É realmente incrível perceber como um gênero pode ser infinito. Entre todos, talvez o que mais tem de se provar seja a saturada vertente das comédias teens de high school, e mesmo assim, Eu nunca… (Never have I ever, em título original) conseguiu se sobressair em meio a uma infinidade de produções semelhantes (especialmente na Netflix) — e ainda com um saldo positivo.
Criada por Mindy Kaling (The office) e Lang Fisher, a nova produção original do streaming chegou ao ar no fim de abril e conta (em apenas 10 episódios de meia hora) os altos e baixos de Devi (Maitreyi Ramakrishnan). A garota, de descendência indiana, está chegando no ensino médio disposta a arranjar um namorado — mais especificamente: Paxton Hall-Yoshida (Darren Barnet), o garoto mais bonito da escola —, ser mais cool, mais popular e, enfim, ser a garota que arrasaria em séries teens (sim, uma das melhores partes de toda a produção, inclusive, é essa espécie de metalinguagem autodepreciativa).
Atenção: spoiler a seguir!
O que Devi não percebe, entretanto, é que a “mudança de atitude” está bem mais próxima do trauma de ter perdido o pai em circunstâncias traumatizantes, do que de necessariamente ter sucesso social. Toda essa nova “saga” de Devi é apenas uma cobertura para não ter de lidar com os problemas familiares que lhe cercam.
Associada a morte do pai, Devi também tem de enfrentar a relação conturbada que vive com a mãe, a “inveja” da prima bonita e cercada de rapazes e a forma como a cultura indiana parece lhe afastar do topo da pirâmide social da escola. Por falar no ambiente escolar, a garota compartilha duas importantes amizades no lugar: Fabiola (Lee Rodriguez) e Eleanor (Ramona Young).
Assim como Devi, as duas também têm de lidar com os desafios da vida. Eleanor não consegue ganhar o amor da mãe, e Fabiola encara as descobertas da orientação sexual. O trio é arrojado e entrega uma amizade que sofre quedas, mas se prova firme (como em toda produção teen de respeito).
Outro importante personagem (talvez até mais que as próprias amigas) é o solitário e arrogante Ben (Jaren Lewison). Desde o jardim de infância, Devi e Ben brigam para se destacar como os melhores alunos da escola, o que cria entre os dois uma antipatia mútua, mas que acabará se transformando em amor.
A dinâmica entre os dois é divertida e fora da curva esperada pelo gênero (em relação a aproximação de Devi e Paxton Hall-Yoshida). Narrado pelo ator Andy Samberg (os episódios de Devi são narrados pelo ex-jogador de tênis, John McEnroe), Ben tem até um episódio só para si — um bom respiro em relação a todos os problemas de Devi —, onde fica claro que o desejo de superioridade que o garoto frequentemente expressa nasce a partir de um lar solitário.
Outro detalhe importante ressaltar em Eu nunca…, se refere ao contexto mais real dos personagens. Seja na descendência indiana de Devi, passando pelo tom mais real de referências estéticas e padrões de beleza até mesmo na idade “mais adequada” dos atores. Eu nunca… tenta fugir ao máximo daquele desconforto da hipersexualização dos jovens com corpos esculturais — e irreais — da maioria das séries teens.
Eu nunca… deixa de positivo uma experiência extremamente divertida de se assistir. A todo momento piadinhas são jogadas de forma despretensiosa, o que torna o enredo mais inteligente e dinâmico (desde a simulação da ONU com toda a “pompa” da Nova Guiné contra os Estados Unidos, até a cena do pedófilo fazendo Ben assoprar uma pizza). E o drama em relação a Devi e a perda do pai, misturado com os problemas com a mãe e até a “desconexão” da garota com a cultura indiana (que até forçam uma lágrima no episódio final), também faz Eu nunca… ir bem além da comédia.
Naturalmente, a produção não é perfeita. As atuações (que engloba estreantes) tem tropeços consideráveis e a superficialidade de certos dramas — mais especificamente das amigas, Eleanor e Fabiola — chegam a ser desconfortáveis. Entretanto, Eu nunca… mostra como as séries de apelo teen ainda têm uma infinidade de facetas que merecem ser exploradas (e assistida pelos fãs).
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