As noites de terça-feira na Globo têm sido um bom exercício para quem busca unir diversão e reflexão em uma só atração. Depois da novela A dona do pedaço (que não traz reflexão nenhuma, a não ser porque não assistí-la), entram em cena Segunda chamada e a segunda temporada de Filhos da pátria ー nesta ordem se a Globo mais uma vez não mudar de ideia. Cada uma a sua maneira, Segunda chamada e Filhos da pátria nos convidam a pensar sobre o Brasil fora da tela.
Segunda chamada está apenas no começo – nesta terça (22/10) será exibido o terceiro episódio, mas já mostrou a que veio. Os professores da escola pública Carolina Maria de Jesus, numa periferia em São Paulo, enfrentam a cada episódio uma noite em que precisam dar aulas, mas muito mais do que isso, têm que driblar a precariedade da educação pública no país. Eles passam por problemas como goteira e falta de segurança na escola, necessidade de ter vários empregos por causa do baixo salário, e o desafio de manter alunos de várias idades interessados no conteúdo.
O texto de Carla Faour e Julia Spadaccini flerta com a realidade a cada momento, seja quando os professores têm que intervir para que a aluna transexual Natasha (Linn da Quebrada) possa usar o banheiro feminino, seja quando um aluno dorme ou não se concentra em sala por ter trabalhado o dia inteiro. A realidade, nua e crua, ainda aparece no cenário ー a série tem cenas gravadas em uma escola abandonada ー e em tocantes depoimentos exibidos no fim de cada episódio.
Além do texto de Segunda chamada, não podemos deixar de falar das atuações. O time de professores tem Debora Bloch (Lúcia Helena), Paulo Gorgulho (Jaci, melhor momento dele em vários anos de tevê), Hermila Guedes (Sonia) e Silvio Guindane (Marcos André). Enquanto os alunos são bem representados, entre outros, por Linn da Quebrada, Mariana Nunes (a Gislaine), Teca Pereira (perfeita como dona Jurema) e Zé Dumont (Silvio). Todos dando aula de interpretação.
Logo depois da crueza de Segunda chamada, entra em cena uma comédia: Filhos da pátria, com texto de Bruno Mazzeo. Mas não ache que o fato de a segunda temporada da série ser uma comédia quer dizer que será um programa raso. Filhos da pátria está longe disso.
Na atração, os mesmos personagens que, na primeira temporada viveram em 1822, estão em 1930 ー mas sem que tenham envelhecido, note-se. Nos anos 1930, o país passava por questões políticas que não são esquecidas pelo texto de Filhos da pátria. Pelo contrário, a realidade da época dá o tom da série, que aproveita para fazer referência aos dia de hoje. Afiado, o texto liga Getúlio Vargas a Bolsonaro ou a Dilma Rousseff de forma sutil e corajosa.
Alexandre Nero está ainda melhor do que na primeira temporada como Geraldo Bulhosa. Em entrevista ao Próximo Capítulo que você lê na íntegra aqui, ele diz que “a grande brincadeira da série é essa: a graça e a desgraça estão no mesmo ponto. A graça da série é que verificamos que estamos parados no mesmo lugar há anos. A desgraça, não da série, mas do país, é que verificamos que estamos parados no mesmo lugar há anos. Patinando sem sair da mesma poça de lama.”
Geraldo é um funcionário público que se encanta pelas facilidades da corrupção trazidas pelo chefe dele, Pacheco (Matheus Nachtergaele), que costuma usar laranjas para sair ileso de seus esquemas. Geraldo é casado com Maria Teresa, personagem de uma inspirada Fernanda Torres. Nesses primeiros episódios foram dela os melhores momentos, com a personagem se refestelando com a derrocada da irmã e com as ascensão dos militares ao poder.
Ela encontra oposição é na filha, Catarina (Lara Tremouroux), que passa um tempo na capital e volta com ideias “avançadas” para a época. Mais um meio (como se a própria corrupção não bastasse) de assuntos atuais, como a liberação feminina e preconceito racial, virem à tona. Seria bom dizer que a discussão trazida por Filhos da pátria está datada, ficou na década de 1930, mas não é verdade.
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