O engenheiro civil aposentado Fernando Machado tinha apenas 7 anos quando, em 1950, a televisão chegou ao Brasil. Mas isso não impede que ele se lembre da primeira imagem que ele e muitos brasileiros, atônitos e admirados, viram.
“A imagem de atriz mirim Sonia Maria Dorce, então com 6 anos, vestida de índia, representando o mascote da TV Tupi ficou congelada no meu cérebro até hoje, 70 anos depois, tal a importância que dei ao acontecimento. E ela proferiu apenas uma frase: “Boa noite, está no ar a televisão do Brasil”, conta Fernando, em entrevista ao Próximo Capítulo.
Essas e outras memórias, contadas de maneira informal, como numa deliciosa conversa, estão no livro de memórias Gastura — Rastreando as profundezas da mente, que Fernando acaba de lançar pela editora Viseu. “(a chegada da televisão) foi um marco importante na vida de todos os brasileiros e, em particular na minha, pela oportunidade de ter sido testemunha ocular do acontecimento, início de uma nova forma de entretenimento e de acesso, agora visual e sob uma perspectiva inovadora, às notícias que tão prematuramente me atraíram”, completa.
A obra tem como espinha narrativa as Copas do Mundo, paixão brasileira tão forte quanto a televisão. Na entrevista a seguir, Fernando fala mais sobre a relação dele com a telinha e conta quais foram alguns acontecimentos importantes da vida dele acompanhados pela televisão. Confira!
O senhor viu a TV chegar ao Brasil. Qual foi o impacto desse acontecimento?
Eu tinha apenas 7 anos quando a televisão chegou ao Brasil. A imagem de atriz mirim Sonia Maria Dorce, então com 6 anos, vestida de índia, representando o mascote da TV Tupi ficou congelada no meu cérebro até hoje, 70 anos depois, tal a importância que dei ao acontecimento. E ela proferiu apenas uma frase: “Boa noite, está no ar a televisão do Brasil”.
Foi um marco importante na vida de todos os brasileiros e, em particular na minha, pela oportunidade de ter sido testemunha ocular do acontecimento, início de uma nova forma de entretenimento e de acesso, agora visual e sob uma perspectiva inovadora, às notícias que tão prematuramente me atraíram.
Qual a importância da TV para a formação da sociedade brasileira nessas seis décadas?
Na opinião de um homem comum que ousou fazer sua autobiografia para servir de linha de tempo e descrever fatos históricos com a emoção percebida na hora dos acontecimentos, a televisão foi fundamental, tanto para a boa como para a má formação da sociedade. Para mim, a televisão funcionou como uma droga de potencial fraco. Nos primeiros anos de uso a televisão, em um casamento muito bem sucedido com o rádio, ofereceu conteúdo de entretenimento e informação; assisti-la, na década de1950 até meados da década de 1960, provocava um prazer inesquecível. Quem viveu essa época e não se lembra do programa infantil O Sítio do Pica-Pau Amarelo (1952); do seriado romântico Alô Doçura (1953), com Eva Wilma e John Herbert; do programa de perguntas e respostas O céu é o limite (1952), com Aurélio Campos em São Paulo e Jota Silvestre no Rio de Janeiro; e do informativo Repórter Esso (1952), com Kalil Filho, perpetuando os famosos slogans “o primeiro a dar as últimas” e “testemunha ocular da história”?
E depois desse início?
A partir daí até o final da década de 1970, o prazer foi trocado pela emoção e a expectativa, uma vez que o conteúdo foi sobretudo político, ativando o patriotismo da população e, em particular dos adultos jovens como eu. Com os ânimos exacerbados, pela sequência de fatos políticos imprevisíveis (a renúncia de Jânio Quadros; a deposição de Jango, o Golpe Militar, a indefinição da Guerra do Vietnã, a revolta dos estudante na França; a batalha da rua Maria Antônia em São Paulo; o 30º congresso ilegal da UNE em Ibiúna), os jovens reagiram de forma cada vez mais contundente e a divergência de opiniões acabou por dividi-os em engajados e alienados. A televisão brasileira foi atuante, nesse período, patrocinando vários festivais de MPB, imortalizando as canções de protesto contra o Regime e transformando as apresentações em verdadeiros happening entre jovens de esquerda e de direita. Assim, a programação televisiva, nas décadas seguintes e até onde eu pude acompanhar, também seguiu o script, criando espaços para os engajados e espaços para os alienados e, com seu alto poder de persuasão, ajudou a formar a sociedade.
É possível contar a história do mundo por meio da TV? Foi assim que o senhor acompanhou muitos acontecimentos?
Sem dúvida. Os registros históricos televisivos são muito mais autênticos do que os proporcionados pela internet, uma vez que começaram muito anos antes. Comecei a me inteirar dos acontecimentos históricos pelo rádio, pelas revistas O Cruzeiro e Manchete, depois pelo Estadão e posteriormente pelo Jornal da Tarde, assistindo pela televisão apenas à parte de entretenimento. Depois de adulto, a televisão nunca foi um programa rotineiro; apenas consultava quando o evento que me interessou já havia ocorrido.
O que mais lhe impressionou ver pela televisão?
O incêndio no prédio vizinho ao que eu morava, o edifício Joelma, em 1974, apenas três anos após sua inauguração. Testemunhei pessoalmente e depois assisti à reprise pela televisão. Sem escadas de incêndio nem possibilidade de resgate aéreo, ocasionou a morte de quase 200 pessoas e centenas de feridos. Também muito emocionado, assisti à transmissão da descida do primeiro homem na lua, ao lado de amigos do bairro e de toda a família, numa televisão sem cores, com o visual trêmulo e embaçado. A figura fantasmagórica de Armstrong moveu-se desajeitadamente, enquanto descia a escada do módulo lunar; escorregando e quase caindo, deixou a marca do solado de sua bota no chão poeirento da lua.
Como é sua relação com a televisão hoje em dia? A que gosta de assistir?
Nos últimos anos tenho dedicado meu tempo de aposentadoria à leitura voraz de livros em geral, à divulgação de meu livro Gastura e à escrita de meu segundo livro, com uma abordagem bem diferente, uma vez que trata-se de um romance. Vez ou outra, assisto a um filme.
No livro o senhor fala que assistir a programas era um programa em família ou com amigos. Durante muito tempo foi assim? Acredita que hoje, com a internet, as pessoas estão mais distantes umas das outras?
Durante muito tempo existiu a “hora do jantar” não só na minha casa, mas nas de todos os meus amiguinhos. Pai e mãe nas cabeceiras da mesa e os filhos, no meu caso quatro, ocupando as cadeiras laterais. Depois do jantar, íamos assistir a televisão na “sala de visitas” a mesma programação. No dia da partida final da Copa do Mundo de 1958, por exemplo, meu pai colocou no jardim um equipamento com três repartições, rádio, toca discos 78 rpm e alto-falante. A família toda, tios, primos e vários amigos sentamos na grama do jardim de casa para ouvir a transmissão do jogo no rádio, uma vez que ainda não havia imagem televisiva.
Com a internet, de certa forma, as pessoas ficaram mais próximas umas das outras, principalmente as que moravam muito longe. Era prazeroso visitar meu pai na chácara de Santana de Parnaíba, mas não era uma tarefa fácil: ônibus da Vila Mariana até o centro; trem da Estação da Luz até a cidade vizinha, Barueri, jardineira, ônibus da época, até o centro de Parnaíba e uma caminhada até a chácara. Se houvesse internet, um papinho, vez ou outra, aliviaria a saudade.
No livro as Copas do Mundo são uma espécie de guia da narrativa. Dá para comparar a paixão do brasileiro por futebol com o gosto pela televisão?
Pelo fato de realizarem-se precisamente de quatro em quatro anos, as Copas do Mundo compuseram, durante a escrita do livro, uma “linha do tempo” perfeita. Um modelo, não só para avaliar o desempenho dos jogadores em campo através dos tempos, mas para servir de referência ao comportamento social de uma maneira geral. Nesse caso, a paixão crescente do brasileiro pelo futebol é diretamente proporcional ao aprimoramento das transmissões televisivas, uma vez que um número muito reduzido de torcedores tem condições de assistir a um clássico nos estádios.
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