Polêmica produção está em exibição na HBO. De forma geral, Leaving Neverland sabe detalhar uma história que deixou o mundo de boca aberta
A trajetória de Leaving Neverland nunca foi fácil. Logo na estreia, ainda no Sundance Film Festival no fim do ano passado, a produção levantou uma polêmica com uma premissa simples e ousada: contar as histórias de abusos sexuais de um dos maiores astros do mundo, Michael Jackson.
Entre muitas críticas de estar apenas tentando chamar atenção e ganhar dinheiro sobre a figura de uma pessoa morta, o documentário teve uma exibição única na Inglaterra e agora ganha o mundo na grade do canal HBO. Entre tropeços e acertos, o documentário de quase duas horas — que foi dividido para exibição em duas partes — cumpre a premissa básica. O público tem um acesso detalhado e incisivo em um dos piores pesadelos de Wade Robson e James Safechuck, dois garotos que afirmam terem sido vítimas de abuso sexual por parte de Michael ainda aos 10 e 7 anos, respectivamente.
Por trás da “polêmica” que envolve Leaving Neverland está uma briga difícil de ser solucionada. Quem está falando a verdade? Os dois homens, ou as longas negações do Rei do Pop?
Antes de analisar o documentário da HBO é fundamental frisar um detalhe que faz toda a diferença: Leaving Neverland é apenas um dos lados da história. Existem diversas outras produções que debatem os supostos abusos sexuais de menores por parte de Michael — tanto para deferir, quanto para negar tais ações — que não estão sendo levadas em consideração neste texto. É importante deixar claro que é impossível chegar uma conclusão fria sobre um tema que tem tantas argumentações consistentes. Algo positivo, afinal, o objetivo aqui não é denotar se as denúncias de Leaving Neverland são, ou não, verdeiras, mas sim, e especialmente, como tal história foi apresentada.
Memórias, amor e o mito
O que mais surpreende em Leaving Neverland é como os supostos abusos de Michael não são apresentados de uma forma violenta ou agressiva. Pelo contrário. As palavras de Safechuck e de Robson apresentam um Michael amoroso, gentil, quase infantil e inocente. Após os primeiros assédios, os relatos demostram uma imagem mais manipuladora do astro, entretanto, ainda não chega a ser uma transformação de Michael em um homem violento, como geralmente os acusados de pedofilia são simbolizados.
De acordo com a versão dos homens, que atualmente estão com 36 (Robson) e 41 (Safechuck) anos, a ação do astro se aproxima do “grooming”, termo usado para designar a ação do abusador para lidar com o silêncio das vítimas de forma escusa. Isso significa, essencialmente, que Michael não batia nas crianças, ou promovia violência (e isso pelos próprios relatos delas), mas sim usava de recursos como dinheiro, viagens, ameaças veladas, aproximação dos pais, entre outros.
A partir disso, se desdobra uma das melhores características de Leaving Neverland: uma história extremamente detalhada dos supostos abusos.
Cada momento
Demora cerca de uma hora para que os abusos comecem a ser abordados em Leaving Neverland. Grande parte do documentário trata as memórias de Robson e Safechuck aos mínimos detalhes — de onde vieram, como foi a infância, gostos, emoções, personalidade, relação com os mais próximos, enfim, o que eram e o que são além de Michael. Com depoimentos de familiares, o público mergulha na história de infância de cada garoto. Conseguimos entender o que motivou a aproximação dos jovens ao artista, assim como uma explicação a permissividade dos pais, o mundo ao redor daquela situação atípica, e enfim, todo o terreno que teria permitido os supostos abusos.
A riqueza de detalhes não se limita a explicação da vida dos garotos além de Michael, antes fosse. Robson e Safechuck descrevem de forma gráfica como Michael supostamente os abusou: os cantos de Neverland que abrigaram as “festas do pijama”, as posições sexuais que o cantor preferia, o que fazia Michael para atingir o orgasmo — essencialmente sexo oral — e mais.
Os relatos são, acima de tudo, tristes. Em certo momento, não importa muito se Michael foi a estrela que foi. Não importa muito se ele dominava o mundo. A situação toda é absolutamente trágica.
Importante comentar também que a construção bem detalhista de tais relatos gera um paralelismo singular em Leaving Neverland. Robson e Safechuck lembram situações semelhantes de abusos, de momentos com Michael, de situações que só os três puderam viver, mesmo que separadamente. Tal situação gera considerável credibilidade aos relatos.
Buracos
Entretanto, é impossível não se atentar a uma crítica básica que precisa ser feita a Leaving Neverland: a defesa de Michael. Não há muito a presença de uma defesa do artista, e uma voz dissonante dos relatos de Robson e Safechuck são ínfimas. Naturalmente, a intenção do documentário é contar a história dos garotos e outras coisas além disso seriam uma fuga ao tema, entretanto, ao longo de várias horas, é fácil para o público uma reflexão no sentido de “existe um outro lado?”.
Em síntese, a produção é uma daquelas que acertam o público em cheio. Uma proposta ousada, que deve ter enfrentado diversos desafios para chegar ao ar, mas, mesmo assim, se manteve firme em apresentar uma narrativa bem pensada, delimitada e construída.