corrupção e à lavagem de dinheiro. Fui a primeira juíza estadual a participar do movimento que criou a estratégia anticrime. O juiz Sergio Moro (atual ministro da Justiça) trabalhava conosco, além do juiz Fausto de Santis, com a Receita Federal, Coaf (que hoje é o IFI). Todos esses órgãos sempre em conjunto, construindo as políticas e o fortalecimento das instituições, de acordo com os tratados internacionais que o Brasil subscreveu, ou seja, com os seus compromissos internacionais. E agora, minha vida em Brasília vai ser muito mais ativa no parlamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), no CNJ, em alguns órgãos da república que a magistratura tenha que ter essa interlocução. Tenho um trânsito muito bom em Brasília.
A magistratura e o Poder Judiciário (e também o Ministério Público) de forma geral parecem abalados na credibilidade, por vários fatores. Até o pacote anticrime do juiz Sérgio Moro não foi totalmente acatado pelo Parlamento. Como será sua atuação nesse campo nebuloso agora?
Na verdade, não estamos em condição de suspeição. Estamos vivendo uma retaliação, em razão da atuação firme e independente dos juízes brasileiros. Isso é natural. Eu tenho dito que as instituições brasileiras democráticas estão consolidadas, que não há espaço para retrocessos. Todas essas tentativas de inibição, de constrangimento, da atuação dos juízes e de outras instituições responsáveis pelo combate às organizações criminosas serão possivelmente barradas pela força que o Poder Judiciário tem. E não sou eu que estou dizendo isso. As nossas prerrogativas estão entabulada na Constituição. Não como proteção ao poder, mas como proteção da sociedade.
Na sua gestão, como vai ser a atuação da AMB?
Vai ser firme e forte como ela tem sido. A AMB hoje é uma grande interlocutora da sociedade. Estamos produzindo documentos importantes para a história da nação brasileira. Uma pesquisa que acabamos de desenvolver, “Quem somos e a magistratura que queremos”, tem a apresentação de como o Judiciário pensa e como ele está estabelecido e consolidado hoje no país. Nós somos chamados em todas as audiências públicas, no Parlamento, no Supremo, para debater questões atinentes a magistratura. Como deve ser. Em determinados países, como Portugal, nenhum projeto de lei que toque em assunto relativo ao Judiciário pode ter seu andamento sem que a associação sindical seja ouvida antes. Esse papel hoje é exercido pela AMB de forma muito voluntária, é um reconhecimento do papel a AMB. E nossa ideia é que esse papel se fortaleça a cada dia
A sra. falou em ataques e retaliações, por causa de investigações e decisões que envolvem combate à corrupção. Mas a reforma administrativa pode trazer mudanças (salários de acesso, mobilidade, novos cargo pela CLT, entre outros) que também serão impostas ao Judiciário. Como vai ser a relação nesses pontos com o Executivo e o Legislativo?
Pelo que ouvi nos jornais, parece que ela (a reforma) arrefeceu. O que se diz é que o governo teria reformulado o ânimo da reforma administrativa, muito em razão do que tem acontecido no Chile, e depois também dessa reforma da Previdência. Embora haja uma sinalização grande do presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), de intenção mais severa de aprofundar a reforma administrativa. Nos já estamos em interlocução com o governo e com o parlamento, para explicar que questões referentes à magistratura têm proteção constitucional. Qualquer medida que venha em um pacote desses de governo tem que ter uma interlocução com o Judiciário. Quando se mexe na estrutura do Poder Judiciário, alterando salários, forma de acesso, estabilidade, se mexe na proteção da sociedade. Se tem um juiz com instabilidade funcional, se ele perder aquelas garantias que foram pensadas como proteção, a sociedade fica exposta.
Como está sendo feita essa relação?
O trabalho que temos feito é de expor que os membros de poder precisam ser protegidos, porque isso é uma proteção da sociedade. Vamos francamente entrar no debate e dizer o que é e o que não é possível. Já temos uma grande distinção na carreira da magistratura, que é vitalícia, e que deve ser igual para todos os seus níveis: aposentados e iniciantes. Já houve uma quebra dessa paridade, dessa vitaliciedade, com algumas pela reformas constitucionais. Os que entraram depois de 2003 têm regime previdenciário diverso (Funpresp). E aposentados não tem as mesmas garantias dos que estão na ativa. Isso tudo precisa ser repensado. A força do Estado brasileiro vai ser diminuída se continuarmos a atacar os seus pilares. Não é questão de privilégio, é questão de proteção do Estado.
A Frente associativa da Magistratura e do Ministério Público (Frentas), desde 2015, defende distinguir o subsídio dos que entram e dos que estão há anos na função, por meio de uma majoração nos ganhos, de 5 em 5 anos – o que seria ressuscitar os quintos constitucionais extintos por FHC. Diante da crise econômica e de milhões de desempregados, a pauta se mantém?
Continua. Isso é importantíssimo para a carreira e vou dizer porquê. Tem que haver alguma diferencia para o que entra no início da carreira e aquele que a deixa. O juiz não tem regime igual ao do trabalhador. Não recolhe Fundo de Garantia (FGTS), não regime de horário de trabalho igual ao de outro servidor. A gente leva para casa os nossos problemas. A função de julgar é bastante imaterial. Se concretiza em um determinado momento, mas a gente tem que burilar tudo até entregar para aquela pessoa que buscou a justiça. Então, todo esse regime diferenciado gera distinções que precisam ser respeitadas. Defendemos, ao longo da carreira, o ATS (Adicional por Tempo de Serviço), que a gente chama de VTM (Valorização por Tempo na Magistratura), que está em uma PEC (PEC 63). É muito importante para o incentivo ao magistrado. Ele não pode chegar aos 20 ou 30 anos de carreira com exatamente o mesmo salário daquele que acabou de entrar.
Não seria, então, o caso, como defende o governo, de reduzir o salário de entrada?
O governo tem essa sugestão. Só que tem uma situação que já é consolidada para 18 mil juízes. Não se pode mexer. E a gente também vai apresentar informações sobre a necessidade de uma remuneração condigna, por todas as limitações que a carreira tem e de não termos determinados benefícios sociais
Penduricalhos que permitem que alguns ganhem por mês mais de R$ 600 mil, devido a atrasados que aguardam o tribunal ter recursos suficientes. Isso já não é uma compensação ao FGTS, por exemplo? Inclusive os juízes federais não têm?
Hoje o portal da transparência de qualquer tribunal pode ser acessado e aferido. Em determinadas situações, alguns magistrados tem verbas indenizatórias que recebem, as vezes, de uma só vez. Mas pelas decisões recentes do CNJ esses recebimentos não estão mais permitidos. Isso aconteceu no passado. Há verbas que estão consolidadas na Lei Orgânica da Magistratura (Loman), caso do auxílio-moradia que foi extinto. Há verbas que ainda não são universais. Nosso trabalho é de equalização, com relação aos federais e aos estaduais. Os federais também têm algumas verbas diferentes da dos estaduais: quando magistrados federais fazem mudança tem direito a essa verba de remoção, o que o estadual não tem. Algumas diferenças nas carreiras precisam ser equalizadas. A AMB tem feito esse trabalho junto ao conselho nacional.
E a redução das férias de 60 para 30 dias, outro item da reforma administrativa, para igualar os magistrados aos demais cidadãos, que só tem um mês? Há reclamações, inclusive, de que juízes vendem uma delas e embolsam o dinheiro. Ganham duas vezes porque recebem as férias e o salário?
Há PECs com essa proposição. Isso foi cogitado em tese na reforma administrativa. Se alguns magistrados não fazem uso dos 60 dias, isso é exceção. Em geral nós fazermos uso por necessidade. Nós da AMB sustentamos que a profissão do magistrado é de risco. Tanto assim que tivemos inúmeros casos de vítimas. É uma profissão absolutamente estressante. A sociedade precisa entender que, como a magistratura é teto remuneratório, está distante do piso, o salário mínimo. Isso gera incompreensão, em um país com milhões de desempregados, em que há uma enorme desigualdade social. Discussão que precisa ser enfrentada pelo governo brasileiro. Em todos os países, categorias têm remuneração diferenciada. Somos membros de poder e responsáveis por entregar a sociedade a resposta de uma última porta, de uma última via. É sempre o juiz que vai tratar da ação de improbidade, das grandes questões nacionais. Então, tem que ter uma diferenciação. E isso não foi invenção nossa. Está na Constituição.
O que fazer para a população entender o significado de lei e de justiça. A sociedade mudou muito. Hoje se vive um clima de ódio. Nesse contexto, é possível conciliar o que a lei determina e a sensação de injustiça pessoal ou familiar?
O Poder Judiciário vai ser bem compreendido quando ele for bem conhecido pela sociedade. A gente nota até em determinados embates que os próprios parlamentares, principalmente os recentemente eleitos, não conhecem como funciona a estrutura interna. Outro dia mesmo no debate sobre a permuta de juízes, um parlamentar me perguntou por que a queremos por meio de PEC e não pedimos também para os servidores. É discriminatório, disse o parlamentar. Ai explicamos que os servidores já têm esse direito. E o nosso sistema está na Constituição, por isso, a gente precisa de PEC. Isso demonstra um completo desconhecimento. Esse distanciamento é o nosso grande desafio. E fui eleita por todos os estados brasileiros com recorde de votos. Conheço todos os estados. Sei detalhes de cada região. Temos juízes maravilhosos, histórias maravilhosas e funcionamento da Justiça de acordo com as diferentes realidades. É isso que a gente precisa mostrar.
E como será mostrado?
A gente ainda não conseguiu apresentar para a sociedade esse trabalho, que é artesão. Tem números, tem produtividade, que o conselho nos cobra. É um trabalho muito intelectual e muito artesanal. Então o nosso desafio, como AMB, é diminuir esse distanciamento com uma forma de comunicação mais direta. Temos as dificuldades de linguagem, já detectamos, e vamos pelo menos apresentar à sociedade um trabalho mais efetivo. O tempo do processo ainda não é o que nós esperamos. Por quê? Grande número de recursos e o funcionamento burocrático da máquina. São desafios que, eu como presidente da AMB, quero trazer à discussão e apresentar para o Conselho Nacional e para os tribunais .
A AMB é a maior associação de magistrados (estaduais e federais, do trabalho, criminais). Mas também vive em clima de divisão interna, arrependimentos e vaidades. Como a presidente vai lidar com esses sentimentos contraditórios?
Meu discurso interno e externo é de unidade. Sou uma pessoa agregadora por natureza. O que eu puder fazer para diminuir essa belicosidade, vou fazer. Existem, de todos os lados, pessoas de bem, comprometidas com o nosso bem maior. Nós somes o Estado brasileiro. Somos Brasil. Queremos o fortalecimento da nossa soberania. E eu quero que o Judiciário brasileiro seja referência mundial. Já considero que temos os melhores juízes do mundo, pelo eu visito, pelo que eu conheço do sistema de justiça dos outros países. Então, minha ideia é agregar e unir.
Qual vai ser, para 2020, o percentual proposto de aumento dos subsídios?
Não teremos reajuste porque o Supremo não entregou o pedido, atendendo a regulamentação da limitação de gastos (a lei do teto). Há um percentual histórico a ser considerado, em torno de 16% – que não foram concedidos ao longo dos últimos anos. Teve um reajuste em 2016, mas não contemplou toda a defasagem. É importante dizer que esse não é um pedido que o Poder Judiciário faz porque quer. O nosso regime de teto remuneratório, estabelecido na Constituição, prevê uma correção anual conforme artigo 39.
Mesmo em momento de crise?
Sim. Senão a Constituição faria essa ressalva. Mas não fez exceção. O governo, por questões financeiras, teve que aplicar uma redução e o Poder Judiciário obedeceu. Tanto que não enviou o pedido de reajuste. Mas há uma defasagem.
Essa é uma das questões que a sociedade não entende: entre o que a lei diz e o que é justo.
Exatamente. E está escrito. A recomposição do subsídio existe exatamente como proteção à independência do magistrado. Ele não pode ficam refém de pedir ao parlamento. Pela independência dos poderes, a Constituição previu que o Parlamento tem que fazer essa revisão. Lutaremos firmemente pela independência. Esse é o maior valor, o mais precioso, é a nossa joia rara.
Quais são os três itens que a sra. destacaria como mais importantes para sua gestão?
Se você trabalhasse internamente na AMB, ia ficar assustada com o volume de leis e PECs que alteram todo funcionamento do Poder Judiciário. Desde questões de competência, voltando atrás questões estruturais, o que ocasionaria, inclusive, mais gastos para o Estado brasileiro, em razão das despesas que teria para implementar as medidas. Essas peças vêm de parlamentares de diversos partidos. Cada um enxerga a Justiça de uma determinada forma e não há uma concentração ou nenhuma interlocução racionalizada para apresentação dessas PECs.
A que a sra. atribui essa profusão de PECs?
Falta de organização das pautas do Judiciário. A cada semana, somos surpreendidos com novas PECs, novos projetos de lei, ou desarquivamento de propostas que estão lá há 10 ou 15 anos e que imaginávamos que não fôssemos voltar a discutir. Só um exemplo: a lei de abuso de autoridade estava em dois diplomas legislativos. Nas 10 medidas anticorrupção. Veja: uma coisa completamente incompatível com o projeto do ministro Sérgio Moro. E tivemos esse item na própria lei do abuso, há dois anos parada, apesar de toda tentativa parlamentar em trazer à tona essa discussão no momento indevido, em que se avança nas investigações da Operação Lava Jato. No tema, por exemplo, da vitaliciedade e da irredutibilidade, a gente tem PEC. Às vezes tem uma PEC tramitando no Senado e outra na Câmara. É muito difícil trabalhar de forma organizada. É quase um trabalho de apagar incêndio que a AMB tem feito. Nesse momento de enfrentamento à corrupção, por que não sentarmos todos e discutirmos o que é importante? Isso ainda não aconteceu. Às vezes, somos surpreendidos com pedidos de urgência e temos que correr para o Parlamento. É muita energia com essa parte defensiva. Muitas leis contém inconstitucionalidades que poderiam ser sanadas em um diálogo franco e aberto. Não conseguimos estabelecer um diálogo porque a intensidade dos projetos de lei aumentou.
Porque houve esse recrudescimento?
Eu atribuo ao momento em que o Judiciário é vitrine. É protagonista de um processo anticorrupção no país. Isso me parece muito claro. E isso foi dito pelos senadores na aprovação da lei do abuso de autoridade, que a gente chama de lei da impunidade. Eles foram ao púlpito dizer que por questões de processos pessoais, deles, achavam que era a hora da aprovação da lei. A gente teve o incidente da busca e apreensão do gabinete do líder do governo que a acabou gerando a queda de todos os vetos que teriam sido apresentados pelo governo. Então, isso é muito sintomático na ação do Poder Judiciário.
É possível ter uma integração nesse clima?
É possível. Nos temos grandes homens na República. Eu acredito no estado brasileiro e na força das instituições, nos seus homens. As instituições são comandadas por homens. E esses homens são brasileiros imbuídos de espírito público, de manter o país nos trilhos, de manter o país no caminho certo. Com esses homens, nós queremos dialogar.