Difícil não se mexer na cadeira um tanto de vezes diante das provocações de O poço. O filme dirigido pelo espanhol Galder Gaztelu-Urrutia está no catálogo da Netflix e chama a atenção pela oportunidade de refletirmos sobre a sociedade e sobre o ser humano em um momento em que isso parece urgente e inevitável. A experiência não é das mais fáceis, incomoda (ainda mais por certas escolhas de Gaztelu-Urrutia) e vem dividindo a internet.
Goreng (Ivan Massagué) acorda numa espécie de prisão-plataforma onde há dois catres e uma pia. A companhia dele é apenas Trimagasi (Zorion Eguileor) e um exemplar de Dom Quixote, objeto que escolheu levar para esse experimento que, para ele, é voluntário. Na parede, o número 48 indica o nível em que eles estão e em que permanecerão durante um mês. Isso significa que há 47 níveis acima e, a julgar pela vivência de Trimagasi ali, a coisa desce pelo menos até o 132, com uma dupla por nível.
A plataforma parte do nível zero carregada com um verdadeiro banquete, capaz de alimentar todos que ali estão. Ela passa de nível em nível, verticalmente, com cada um servindo-se à vontade. O egoísmo das pessoas as levam a comer muito mais do que necessitam como se não fosse haver outro dia igual àquele. O resultado é que os níveis mais baixos ficam sem comida. Alimentados apenas pela raiva do que os outros presos fizeram e esquecendo de que fizeram o mesmo quando estiveram em níveis mais altos, os que estão em baixo comem o que podem: nem que isso signifique canibalismo. A crítica ao capitalismo é tão dura quanto a que virá depois, ao socialismo.
As cenas de O poço são fortes, indigestas e muitas vezes até escatológicas. Lembram o teatro de José Celso Martinez-Corrêa e seu teatro Oficina, que às vezes provoca e outras apenas choca. Mas não é isso o que mais incomoda. Quando Goreng chega ali, ele sabe (ou acha que sabe, pois só conhece a teoria do “projeto”) o que encontrará. Os diálogos dele com Trimagasi são sempre no sentido de fazer com que o companheiro pense em que está nos níveis inferiores e que no próximo mês poderão ser eles. Mas os argumentos de Trimagasi são fortes, contundentes e assustadoramente familiares ao que muitos de nós fazemos no dia a dia, mesmo que escondidos de nossa própria consciência.
A força desses argumentos muda de acordo com o nível em que eles estão. Quanto mais perto do poço, Goreng vai se revelando mais feroz, mais naturalmente violento e protetor de si mesmo. O que vem por aí é um verdadeiro retrato cru e cruel da nossa sociedade em que atitudes egoístas são justificadas pelo injustificável senso comum.
Quando Goreng e Trimagasi se separam numa circunstância pra lá de irônica, Goreng ganha a companhia de Iomoguiri (Antonia San Juan), uma das criadoras da prisão. Com a justificativa de quem bolou aquilo tudo, O poço consegue ser ainda mais duro ao mostrar que a ideia, no papel, era boa e deveria funcionar. O que estragou tudo foram as pessoas.
Em todos os níveis por que Goreng passa (e nosso anti herói alterna patamares bons e ruins com frequência) ele se depara com Miharu (Alexandra Masangkay), estranha mulher que desce na plataforma em meio à comida dizendo que o filho dela está perdido em um dos níveis e que ela precisa encontrá-lo para que ele não morra de fome. Miharu é explosivamente violenta quando atacada ou acuada e extremamente doce quando lhe convém. É como se Miharu fosse a gente.
O último companheiro de Goreng é Baharat (Emilio Buale), a quem conhece no nível 6, a apenas cinco andares do topo da cadeia. Idealistas, os dois conseguem se livrar um pouco da contaminação social em que vivem e furam a bolha, criando mecanismos para enganar o mecanismo vigente. Se dá certo ou não, não importa. O que é importa é que haja gente tentando fazer diferente e lutando para que seja de outra forma.
Mesmo que os símbolos da esperança sejam signos batidos (que não serão aqui revelados) e que cenas sombrias e iluminação escura nos remetam mais às trevas do que à luz, O poço acaba nos trazendo uma mensagem otimista, num final que vem dividindo opiniões na internet. Talvez porque não seja o esperado final feliz nem a derrocada total, seja apenas um artifício que nos tira do lugar comum e nos faz refletir sobre nós mesmos.
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