Nando Cunha confirma ser mais que um “ator engraçado”

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Marcado por personagens cômicos e icônicos, como o Pescoço de Salve Jorge, o artista carioca dá show de interpretação em produções dramáticas

Patrick Selvatti

No filme Nosso sonho, além da dupla Claudinho & Buchecha, outros personagens reais ganham projeção. Um dos principais é Claudino de Souza, talvez o maior entusiasta do sucesso alcançado pelo filho, Buchecha, com o amigo Claudinho. Apesar de ser o maior incentivador da dupla e compositor de alguns hits, o Seu Souza — morto em 2010 — tinha uma relação muito conturbada com a família, por causa do alcoolismo.  Quem interpreta esse personagem difícil, cheio de camadas, é o ator Nando Cunha.

“Meu maior desafio foi dar humanidade a esse pai. Ser um pai preto nesse país não é fácil. Nós pretos fomos forjados em muitas durezas, moldados com muitas porradas da vida. Com seu Souza não foi diferente: ele cresceu numa sociedade que não lhe dava perspectiva de nada, fomos programados a não receber amor, o afeto nos foi negado. Esse pai foi muito vítima dessa sociedade que nos exclui todas as ações dele tinham justificativa”, declarou o artista carioca, de 57 anos, ao Próximo Capítulo.

Para Nando, é uma responsabilidade muito grande dar vida a alguém que foi muito importante para a vida do Buchecha e ele próprio também queria provar que é mais que um ator de comédia. “Estou há 30 anos nessa luta e sempre fiz tudo quanto é tipo de personagens, não sou um ator de uma nota só”, desabafou o intérprete do icônico Pescoço, um dos maiores respiros cômicos da novela Salve Jorge (2012), de Glória Perez, com quem se reencontrou recentemente, em Travessia (2022).

“Pescoço foi um marco na minha vida. As pessoas ainda me chamam assim na rua, em qualquer lugar do país, mas quero mostrar para as pessoas que sou mais que um ator engraçado”, argumentou ele, que, após uma série de personagens mais voltados para o humor, recebeu a oportunidade de mostrar uma vertente mais dramática com o Joel, de Travessia. “Para o ator negro sempre foi mais complicado.  Sempre nos colocam numa prateleira estereotipada, como um personagem malandro ou engraçado. Mas eu sempre quis provar que era capaz de ser além do que rotulavam”, concluiu.

ENTREVISTA / Nando Cunha

Qual foi o maior desafio de fazer o pai de Buchecha em Nosso Sonho?

Meu maior desafio foi dar humanidade a esse pai. Ser um pai preto nesse país não é fácil. Nós pretos fomos forjados em muitas durezas, moldados com muitas porradas da vida. Com seu Souza não foi diferente, ele cresceu numa sociedade que não lhe dava perspectiva de nada, fomos programados a não receber amor, o afeto nos foi negado. Esse pai foi muito vítima dessa sociedade que nos exclui todas as ações dele tinham justificativa. Esse foi meu maior desafio, junto com o diretor Eduardo Albergaria, dar humanidade a esse pai que sofreu tanto com a vida. É uma responsabilidade muito grande de dar vida a alguém que foi muito importante para a vida do Buchecha e também queria provar para muita gente que eu sou mais que um ator de comédia. Estou há 30 anos nessa luta e sempre fiz tudo quanto é tipo de personagens, não sou um ator de uma nota só.

Para você, qual a maior lição que o filme passa?

A maior lição que o filme passa, pra mim, é que podemos contar histórias pretas com dignidade, humanidade e ternura, mesmo com todo drama que essa história possa ter, que podemos protagonizar nossas histórias. Outra lição é que existem muitos atores pretos prontos e talentosos no mercado, como mostra o filme, e mostra também que podemos sonhar, num país que não permite o povo preto ter sonhos. E esses meninos se atreveram a sonhar e realizaram seus sonhos e deram esperança a muitos meninos e meninas pretas de muitas comunidades e periferia desse país.  Pra mim, essa é a maior lição e legado que esse filme lindo deixa.

Você chegou a desenvolver uma relação mais próxima com o Juan Paiva e com o Lucas Koka Penteado por causa do filme?

Já havia trabalhado com o Lucas, em Barba, cabelo e bigode, filme da Netflix, dirigido pelo Rodrigo França e foi a primeira vez que tinha trabalhado com Juan, que foi uma grata surpresa.  Juan é um ator de uma sensibilidade enorme e ele é muito novo de um talento incrível.  Era muito prazeroso interpretar com ele.  Pra mim, é um dos melhores atores da sua geração.  É muito legal beber da fonte dessa “mulekada” que está vindo: Clara Moneke, Gustavo Coelho, Lelezinha, Reinaldo Júnior, entre outros.

A paternidade é um tema que marcou os seus dois últimos trabalhos. Queria que comentasse sobre isso.

Me tornar pai foi uma das melhores coisas que aconteceu. Meu filho me deu uma nova dimensão para a vida.  Tento ser o pai mais amoroso possível, não tive isso na minha infância.  Meu pai também teve muitos percalços da vida, sua mãe faleceu no parto de um dos seus irmãos, seu pai saiu de casa e ele teve que ser pai e mãe dos irmãos (assim como meu personagem Mauro no filme O Novelo). Além de dar muito amor, ser pai requer muitas responsabilidades.  É saber dividir as tarefas dentro de casa, e não colocar toda responsabilidade nas costas da mulher.  Nós homens fomos criados numa sociedade patriarcal e machista. Cuidar de um filhote dá muito trabalho, requer atenção, cuidado.  Não é só dar presente, é estar presente sempre. Isso é ser pai.

Após uma série de personagens mais voltados para o humor, o Joel de Travessia trouxe a oportunidade de mostrar uma vertente mais dramática. Você sentiu essa diferença?

Sempre fui um ator que gosta de passear por todas as vertentes da profissão, foi por isso que estudei . Mas, para o ator negro, sempre foi mais complicado.  Sempre nos colocam numa prateleira estereotipada, como um personagem malandro ou engraçado.  Algumas pessoas diziam que eu era melhor no humor e na comédia, e nada contra a comédia, que é uma linguagem muito difícil de ser fazer, não é para qualquer ator… Mas eu sempre quis provar que era capaz de ser além do que rotulavam.  Assim como foi em Maria, um telefilme feito em Brasília, com a direção do diretor Iberê Carvalho, onde tive a honra de dividir a cena com a estrela Dhi Ribeiro.

A questão do estupro virtual tratado na novela te impactou de alguma forma?

Sim meu filho, Davi, só tem 11 anos, e essa geração de hoje já mora dentro da internet e nem sempre estamos atentos. Por isso, a importância de estarmos sempre presentes na vida deles sendo amorosos, para que eles tenham confiança em compartilhar as questões de sua vida com você.  O submundo da internet traz muitos perigos, e ali que se criam pessoas misóginas, machistas, preconceituosos, racistas, o ódio é alimentado ali, na deep web.

Seu personagem Pescoço foi muito marcante. As pessoas ainda te abordam por causa dele?

Muito! Pescoço foi um marco na minha vida, me deu projeção.  Minha ex-esposa estava grávida do meu filho, estava sem trabalho, sem grana, indo embora.  Enchi o saco do diretor Marcos Schechtman para fazer a novela, não conhecia a Glória Perez, então ele me chamou para um papel pequeno na trama.  Em um belo dia, no treinamento da novela, a autora anunciou a entrada de um novo personagem, Pescoço (eu ia fazer José, um pedreiro), aí depois, ela e o diretor me chamaram num canto e disseram que eu seria o Pescoço.  Devo esse sucesso todo a minha parceira de cena e amiga Roberta Rodrigues,  sou muito grato a esse trabalho.  As pessoas ainda me chamam assim na rua, em qualquer lugar do país,  mas quero mostrar para as pessoas que sou mais que um ator engraçado e espero que com esse trabalho, no filme, as pessoas me enxerguem com outros olhos.

Patrick Selvatti

Sabe noveleiro de carteirinha? A paixão começou ainda na infância, quando chorou na morte de Tancredo Neves porque a cobertura comeu um capítulo de A gata comeu. Fã de Gilberto Braga, ama Quatro por quatro e assiste até as que não gosta, só para comentar.

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