Patrick Selvatti
O Multishow estreia, nesta segunda-feira (18/9), um novo produto que vem para reafirmar a linha de humor bem-sucedida que o canal adotou como um dos seus maiores carros-chefes, a partir do sucesso do Vai que cola. Ambientada em uma academia de ginástica localizada no Bom Retiro, em São Paulo, a também sitcom Tem que suar traz um elenco robusto encabeçado por Mariana Xavier e Marcelo Serrado.
Intérprete icônica de Marcelina na trilogia Minha mãe é uma peça, Mariana Xavier encara o desafio de viver a primeira protagonista: Tuca, uma carioca loura e bronzeada que herda o negócio fitness na capital paulista. A atriz tijucana celebra a oportunidade de quebrar o estigma de que mulheres com o corpo fora do padrão estético pré-estabelecido pela sociedade não podem ser mocinhas de uma obra de teledramaturgia. Entretanto, ao ser convidada para o papel pelo canal e pela Floresta, produtora da série, ela admite ter ficado desconfiada, em um primeiro momento.
“Um programa que se passa numa academia de ginástica, com uma atriz gorda como protagonista, a gente acaba imaginando todas aquelas piadas horrorosas que a gente viu por aí há anos. E eu topei entrar no projeto justamente porque a proposta era diferente, vem fazer um tipo de humor que não machuca ninguém, que não vem para ridicularizar as pessoas”, comemora Mariana, que pontua o fato de que a personagem ser gorda não é um traço citado em nenhum momento do texto desenvolvido por Erick Andrade e Cris Werson.
Para a geminiana de 43 anos, essa é uma forma importantíssima de combater preconceitos contra as chamadas minorias. “Temos que normalizar a existência desses corpos em todos os espaços, fazer essas pessoas estarem ali, na academia, no carnaval, na praia, em qualquer lugar sem que a gente precise grifar isso. Tipo: ‘olha temos um cadeirante no carnaval…’ Não, ele simplesmente está ali se divertindo, curtindo à maneira dele, dentro das possibilidades dele”, defende.
Mariana argumenta que Tuca traz uma mensagem de empoderamento não tão explícita. “Talvez seja só uma mulher que está do outro lado da tela, assistindo ao programa, me ver com aquela roupa, me achar bonita e falar: Olha, eu também posso usar e me sentir bonita com uma roupa de academia”, resume a intérprete da Jenifer no clipe do hit homônimo do finado cantor Gabriel Diniz.
Em contraponto, a Marcelina — trabalho de maior repercussão de Mariana Xavier — é um papel que carrega o estigma de gordofobia. A atriz reconhece a importância e é grata à personagem que transformou sua carreira, mas admite que a filha de dona Hermínia trouxe situações muito desagradáveis. “Porque as pessoas têm a musicalidade do Paulo Gustavo e as cenas do filme na cabeça. E elas acham muito divertido gritar comigo na rua frases que ele dizia. Palavras constrangedoras e vexatórias que, se nem a Marcelina ficava confortável ouvindo aquelas coisas, a Mariana muito menos”, desabafa a atriz.
Intérprete também da Gordelícia, de I love Paraisópolis (2015), e da modelo plus size Biga, de A força de um querer (2017), Mariana Xavier destaca que não acredita mais nesse tipo de humor que humilha seres humanos. “Tenho certeza de que, hoje, se estivesse vivo, nem o Paulo escreveria coisas assim”, afirma ela, que se emociona ao mencionar o grande amigo, falecido em 2021 em decorrência da covid-19.
Como foi o processo que resultou na sua confirmação como protagonista de Tem que suar. Foi um convite direto a você ou você teve que suar pra levar o papel?
Excepcionalmente, foi um convite direto. É um projeto que já estava aprovado pelo Multishow, faltava uma protagonista e eu fui procurada pela Floresta, que é a produtora, já com esse convite. Porque eles entendiam que dentro da proposta do programa, essa coisa de ser uma academia, onde todos os corpos fossem bem aceitos, eles entenderam que eu era a pessoa ideal para essa mensagem. Eu fiquei muito honrada, mas, num primeiro momento, confesso que desconfiada. Porque eu pensei: Meu Deus, um programa que se passa numa academia, com uma atriz gorda como protagonista… A gente acaba imaginando todas aquelas piadas horrorosas que a gente viu por aí há anos. E eu topei entrar no projeto justamente porque a proposta era diferente. Justamente porque o Tem que suar vem fazer um tipo de humor que não machuca ninguém, que não vem para ridicularizar as pessoas. E foi essa a minha condição. Eu tive uma conversa com eles e com o canal, falando sobre o quanto hoje eu me encontro num lugar de privilégio de poder escolher quais projetos que eu vou fazer e, principalmente, quais projetos eu não vou fazer e que, embora eu goste muito de fazer televisão, eu só queria voltar pra televisão se fosse com um projeto em que eu realmente acreditasse, que estivesse alinhado com o meu pensamento. Enfim, eu não tive que suar para conseguir o papel, mas pra desenvolvê-lo, sim…
E qual foi o maior desafio dessa empreitada? Tem algum perrengue pra contar?
Cara, o maior desafio foi o formato, né? Porque é muito cansativo, gente. A gente gravava três episódios por semana. Então, é como se fosse três peças para decorar por semana. Era uma rotina bem exaustiva, saindo de casa de segunda a sexta, às sete da manhã, voltando às oito da noite. E como a série se passa numa academia, além de decorar o texto, tinha muita coisa física, muitas coreografias, muitos exercícios. E a gente tinha que conciliar esse falar bem o texto com não se perder nos movimentos, porque, quando corta a cena e volta, você tem que voltar do mesmo ponto. E onde é que estava o braço? Onde é que estava a perna? A primeira semana foi um perrengue grande para mim. Eu entrei em desespero, eu achei que eu não ia saber fazer aquele tipo de humor. A gente começou a gravar por um episódio aleatório, que era o episódio mais insano da temporada. Era um episódio em que eles ficam completamente alucinados, todos os personagens. Então, era um tipo de humor, de humor físico, de uma galhofa que eu não estou acostumada a fazer. Eu não me sinto confortável. Então, me deu um desespero porque eu falei: ‘Meu Deus, eu não sei nem como é que é essa essa personagem em estado normal, como é que eu vou fazer ela alucinada?’ Inclusive, estou muito curiosa pra ver esse episódio.
Tem que suar traz uma mensagem de empoderamento muito forte. Como você se sente nesse lugar privilegiado de ser uma atriz fora do padrão estético pré-estabelecido surgindo como uma loiraça bronzeada e gostosa mandando ver como a dona do pedaço?
Eu acho que é muito importante. Eu fiz um vídeo nas minhas redes sociais falando sobre isso, sobre quão significativo é ter alguém com o meu corpo, que é um corpo absolutamente normal, muito parecido com a maioria das pessoas que a gente vê aí pela rua, ocupando um lugar desse. E o que é legal é que o meu corpo não é mencionado em nenhum momento, e eu sempre falei isso, que eu acho que é uma forma muito importante de a gente combater certos preconceitos. E isso se refere a qualquer um desses grupos minorizados: pessoas gordas, negras, trans, com deficiência. Uma forma importantíssima de combater esses preconceitos é normalizar a existência desses corpos em todos os espaços, ou seja, fazer essas pessoas estarem ali na academia, no Carnaval, na praia, em qualquer lugar sem que a gente precise grifar isso, sem que a gente precise olhar e dizer: Olha, um cadeirante no carnaval! Não, ele simplesmente está ali se divertindo, curtindo à maneira dele, dentro das possibilidades dele. Eu acho que com a Tuca é isso, eu acho que a mensagem de empoderamento talvez nem seja tão explícita. Talvez seja só uma mulher que está do outro lado da tela assistindo ao programa me ver com aquela roupa, me achar bonita e falar: Olha, eu também posso usar, eu também posso me sentir bonita com uma roupa de academia!
Mas a Marcelina é um papel que carrega o estigma da gordofobia. ..
Essa é polêmica (risos). Porque a Marcelina é importantíssima na minha vida e eu sou extremamente grata a esse projeto. Foi ele que me revelou para o Brasil. Mas, paralelamente a isso, a Marcelina também me fez e ainda me faz passar por situações muito desagradáveis. Porque as pessoas têm a musicalidade do Paulo Gustavo na cabeça e as cenas do filme. E elas acham muito divertido gritar comigo na rua frases do filme, que são frases constrangedoras e vexatórias. Se nem a Marcelina ficava confortável ouvindo aquelas coisas da dona Hermínia, obviamente, a Mariana muito menos.
Acredita que, hoje, dez anos depois, esse tipo de comédia ainda vale?
Eu não acredito mais nesse tipo de humor. Tem uma amiga minha, que é escritora e diz que a arte serve pra mostrar a vida como ela é, e não como a gente gostaria que ela fosse. Eu não acho que a dramaturgia precisa ser higienizada, digamos assim, nesse sentido de “todo mundo agora, todos os personagens são ótimos, são letrados sobre todas as questões politicamente corretas e ninguém mais comete nenhuma gafe, ninguém fala mais nenhum preconceito”… Não é isso, mas eu acho que a forma como isso é mostrada tem que ser em alguma medida, educativa. Essas coisas não podem mais ser mostradas em um lugar de validação. Quando a gente tem uma racista, gordofóbica, lgbtfóbica, a gente precisa entender que aquilo está errado. Marcelina e Dona Hermínia retratam muitas mães que fazem isso com suas filhas. Ouço testemunhos de que, muitas vezes, os primeiros episódios de constrangimento, body shaming e pressão estética acontecem dentro de casa, porque as pessoas não percebem que foram vítimas desse preconceito e continuam reproduzindo aquilo. Existem, muitas Hermínia e Marcelinas, então temos que continuar mostrando, mas de uma outra forma. Acho que, se [o filme] Minha mãe é uma peça 1 fosse escrito hoje, nem o Paulo Gustavo escreveria daquela maneira. O filme 3 é muito mais consciente e engajado, pode comparar.
E o que o Paulo Gustavo representa pra você?
Eu acho que as pessoas também não fazem ideia de quanto me dói cada vez que elas vem falar comigo alguma coisa sobre Dona Hermínia e Marcelina porque me lembra que ele não está mais aqui. É uma coisa difícil de acreditar e eu sempre falo isso. Às vezes, parece que foi um pesadelo, eu vou acordar e ele ainda vai estar aqui me mandando um WhatsApp falando alguma bobagem. Ele, para mim, acho que é uma porta aberta para o mundo. Eu sou muito grata pelo que o Paulo fez por mim quando ele me escolheu para fazer a Marcelina, por ele ter enxergado em mim o potencial. Mais do que isso, não só ter me dado essa oportunidade, mas um suporte enorme com muitos incentivos ao longo de todo o processo do filme, tanto das filmagens quanto da edição. Eu, às vezes, acordava e tinha um áudio do Paulo do meio da madrugada na edição falando: ‘Amor, estou aqui na edição, estou mandando essa mensagem só para você saber que você está foda, que você é maravilhosa, que o Brasil vai saber que você é maravilhosa!’ [suspira] Eu me sinto herdeira do amor que as pessoas têm por ele. E me sinto também com a responsabilidade de seguir espalhando no mundo as sementes que ele deixou aqui: de a gente ser livre pra ser quem a gente é, manifestar nossos amores e realizar nossos sonhos.
Aos 43 anos, você é vista como uma mulher bem mais jovem, talvez até pela Marcelina. É algo que te incomoda?
Não! Não é questão de incomodar, mas o que eu tenho questionado é por que que dizem que eu não pareço 43 anos. Tipo, que imaginário é esse que a gente tem sobre as mulheres de mais de 40 anos? Como essas mulheres continuam sendo representadas na mídia? Porque eu acho que a gente está com uma imagem ultrapassada. Eu vejo mulheres de 40 que tem caras “mais jovens”, que se cuidam, que têm uma super autoestima, um astral maravilhoso, que estão altamente produtivas. É só mais uma provocação. Porque o que me incomoda é que, como atriz, eu acabo ficando num limbo porque não me escalam para personagens da minha idade, e eu adoraria ter a oportunidade de fazer personagens mais compatíveis com a vida ou com a maturidade que eu tenho hoje. E eu fico nesse limbo, porque, ao mesmo tempo, para papéis muito mais jovens também não me escalam, porque não tenho mais a inocência no olhar de uma menina de 25. Eu questiono esse lugar em que a gente reforça o etarismo.
Você esperou e batalhou por esse espaço de protagonismo ou ele simplesmente aconteceu e você recebeu com alegria?
Eu acho que é um misto dos dois. Na verdade, eu nunca mirei numa protagonista. Porque há todos os estigmas que a gente ainda vê no mercado e eu achava muito improvável que eu chegasse a esse lugar da protagonista. Eu nunca tracei metas muito grandiosas assim. Eu nunca fui essa pessoa, mas eu sempre agarrei cada pequena oportunidade que me apareceu como uma grande oportunidade na minha vida. Não existe papel pequeno se você está contando uma grande história. A minha meta era só viver dignamente da minha profissão. O que eu acho que, no Brasil, já é um luxo enorme. Eu tenho muitos amigos extremamente talentosos, estudiosos, com formações mais ricas do que a minha e que não conseguem pagar as próprias contas vivendo de arte. Então, era só isso que eu queria. Hoje, eu cheguei muito mais longe de onde eu imaginava chegar. Mas, eu acho que ir vivendo dia após dia, fazendo o meu melhor, usando a minha voz pra fazer essas provocações, de fazer as pessoas pensarem um pouco fora da caixa, ampliarem a sua visão, entenderem que eu não sou uma atriz gorda, eu sou uma atriz que posso fazer papéis independente do meu corpo. E a Tuca é uma grande vitória, não só por ser protagonista, mas não ser motivo de chacota, e creio que muitos irão sentir o mesmo. Ser protagonista não é só o que importa, porque as histórias precisam ser contadas. E a nossa profissão tem idas e vindas, não se vive só de protagonismos e sucessos.
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