Por Patrick Selvatti
A novela Todas as flores — que está com a segunda temporada no ar desde 5 de abril — é um fenômeno de audiência e repercussão. Produzida para o streaming e exibida no Globoplay, a obra de João Emanuel Carneiro — consagrado autor de Avenida Brasil — apresenta tramas densas, personagens repletos de camadas, reviravoltas inesperadas e um elenco robusto. Entre nomes consagrados como Regina Casé, Fábio Assunção, Sophie Charlotte e Caio Castro, a produção traz rostos novos e alguns nem tanto, mas, até então, pouco conhecidos do grande público. É o caso da atriz Naruna Costa, 40 anos, que tem na personagem, Lila, a oportunidade de estar em um papel de destaque em uma telenovela após participações menos destacadas em produções como Tempos Modernos (2010), Insensato coração (2022) e Deus salve o rei (2018).
Integrante do núcleo principal, a personagem de Naruna em Todas as flores é uma mulher rica, casada e bem-sucedida que é inserida em uma das principais vinganças que movimentam a história. Lila é seduzida pelo mocinho Diego (Nicollas Prattes), um rapaz bem mais jovem que envolve mãe e filha — Joy (Yara Charry) — em uma teia para atingir o marido e pai delas, Luís Felipe (Cássio Gabus Mendes). O romance de Lila e Diego, entretanto, vai além da motivação de justiça do rapaz. Em entrevista à Revista do Correio, a atriz descreve a pulada de cerca da personagem como um grito de libertação da mulher que, no auge dos 40 anos, se vê oprimida sexualmente pelo marido machista. “Ela realmente enxerga a possibilidade de as mulheres serem ainda mais livres do que aparentam ser hoje em dia”, define a atriz, formada na Escola de Arte Dramática (EAD) da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP).
Naruna também celebra o fato de sua personagem — uma advogada bem de vida, casada com um homem branco e poderoso — estar sob uma pele negra, contrariando o que rezava a cartilha da teledramaturgia até pouco tempo. “É recorrente, na teledramaturgia, que uma mulher como ela (a personagem Lila) fosse interpretada por uma atriz branca”, observa a atriz, que tem no currículo o fato de ter dado vida a dois grandes ícones negros femininos: Elza Soares, no musical Garrincha, dirigido pelo estadunidense Bob Wilson no teatro, e Angela Davis, no especial Falas negras, com direção de Lázaro Ramos, na Globo.
Essas mulheres fortes não são raras na carreira da atriz. Na série Rotas do ódio, exibida na Universal Chanel e dirigida pela documentarista Susana Lira, Naruna interpreta a perita Guerra, que atua na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância de São Paulo. Já em Irmandade, na Netflix, ela é a estrela das duas temporadas da produção dirigida por Pedro Morelli. No drama policial situado nos anos 1990, Cristina é uma honesta promotora do Ministério Público que enfrenta um dilema moral ao descobrir que seu irmão (interpretado por Seu Jorge) lidera uma facção criminosa e, ao tentar ajudá-lo, é obrigada pela polícia a trabalhar como informante. A atriz também pode ser vista, novamente ao lado de Seu Jorge, no filme Marighella, sob a direção de Wagner Moura.
Naruna também é cofundadora do Espaço Clariô Taboão da Serra, em sua cidade natal, e do Grupo Clariô de Teatro, referência da militância negra de cultura periférica da cidade de São Paulo. Dessa turma, surgiu as Clarianas, um coletivo de mulheres que se autodenominam cantadeiras urbanas e que permite à atriz desenvolver um outro exercício: o canto. Além disso, Naruna é diretora e, em 2018, foi a primeira mulher negra a receber o troféu de melhor direção teatral da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) pela peça Buraquinhos ou o vento é inimigo do Picumã, que aborda o genocídio da população preta no país. Confira a entrevista a seguir.
Até então, seus papéis de maior destaque foram no cinema — como em Marighella — e em séries — como Rotas do Ódio e, especialmente, Irmandade, que lhe deu uma maior projeção. Como é estar em Todas as flores e ser reconhecida nacionalmente, hoje, por um trabalho na TV, já tendo uma estrada tão longa?
É muito bom poder transitar entre as linguagens, né? Porque exige uma musculatura na interpretação. Eu gosto muito do cinema, que eu acho que é um espaço de criação de profundidade. Já a TV tem uma linguagem diferente, e fazê-la tem sido uma escola realmente. Ainda mais nesse caso, que é uma novela para o streaming, que tem uma conversa com esse formato série também; então, eu achei uma jornada bem bonita e interessante. Para mim, enquanto atriz, a possibilidade de investigação atrai muito. A oportunidade de trabalho e de estudo mais profundos está sendo uma experiência incrível.
Sua personagem levanta uma bandeira importante contra o machismo e a favor do direito de uma mulher sentir desejo sexual e de ser amada e desejada, ainda que dentro do próprio casamento. Qual a importância de se levar essa pauta para o debate em rede nacional, com a seriedade e delicadeza que o tema merece?
É superimportante esse papel da Lila. Essas falas de uma mulher que é casada e que tem a sua autonomia, sua independência, e que não quer dialogar com essa estrutura machista que meio que forja o Brasil… São muito interessantes as descobertas que ela tem e também a maneira como ela vai articulando essa fala. Ela, realmente, enxerga a possibilidade de as mulheres serem mais livres ainda do que aparentam ser hoje em dia. Mesmo ela tendo uma uma relação estável, sendo uma advogada, tendo uma certa liberdade, ainda existem muitas opressões veladas que determinam um pouco como a mulher deve sentir. E aí essa questão que a Lila aponta, de continuar sexualmente ativa mesmo estando casada há muitos anos, tendo uma filha adulta, é um tabu. E eu acho que ela faz isso de uma forma muito bonita.
Estamos vivendo, tardiamente, um boom de personagens negros em destaque na teledramaturgia. A Lila, por exemplo, poderia ter sido interpretada por uma atriz branca. Como você enxerga esse movimento?
A Lila foi um presente também nesse sentido, por termos saído dos estereótipos. É recorrente na teledramaturgia que uma mulher como ela fosse interpretada por uma atriz branca. O fato de a Lila ser negra, e essa não ser uma questão no enredo, eu acho revolucionário. Realmente, a gente precisa se acostumar. O racismo é tão profundo no Brasil que faz com que a gente não se dê conta do quanto nosso imaginário está corrompido. E esse caso é uma quebra de imaginário muito grande. Não debater sobre essa questão em cena já é um passo a mais. Acho que, cada vez mais, essas possibilidades estão se ampliando e eu reconheço, sim, que são muito lentos, mas existem caminhos, do próprio movimento negro, da sociedade como um todo, reconhecendo o racismo estrutural e se debruçando sobre ele. Acredito que, daqui pra frente, a gente dê mais passos e não retroceda mais. Então, que venham mais, muitos mais Lilas. A gente está falando de uma personagem dentro de uma telenovela que é bastante pontual, pensando em toda a história mesmo da teledramaturgia brasileira. Que tenham muitos mais personagens com esses valores diferenciados do que a gente está acostumado, do que a gente chama de personagens estereotipados, que não estão dentro de outras classes sociais, que estão sempre submetidos a servir.
Conta um pouco sobre a experiência de dar vida a Elza Soares no musical Garrincha, no teatro, e ter vivido Angela Davis no especial Falas negras, na Globo.
Essas experiências foram muito marcantes para mim. É muito difícil representar personagens vivas, personagens que a gente tem uma admiração… No caso da Elza Soares, Garrincha era uma montagem do Bob Wilson, um diretor norte-americano que tem uma linguagem estética muito precisa, muito específica. A ideia não era nem de longe imitar a Elza Soares, chegar próximo aos trejeitos dela, e, sim, representá-la por esse lugar de grandiosidade. De diva mesmo. Essa era a perspectiva da direção. Mas não tem como também não se aprofundar cada vez mais. Mergulhar na história, nos trejeitos, na vida, no jeito da Elza foi muito especial. Ela foi assistir ao espetáculo, se emocionou muito, tivemos momentos muito maravilhosos no camarim após a apresentação, de confidências. Foi realmente muito especial pra mim. Já a Ângela Davis nem se fala! É uma das maiores referências, né? No sentido do ativismo negro mundial. Foi um grande presente também que eu recebi do Lázaro (Ramos, diretor do especial). Nesse caso, sim, o estudo dos gestos eram bem importantes e foi muito lindo poder ver os vídeos antigos da Ângela, estudar esse modo de falar, as atitudes, os gestos, o físico, as características de cabelo, de roupa. Foi tudo muito bonito, muito profundo, e eu sou cheia de orgulho desse trabalho e muito feliz com o resultado também. Eu fui super bem dirigida e foi um lindo projeto que abriu o caminho para muitas falas.
E a Naruna cantora? A música pode se tornar uma carreira?
A Naruna cantora é bastante ativa com o Grupo Clarianas. A gente está indo para o nosso terceiro disco e é um espaço muito precioso para mim. Ele não tem esse protagonismo como o meu caminho como atriz, mas ele está ali paralelo, assim como o meu trabalho como direção. São outras funções, outros exercícios nos quais eu mergulho profundamente quando não estou filmando. Clarianas me deu essa oportunidade de exercitar a composição também, de exercitar o canto em coletivo, os cantos de trabalho. É um lugar que me conecta muito com a minha ancestralidade negra, indígena, que eu tenho muito orgulho. Estou investindo cada vez mais, é um paralelo que não vai deixar de estar presente na minha trajetória. Sou muito orgulhosa e é um lugar de que eu gosto muito. Ainda não tenho um trabalho solo, o meu trabalho com canto está sempre muito vinculado ao Clarianas, em momentos específicos, em espetáculos ou trabalhos específicos que exijam esse outro recurso do canto, mas ainda não tem um projeto solo. É um desejo para mais pra frente. Talvez eu desenvolva aí um caminho também para estudar além das Clarianas, de cantora solo. Pode ser bonito também.
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