Lançada em 31 de maio no catálogo da Netflix, minissérie Olhos que condenam retrata o caso de cinco jovens que foram injustamente acusados de um estupro no Central Park
“- Por que nos tratam assim?
– De que outra maneira nos tratariam?
Esse é um dos diálogos que permeia a minissérie Olhos que condenam, criada, dirigida, escrita e pensada por Ava DuVernay (nome por trás do filme Selma) sobre um dos casos mais emblemáticos da história norte-americana que envolve a condenação e a prisão de cinco jovens negros do bairro do Harlem sob a falsa acusação de estupro de uma mulher no Central Park em 1989. Os questionamentos dos personagens, que ocorrem enquanto eles aguardam a primeira audiência do caso — exibida no segundo episódio –, servem para definir a principal temática e debate da produção: a invisibilidade dos jovens negros, que historicamente estão entre os que mais morrem e os mais encarcerados do mundo.
Sob essa perspectiva, Olhos que condenam quer, como o nome original diz When they see us (Quando eles nos vêem, em tradução livre), colocar luz a uma história que aconteceu por erros graves no início da investigação e pela forma como Korey Wise, Antron McCray, Yuseff Salaam, Raymond Santana e Kevin Richardson foram tratados na noite de 19 de abril, o que os levou a uma condenação injusta e uma absolvição apenas 13 anos depois.
A narrativa começa exatamente na noite de 19 de abril de 1989, quando quatro dos cinco jovens protagonistas — Antron (Caleel Harris), Yuseff (Ethan Herisse), Raymond (Marquis Rodriguez) e Kevin (Asante Blackk) — participavam de uma “arruaça” no Central Park com outros adolescentes. O fato aconteceu na mesma noite em que Patricia Meili (Alexandra Templer) foi estuprada no mesmo local. Assim que o corpo da mulher foi encontrado desacordado na mata a polícia iniciou uma busca nas redondezas do Central Park, lá encontraram o grupo de jovens e os quatro foram apreendidos. Mesmo sem ter estado no local, Korey Wise (Jharrel Jerome) acabou seguindo para a delegacia apenas para acompanhar o amigo Yuseff.
É na delegacia que a história ganha corpo e onde os meninos acabam sendo acusados injustamente pelo estupro. Com uma ideia fixa na cabeça, a promotora Linda McCray (Felicity Huffman) passa por cima da lei e vai contra a ausência de indícios e provas para criar a narrativa que lhe convém: de que os jovens — mesmo sem se conhecerem — praticaram juntos o abuso sexual. Para isso, ela faz com que os agentes pressionem os quatro, que na época tinham menos do que 16 anos, a admitirem de qualquer jeito o crime, sem a presença dos pais ou de advogados. Fica a cargo de Korey, o único com 16 anos completos — o que nos EUA quer dizer que um adolescente já pode responder criminalmente por crimes hediondos –, unificar essa narrativa.
Crítica de Olhos que condenam
Em quatro episódios, Olhos que condenam vai se destrinchando sobre essa história real que revela um dos maiores erros do sistema judiciário norte-americano. O primeiro episódio, um dos mais difíceis de assistir da minissérie, tem como foco o tempo em que os jovens passaram na delegacia sofrendo ameaças e agressões tanto físicas quanto psicológicas. O segundo retrata as audiências e o julgamento que geraram a condenação dos cinco a reclusão de 5 a 14 anos.
O terceiro mostra o período em que quatro dos cinco jovens estiveram na cadeia cumprindo o período de pena até o momento em que eles saem e buscam viver a partir desse trauma. O quarto, o mais pesado da produção, fica na narrativa de Korey, o único a cumprir desde o início a pena em uma cadeia regular, já que ele tinha 16 anos na época. Cabe ao episódio também mostrar os desdobramentos do caso, a reabertura em 2002 quando o verdadeiro culpado Matias Reyes (Reece Noi) assume a responsabilidade e o momento em que os cinco são absolvidos.
Não é fácil assistir Olhos que condenam. É dificílimo. Dói. Incomoda. Principalmente porque é tudo verdade. O sofrimento dos cinco meninos na delegacia está muito bem explicitado na tela, é latente e é um dos trunfos de Ava DuVernay e do elenco da primeira parte.
Mesmo sendo uma história em que se sabe início, meio e fim, é praticamente impossível não querer entrar na tela ou torcer para que se tenha um desfecho diferente. Só que não importa a torcida, não tem. É a realidade nua, crua e dura desse caso em que os cinco meninos perderam a adolescência para cumprir uma pena de um crime que nunca cometeram.
O drama de tudo isso também é muito bem transpassado na trama. Ava DuVernay mostra desde as pequenas coisas que eles perderam até as maiores. Revela desde o início da pena até o momento em que eles saem e enfrentam barreiras para se recolocarem na sociedade — a vida pós-sentença também não é fácil. Nos quatro episódios, o telespectador é levado ao inferno que esses meninos viveram. Mas não só eles, as famílias deles também. Afinal de contas, a prisão nunca é solitária. Ela arrasta também a família.
Olhos que condenam merece todos os prêmios possíveis. Primeiramente por colocar na tela uma história difícil e real de uma forma extremamente humana e respeitosa com essas vítimas. Por levantar um debate e expor uma narrativa invisível. E ainda pela forma como direção e elenco contam isso. Todos parecem ter mesmo encarnado os personagens reais.
Asante Blackk, que vive Kevin na adolescência, é o destaque do primeiro episódio. Jharrel Jerome, o único que interpreta o mesmo personagem na adolescência e na infância, é outro ator que merece aplausos ao retratar o pesadelo vivido por Korey Wise durante toda essa saga. Mas não só eles, o elenco como um todo é extremamente preciso.
Olhos que condenam é daquelas produções que refletem a importância do entretenimento como incentivador de debates. Assim como a própria Ava DuVernay diz no especial When they see us now com Oprah Winfrey — também disponível na Netflix, no entanto, só em inglês –, “o objetivo era criar algo que fosse um catalisador para uma conversa”. E a missão foi cumprida!