Letícia Colin, uma atriz densa, ousada e premiada

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Criada nos estúdios e destacada em sua geração, a atriz de 33 anos traz na bagagem personagens com profundidade na tevê e no cinema. Uma delas a levou ao Emmy Internacional

Patrick Selvatti

Dá para afirmar com tranquilidade: Letícia Colin é um dos maiores talentos desta geração de atrizes. Criada praticamente nos estúdios da televisão, onde estreou aos 10 anos, no seriado Sandy & Júnior, e passou três anos como apresentadora da TV Globinho, a atriz de 33 anos acumula cerca de 20 trabalhos entre novelas e séries, além do teatro e do cinema. Por alguns desses, foi indicada a prêmio internacional e consagrada nacionalmente com títulos importantes na categoria que representa.

Papéis como a Vivi, de Chamas da vida (2009), na Record, a Leopoldina, de Novo mundo (2017), e a Rosa, de Segundo sol (2018), deram musculatura para Letícia encarar o desafio de viver a médica viciada em drogas Amanda, de Onde está meu coração (2021). Por essa interpretação na série original Globoplay, foi agraciada com o Prêmio APCA, elogiada no Festival de Berlim e indicada ao Emmy de Melhor Atriz, em 2022. Sem demonstrar soberba pelas conquistas ou mesmo lamentações por não ter trazido o troféu mundial para casa, a artista destaca o aprendizado.

“Eu estava concorrendo com uma menina da África do Sul e uma da Inglaterra, cada uma contando sua história, e esse grande encontro do nosso trabalho me mostrou que, aqui no Brasil, muitas vezes, a gente confunde isso com hobby ou com uma tentativa de profissionalizar o ofício. Para mim, ratificou a seriedade da minha profissão, que movimenta economias, que é importante para a construção do sentimento que a gente tem de nação, de espelhamento e de quem somos nós”, avalia Letícia, em conversa exclusiva com o Próximo Capítulo.

Vanessa, a vilã odiosa de Todas as flores | Crédito: Divulgação Globoplay

Também no Globoplay, a artista paulista emendou Onde está meu coração com Todas as flores, a primeira novela brasileira produzida especialmente para o streaming, com uma personagem igualmente profunda: a vilã Vanessa. Sobre esses dois últimos trabalhos, Letícia aponta, além das dificuldades, a responsabilidade e o prazer em apresentar questões sociais presentes no cotidiano, mas que as pessoas tentam invisibilizar, ainda que eles saltem aos olhos da sociedade.

No caso de Amanda, de Onde está meu coração, a atriz defende ser uma personagem que todos nós conhecemos e precisamos ter mais coragem de assumir, olhar e respeitar. “O dependente químico é muito marginalizado, responsabilizado pelo vício, sendo que as pessoas se esquecem de que o uso da droga é um projeto social. Com a não descriminalização do uso de certas substâncias, a gente vai abandonando esses indivíduos e gerando mais lucro ilegal, seja no tráfico, seja como milícia. E tem esse abandono emocional que a gente vem passando na nossa civilização. E a questão do dependente químico é uma doença”, argumenta.

Amanda, médica dependente química em Onde está meu coração | Crédito: Divulgação Globoplay

Em relação a Vanessa, Letícia pondera que o egoísmo a tornou uma pessoa extremamente preconceituosa e capacitista, mas há um lado positivo. “Eu acho que a gente conseguiu revelar o comportamento desse tipo de gente. São muitas pessoas assim na nossa sociedade. O mundo que não é feito para incluir, o julgamento que as pessoas fazem quando a pessoa tem uma deficiência… O papel do vilão também é habitar esse lugar até para que a gente elucide o que não se deve fazer. É um manual, antes de tudo, de anti-humanos”, assinala a atriz, que não condena totalmente a personagem odiosa e, ao mesmo tempo, festejada pelo público, que a comparou como a nova Carminha (Adriana Esteves). “Eu gosto muito de moda, como a Vanessa gosta. E era uma coisa que as pessoas comentavam: dos looks, das montações, das peças de brechó misturadas com peças grifadas, essa brincadeira toda. Por ela ser estilista, a gente podia ter uma inventividade de figurino, e isso, para mim, foi muito prazeroso”, acrescenta.

Além do limite

Personagens polêmicos e com função social habitam o currículo de Letícia desde sempre. Em sua passagem pela Record, ela emprestou seu corpo a Vivi, uma adolescente que se torna vítima de um pedófilo via internet, é estuprada por ele e levanta a discussão sobre o aborto. Pelo papel, foi indicada ao Prêmio Contigo! de Melhor Atriz Coadjuvante. Já na Globo, ela interpretou uma personagem que atua no mundo da moda e sofre de dislexia, em Sete vidas, em 2015. No ano seguinte, na série global Nada será como antes, como Júlia, se envolvia em uma relação homoafetiva com Bruna Marquezine. E, no cinema, foi Letícia quem teve a responsabilidade de reviver o papel emblemático defendido por Lucélia Santos no filme Bonitinha, mas ordinária. No clássico de Nelson Rodrigues revisitado nas telonas, a atriz encenou fortes cenas de nudez e de sexo.

Em Todas as flores, Letícia teve a oportunidade de repetir a dobradinha com Caio Castro, intérprete de Pablo, o amante de Vanessa. Juntos, os jovens atores interpretaram o casal Dom Pedro I e Leopoldina na novela Novo mundo. “Como o Caio gosta de brincar, a gente já se conhecia desde 1800”, diverte-se a atriz, ressaltando a intimidade na vida real que facilitou o processo de composição de cenas fortes de erotismo, assédio e de abuso vividas pelo apimentado casal na ficção. Um roteiro forte, ousado, fiel à grife do autor, João Emanuel Carneiro, que ganhou tonalidades mais robustas pelo fato de ser um produto para o streaming.

“O João não tem medo do que é grandioso e do que é ousado. Seja como temática de trama, como composição da personagem, como linha dramatúrgica. Eu sou uma pessoa de intensidade, e você acha que as personagens do João são muito intensas, mas elas surpreendem a gente e vão além do limite”, descreve a atriz, que é mãe de Uri, de 3 anos, fruto do casamento com o também ator Michel Melamed. Na novela, que está sendo exibida na tevê aberta desde a última segunda-feira, Vanessa é uma mulher que engravida do amante para garantir a boa vida proporcionada pelo rico Rafael (Humberto Carrão), a quem ela engana na disputa com a irmã, a mocinha cega Maíra (Sophie Charlote). Com o filho, a relação é de mais profundo desprezo e maus-tratos. “Sou uma mãe completamente diferente”, garante.

Para Letícia Colin, o êxito de Todas as flores reside na união do novelão clássico, estilo Avenida Brasil, com a potência das séries. “O telespectador brasileiro gosta dessa luta entre vilãs e mocinhas, e a velocidade, os ganchos e a potência que as séries trouxeram estão mudando a nossa maneira de consumir as obras e desafiando a gente como criadores a encontrar esse ritmo”, observa a atriz, que em 2018, entrou para a lista Under 30 da revista Forbes como um dos destaques jovens brasileiros de até 30 anos na categoria Artes & Espetáculos/Entretenimento.

ENTREVISTA / Letícia Colin

Qual foi a maior dificuldade em compor a Vanessa e onde você mais se encontrou ali?

Acho que a maior dificuldade é o caráter da Vanessa. O egoísmo a tornou uma pessoa extremamente preconceituosa e capacitista. Mas há um lado positivo, porque eu acho que a gente conseguiu revelar o comportamento desse tipo de gente. São muitas pessoas na nossa sociedade assim. O mundo que não é feito para incluir, o julgamento que as pessoas fazem quando a pessoa tem uma deficiência. O papel do vilão também é habitar esse lugar até para que a gente elucide o que não se deve fazer. É um manual, antes de tudo, de anti-humanos. Se fosse por ela, não teria civilização, porque é uma pessoa extremamente egoísta que só pensa em poder e dinheiro. Uma parte de se identificar eu diria que gosto muito de moda, assim também como a Vanessa gosta. E era uma coisa que as pessoas comentavam: dos looks das montações, das peças de brechó misturados com peças grifadas, essa brincadeira toda essa referência por ela ser estilista. A gente podia ter uma inventividade de figurino e isso, para mim, foi muito prazeroso, porque eu adoro construir a partir desses elementos.

Você teve uma química de milhões com Regina Casé e Caio Castro. Pode contar um pouco como era e como ficou a relação com cada um deles?

O Caio, como ele gosta mesmo de brincar, a gente já se conhecia desde 1800, né? E é sempre legal repetir uma parceria ir aprofundando esse trabalho junto e ver a gente se desenvolvendo. A gente fez esse trabalho que mudou minha vida, a Leopoldina. E, de novo, em Todas as flores. A Regina eu tinha um sonho de trabalhar com ela. Eu sou muito fã, admiro por milhares de motivos, pela consciência de Brasil que ela tem, pela artista que ela é, pela história que ela tem com o nosso teatro, pela mãe maravilhosa, pelos programas que ela criou… Foi muito especial trabalhar junto, ser filha, ter essa convivência diária que fica para a vida. Não é sempre que a gente carrega as amizades do trabalho porque acaba que a convivência fica menos intensa. Mas é uma pessoa que eu carreguei. Ainda bem então tenho presentes lindos nessa profissão. A gente vive coisas poderosas ali no dia a dia do trabalho, em cena, e que depois dá para continuar contando com aquela pessoa.

A novela foi um estrondoso sucesso no streaming e nas redes sociais. A que você atribui?

Eu acho que nós temos essa tradição com novela. Novelão assim, bem arquetípico, de vilã de mocinha, tem esse ponto que o brasileiro gosta disso. O segundo ponto é a velocidade, os ganchos e a potência que as séries trouxeram pra gente e que estão mudando a nossa maneira de consumir as obras e desafiando a gente como criadores a encontrar esse ritmo, esse tom, já que hoje a demanda é cada vez maior. Há o cardápio gigante para você escolher uma coisa que você vai assistir e o tempo da gente cada vez mais curto. Então, eu acho que a gente uniu essa tradição da novela que é uma coisa que o João Emanuel Carneiro faz como ninguém. Ele sempre teve uma característica de ter muitos ganchos e de não deixar as resoluções pontuais da trama mais impactantes para o final e de diluir isso durante a trama. Então, o tempo todo você tem virada de coisas que te conectam com a história sem ter encheção de linguiça ou a barriga das tramas, que é quando fica muito tempo sem acontecer coisas ou só repetindo. Então, eu acho que ele conseguiu unir o melhor da televisão com o melhor da série e a gente chegou nessa caixa aí de 85 capítulos.

Acredita que terá o mesmo êxito na tevê aberta?

Ah, é, é uma incógnita. Não sei assim o que pensar, eu sei que vai ser muito bom para rever esses personagens. Acho que tem muita gente que não viu também, apesar de ter sido um recorde de audiências de streaming e de a gente estar conhecendo agora essa questão online. Foi realmente uma surpresa muito positiva, porque foi muito assistido. A internet acompanhava, torcia e abraçou a novela com os memes, com as repetições das falas dos personagens, com essa expectativa do lançamentos dos capítulos. Mas, falando de Brasil, do nosso país que ainda acompanha as obras através da televisão aberta. Acho muito importante essa democratização, de a gente ter essa chance de levar nosso trabalho ainda além. Espero que tenha o melhor conexão possível com o público, que encontre um público que queira ouvir a história que a gente tem para contar.

Todas as flores foi seu terceiro trabalho consecutivo com João Emanuel Carneiro. O que te chama mais atenção nas obras dele?

O João não tem medo do que é grandioso e do que é usado. Seja como temática de trama como composição da personagem como linha dramatúrgica de caminho que a personagem vai desenvolver. Ele tem uma grandiosidade nessas composições, no jeito dele escrever que me agrada muito. Eu sou uma pessoa de intensidade, você acha que as personagens do João são muito intensas, mas são personagens que surpreendem a gente e que passam do limite. Eu gosto muito de trabalhar com essa ideia, porque eu acho que é extraordinário da minha profissão poder cruzar algumas barreiras e trazer isso para o público, para que a gente possa refletir, se emocionar, pensar criticamente, ter raiva, condenar. Eu acho que essa ousadia, essa grandiosidade que ele tem é ele acaba conseguindo construir personagens de um envergadura gigante e que vão do anjo ao monstro.

A Globo exibiu recentemente outro sucesso do Globoplay, Onde está meu coração. Ali você viveu a personagem mais densa da sua carreira na tevê e que lhe rendeu indicação ao Emmy Internacional como melhor atriz. Como foi a experiência de interpretar Amanda e esse reconhecimento recebido?

Amanda é uma personagem que todos nós conhecemos e que a gente precisa ter mais coragem de assumir, de olhar e respeitar. O dependente químico é muito marginalizado. Essa tentativa de invisibilizar as pessoas que têm alguma dependência, de responsabilizar a pessoa por isso, esquecendo do fato de ser também o uso da droga um projeto social, com a não discriminalização das drogas. A gente vai abandonando esses indivíduos e gerando mais lucro ilegal, seja no tráfico, seja como milícia. Então isso é uma questão social, esse abandono emocional também que a gente vem passando na nossa civilização. Tem também a questão de ser uma doença, a questão química mesmo. Tem gente que pode tomar três copos de cerveja e ficar de boa, tem gente que não pode, e essa roleta russa da vida é muito cruel, muito ingrata e a gente pouco encara isso. Imagina, todo mundo tem uma história para contar de um dependente químico da família, de si próprio, de um amigo, de um amor e enquanto a gente não encarar esse assunto com maturidade, a gente não vai avançar sua política de tráfico de drogas e segurança pública. Aprendi muito. Foi uma jornada humana, muito interessante, muito profunda. Eu saí transformada. As personagens sempre transformam a gente.

E o Emmy?

Esse prêmio internacional reúne atores e atrizes do mundo inteiro que também amam o que fazem. Personagens tão diversos… Eu estava concorrendo com uma menina da África do Sul, uma da Inglaterra e cada uma contando sua história e esse grande encontro do nosso trabalho que eu acho que aqui no Brasil, muitas vezes, a gente confunde com hobby ou com uma tentativa de profissionalizar o ofício. Para mim, ratificou o lugar da seriedade da minha profissão, da nossa indústria audiovisual, que movimenta a economia, que é importante para a construção do sentimento que a gente tem de nação, de espelhamento de quem somos nós, de exercício da liberdade e de exercício de discordância também. Foi uma experiência bem completa, grandiosa como um todo.

Dos novos projetos, o que pode ser adiantado?

Eu tenho um projeto novo bem legal na televisão que ainda não posso falar, mas é a continuidade de uma série*. Vou tentar também meu projeto no teatro com meu marido. A gente tem esse sonho de trabalhar juntos há um tempo e está construindo essa história para nós dois para o ano que vem. É um espetáculo que repensa, entre muitas coisas, o casamento.

*Letícia Colin está confirmada na segunda temporada de Os outros. Ela viverá uma moradora evangélica do condomínio da Barra da Tijuca onde se passa a história.

Patrick Selvatti

Sabe noveleiro de carteirinha? A paixão começou ainda na infância, quando chorou na morte de Tancredo Neves porque a cobertura comeu um capítulo de A gata comeu. Fã de Gilberto Braga, ama Quatro por quatro e assiste até as que não gosta, só para comentar.

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