Patrick Selvatti
Há dois anos, noveleiros do Brasil — e por que não dizer do mundo? — receberam, com muito pesar, a notícia da morte de um dos maiores do gênero. Autor de Escrava Isaura (1976), a novela mais viajada da história brasileira, Gilberto Braga não era nada menos que genial. E sua obra primorosa vai além da estrondosa e aclamadíssima Vale tudo (1988), cuja autoria dividiu com Aguinaldo Silva.
Tipos tão odiosos quanto amados como Odete Roitman eram a base das narrativas riquíssimas elaboradas pela mente do craque da dramaturgia. E, por isso mesmo, eram comuns. A própria Beatriz Segall (saudosa, brilhante e inesquecível intérprete da vilã-mor da teledramaturgia) teve a oportunidade de brilhar em duas outras ricaças esnobes, como a Lourdes Mesquita de Água viva (1981) e a Celina de Souza Prado Cardoso de Dancin Days (1978). Em todas elas, havia ali o texto sofisticado e elegantemente irônico de Gilberto alfinetando a alta sociedade carioca da época.
E isso ele fazia com maestria, especialmente alicerçado na composição feminina. Grandes atrizes emprestaram seus corpos e vozes para madames detestáveis. Como a Yolanda Pratini (Joana Fomm) de Dancin Days (1978), a Chica Newman (Fernanda Montenegro) de Brilhante (1981), a Renata Dumont (Tereza Rachel) de Louco amor (1983), a Tereza Fraga Dantas (Glória Menezes) de Corpo a corpo (1984), a Constância Eugênia (Nathália Thimberg) de O dono do mundo (1991), a Loreta Pelegrini (Marieta Severo) de Pátria minha (1994), a Marion Novaes (Vera Holtz) de Paraíso tropical (2007) e a Beatriz Rangel (Glória Pires) de Babilônia (2015). E não dá para desprezar as peruas divertidas Stella e Muriel, vividas por Tônia Carrero, respectivamente, em Água viva e Louco amor.
Também desenvolvia, com muito requinte, alpinistas sociais que vêm da inesquecível Maria de Fátima feita por Gloria Pires em Vale tudo à memorável Laura Prudente da Costa de Cláudia Abreu em Celebridade, passando por Ligia Prado (Betty Faria) em Água viva, Lídia Laport (Vera Fischer) em Pátria minha, Taís Grimaldi (Alessandra Negrini) em Paraíso tropical e Inês Junqueira (Adriana Esteves) em Babilônia. E tipos populares de caráter duvidoso, porém de bom coração e muito sex appeal, como a Darlene (Deborah Secco) de Celebridade e a Bebel (Camila Pitanga) de Paraíso tropical.
Sensível e antenado, Gilberto era um estudioso da natureza feminina. Com muita dignidade, criou personagens fortes, batalhadoras e honestas para contrapor às vilãs cruéis que moldava. Raquel Accioly (Regina Duarte), de Vale Tudo, é o exemplo mais forte da mulher brasileira que retratava. Mas tem, ainda, a Júlia Mattos (Sônia Braga) de Dancin Days, a Janete (Lucélia Santos) de Água viva, e a Maria Clara Diniz (Malu Mader) de Celebridade.
Para Malu, aliás, Giba escreveu inúmeras mulheres emblemáticas: as de época Lurdinha (Anos dourados, 1986), Maria Lúcia (Anos rebeldes, 1992) e Ester Delamare (Força de um desejo, 1999) e as contemporâneas Márcia (O dono do mundo) e Paula Lee (Labirinto, 1998) — o mais perto que a atriz chegou de um perfil mais imoral. Era a musa de Giba, ao lado de Cláudia Abreu — para quem, além da vilã Laura, desenhou personagens icônicas como a magistral Heloísa de Anos rebeldes, a Alice de Pátria minha e a Olívia de Força de um desejo — e de Glória Pires — que esteve em oito produções do autor, compondo da adolescente mimada Marisa de Dancin Days, em 78, à ardilosa Beatriz da derradeira Babilônia, em 2015.
Boa parte desse rol de mulheres extraordinárias gilbertobraguianas podem ser visitadas no Globoplay. Algumas, entretanto, compõem a lista de débitos da plataforma junto ao público. É o caso do quarteto que abriu uma sequência de títulos anuais na década de 80 — Água viva, Brilhante, Louco amor e Corpo a corpo — e O dono do mundo. A outra que figurava na lista era Pátria minha, que chegou ao streaming inseriu no catálogo neste mês de outubro.
Os fãs de Gilberto Braga podem conferir a primeira reprise dessa obra de 1994, em que Vera Fischer deu vida a Lídia Laport, uma mulher linda, inteligentíssima e amoral, que fazia de tudo para subir na vida. De estimular o casamento do filho único, Rodrigo (Fábio Assunção), com uma jovem herdeira, a ela própria dar o golpe no multimilionário Raul Pelegrini (Tarcísio Meira), o avô desprezível da garota.
Exibida apenas seis anos depois, a novela era uma espécie de nova Vale tudo, com uma atualização da discussão sobre honestidade, moralidade e ética no Brasil. As bandeiras eram levantadas pelos personagens Pedro (José Mayer), que voltou para o país após viver oito anos nos EUA, e Alice (Cláudia Abreu), a neta de Tarcisão, uma adolescente panfletária que pintou a cara de verde-amarelo pelo impeachment de Collor — em uma espécie de reencarnação da revolucionária dos anos 1960 Heloísa que a atriz viveu brilhantemente, dois anos antes, na minissérie Anos rebeldes (1992), do mesmo autor.
Infelizmente, Pátria minha foi profundamente prejudicada por problemas pessoais de Vera Fischer com o seu então marido Felipe Camargo, que fazia o Inácio na novela. A produção sofreu atropelos constantes com as ausências dos atores, seus personagens precisaram morrer em um incêndio, que terminou de tostar suas imagens, e a narrativa se perdeu na reta final. Ainda assim, prestigiar a obra é uma ótima forma de matar as saudades dos enredos e diálogos valiosos de Gilberto Braga. E, de certa forma, homenageá-lo.
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