Kelner Macêdo, um artista de ancestralidades e legados

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Aos 28 anos, ator paraibano se destaca com personagens que realçam a natureza humana, na tevê e no cinema

Patrick Selvatti

Este é um momento muito especial na carreira de Kelner Macêdo. Após a estreia no cinema com o premiadíssimo filme Corpo elétrico, em 2017, o ator de 28 anos cresce vertiginosamente no audiovisual com presenças que, ainda coadjuvantes, deixam sua marca de talento e representatividade.

De lá para cá, o paraibano emenda trabalhos em que a diversidade, no sentido mais amplo, predomina. Como as séries Sob pressão, na Globo, e Todxs nós, na HBO e a novela Verdades secretas II, no Globoplay. Em 2023, após uma rápida passagem por Mar do sertão e Os outros, ele encara um personagem fixo em Guerreiros do sol, obra que está sendo gravada para ir ao ar no ano que vem. Antes, poderá ser visto, em novembro, no especial Histórias (im) possíveis, na Globo.

Kelner Macêdo é um artista de legados. Na primeira incursão na tevê, ele protagonizou a emblemática cena de beijo realista entre dois homens em um canal aberto, coincidentemente em um dia histórico para a comunidade LGBTQIAPN+ brasileira. Nessa sequência da terceira temporada da série Sob pressão, da Globo, a demonstração romântica entre o casal que se formava foi ao ar no dia em que a homofobia foi criminalizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

“Foi uma confluência de todos os astros”, resume o artista, que ganhou personagem fixo na produção e logo emendou outra série que celebrou a diversidade: Todxs nós. “É uma alegria, um deleite. Eu quero falar sobre essas coisas, falar sobre essas imagens que eu não vi quando criança, na adolescência”, afirma, em conversa exclusiva com o Próximo Capítulo.

Próximos trabalhos: Guerreiros do sol e Histórias [im] possíveis

Nascido em uma cidade da Paraíba com uma população em torno de 20 mil habitantes chamada Rio Tinto, a 55km de João Pessoa, Kelner conta que o interesse pelas artes sempre existiu, mas não havia estímulos. “Sem muito acesso a teatro, cinema, manifestações artísticas e a aulas de cinema e teatro, era quase impossível um garoto dizer que queria ser ator quando crescesse”, argumenta ele, que veio de família pobre e trabalha desde os 12 anos, em funções como balconista e animador de festa. No vestibular, prestado na capital, não optou por artes cênicas. Fez psicologia, mas só conseguiu ficar dois anos no curso. “Me bateu a crise, não era ali que eu queria estar”, confessa.

Em João Pessoa, ao perceber que era possível se profissionalizar como ator, o ex-futuro psicólogo que nunca deixou de analisar o humano se jogou na faculdade de artes cênicas. Tempos depois, se inscreveu para um teste de filme e foi escolhido. “Recebi um sim do vestibular da vida. E eu decidi que era ali que eu iria estar. Vim caminhando e surfando, vivendo só disso. Mas é uma caminhada de lacunas e buracos que a gente vem trilhando e realizando. Agora, é o momento de celebrar na mesma proporção com que se cobra”, assinala o artista, que prioriza realçar as múltiplas camadas dos personagens.

“Venho construindo, tijolo por tijolo, e tenho muita obra pela frente. É legítimo diversificar a paisagem humana, trazer frescor. Uma pessoa nova, quando aparece, causa uma curiosidade genuína. Desperta o interesse e estamos vivendo esse momento”, conclui Kelner, que estreia, em breve, o segundo longa-metragem, chamado A metade de nós, de Flávio Botelho. Rodado em 2019, em São Paulo, o filme aborda o suicídio e como as pessoas em redor seguem a vida após a tragédia familiar. 

ENTREVISTA/ Kelner Macêdo

Kelner Macedo, ator. | Crédito: Ian Rassari

A série Os outros retrata a violência de uma forma crua e muito próxima da realidade. Gostaria que comentasse sobre isso.

O Lucas Paraizo [autor da série] é um gênio. Ele já havia feito Sob pressão e eu sou encantado com a obra dele. A gente está vivendo um momento esquisito enquanto espécie e humanidade. A que ponto chegamos? É um pouco sobre a falha da caminhada até aqui. Falhamos em vários quesitos. Perdemos a escuta, o senso humano de dialogar, de chegar próximo. Cheio de dedos, pisando em ovos, em um campo minado, os ânimos à flor da pele. As pessoas querem impor seu ponto de vista de forma absolutista. Trilhamos lugares muito perigosos e chegamos a esse colapso.

Como será sua participação em Guerreiros do sol?

É um imaginário que compactuo, algo que tenho comigo, muito ancestral. Sou paraibano, toda minha família é nordestina, e a obra traz esse imaginário local, regional. A gente retrata a época do cangaço, do Lampião, esse momento do sertão nordestino, marcado por uma grande seca entre os anos 20 e 30. Um ambiente de faltas e vazios, de uma espera louca pela chuva que nunca vem. Está sendo prazeroso mergulhar nos antepassados, buscar uma linguagem mais ancestral, ir na raiz. Muito especial e bonito. Logo todos irão conhecer o Zé do Bode, um cangaceiro. Não posso adiantar muito, ainda.

E, assim como Mar do sertão, é uma produção que retrata o Nordeste encenada por intérpretes nordestinos…

É um momento muito esperado. O nordestino era sempre um tipo de estereótipo associado ao alívio cômico. Figuras engraçadas e exageradas. Isso de complexificar a natureza humana, trazer mais para perto, é quase uma reparação. Assistir essas produções é também uma renovação da verdade. Porque estamos falando de propriedade. Entendo que o ator pode fazer uma prosódia, mas também pode ser uma pessoa nordestina que esteja ali inserida e representada. É genuíno representar o nosso povo e contar essa nossa história.

Já sofreu exigência de neutralização de sotaque?

Já me pediram para reduzir o sotaque. Não falam dessa forma para um ator do Sudeste. Há uma xenofobia, um preconceito velado, sim. Em testes de elenco, especialmente, há uma exigência em neutralizar o sotaque nordestino.

Com personagens gays em Corpo Elétrico e nas séries Todxs Nós e Sob pressão, você não teve medo de ficar rotulado?

Quando avançarmos em sociedade e formos mais igualitários e podendo pisar a mesma plataforma, todo mundo poderá fazer tudo, porque essa é a natureza do ator: interpretar qualquer pessoa. Vivemos um momento no Brasil e no mundo em que essas identidades que foram abafadas da história e da vida social podem vir à tona e pegar seu papel de volta. Ter uma trans na novela, histórias gays nas tramas, que lindo! Considero uma caretice e um jeito de olhar numa lógica velha e patriarcal limitar esses espaços e que bom que eles estão se abrindo. Para mim, é uma alegria, um deleite! Eu quero falar sobre essas coisas, falar sobre essas imagens que eu não vi quando criança, na adolescência. Fazer esses trabalhos é me ver lá e criar esse imaginário para quem está vindo depois de mim. A gente ocupar esse espaço é de fundamental importância. Tenho medo, mas é de não trabalhar, de a carreira acabar. Tenho prazer em interpretar personagens. Me choca o quanto estamos em uma conversa antiga. Hoje, estou fazendo tantas personagens! O trabalho artístico está no campo da alma. E se quiserem me dar mais personagens LGBTQIAPN+, estarei aqui para interpretá-los sempre.

O que representa para você ter protagonizado a cena de Sob pressão?

Foi uma euforia e uma surpresa. Foi uma confluência de todos os astros. Todos fomos pegos de surpresa. Não era uma questão para a série. Eu celebrei muito e fiquei muito feliz. Dois homens um de frente pro outro, se querendo, se beijando e mexendo com todo o mundo que assiste. Foi feito com cuidado, em um lugar gentil e amoroso. Nossos corpos ocupando aquele espaço foi muita felicidade. Era um momento de luta de narrativas e foi um impulso para o que está sendo visualizado agora. E Sob pressão é um trabalho excepcional dentro dessa linguagem específica de mergulhar sem medo nessa natureza humana crua, densa e encorpada.

Na séries Todxs nós, na HBO Max, e Os outros, no Globoplay

Falando em corpos, você atuou em alguns trabalhos com forte viés erótico. A sexualização do artista é algo que te incomoda?

A nudez não me incomoda. Ficar preso dentro de uma caixa me incomoda. Adoro fazer, acho que o corpo é a máquina de produzir sentidos eróticos, me interessa muito, é pulsão de vida. Mergulhar nessa proposta é interessante, mas não quero fazer só isso. Porém, eu tenho essa energia, muito solar, apaixonado pela vida, talvez eu atraia esses lugares de erotismo. Devo ter essa flecha apontada para mim.

Quem são seus ídolos?

No trabalho, tenho a sorte de ser amigo de vários ídolos, cercado por pessoas que admiro. Sou fã dos meus amigos, e tem muita gente desconhecida que é muito potente acontecendo no meu entorno, ao meu redor, vejo muita força vital que me admira. Mas meu ídolo é minha avó, que me criou. Maria José, dona Mazé, a pessoa mais adorável do mundo, a mais amorosa, bem pisciana. Com ela aprendi que a vida é babado e a gente tem que se jogar.

Que personagem é seu maior sonho interpretar?

Todos os personagens me levam a um lugar muito novo e eu gosto de experimentar isso. Quero muito interpretar pessoas diferentes de mim, outras linguagens, talvez um filme de terror. Filmes de ação têm sido um bom experimento. Personas diferentes e complexas são minhas favoritas. Sou sagitariano e me atraio pela liberdade de experimentação. E eu venho construindo tijolo por tijolo, tenho muita obra pela frente. É legítimo diversificar a paisagem humana, trazer frescor. Uma pessoa nova, quando aparece, causa uma curiosidade genuína. Desperta o interesse e estamos vivendo esse momento.

Patrick Selvatti

Sabe noveleiro de carteirinha? A paixão começou ainda na infância, quando chorou na morte de Tancredo Neves porque a cobertura comeu um capítulo de A gata comeu. Fã de Gilberto Braga, ama Quatro por quatro e assiste até as que não gosta, só para comentar.

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