Aos 5 anos, Damien é um menino como vários da faixa etária dele. Adora brincar com os coleguinhas e nutre uma paixão por uma menina que não repara nele. Até que a turma está reunida para uma apresentação teatral e a aluna que seria a protagonista passa mal. Precisavam de uma criança para interpretar Branca de Neve e Damien se oferece. “Ela finalmente reparou em mim”, afirma o rapaz, já adulto, ao narrar a primeira cena da comédia Eu não sou um homem fácil, filme perdido em meio ao mar de séries da Netflix.
A narração é feita para a psicanalista a quem Damien (Vincent Elbaz) procura não por ter se tornado um machista incorrigível (será mesmo que ele não tem jeito?), mas pela estranha mania de demorar demais escovando os dentes. No trabalho, Damien é nome de confiança dos chefes (todos homens, naturalmente) e é ovacionado ao apresentar o protótipo de um aplicativo que marca quantas vezes um homem faz sexo por ano.
Damien é daqueles homens que colecionam mulheres ー ou melhor, ele coleciona transas ー e que não se furta a acompanhar as mais bonitas com o olhar e com um temível “fiu-fiu”. Numa dessas olhadas de (literalmente) virar o pescoço, Damien dá de cara com um poste, fica desacordado e desperta num mundo em que os papéis de homem e mulher estão completamente invertidos.
O detalhe: ele não está incluído nessa inversão e continua pensando da mesma forma. É como se Damien representasse o homem moderno perdido no meio do empoderamento feminino. Tentando acertar, respeitar e entender o que está acontecendo, Damien se assusta, bate a cabeça no poste para ver o que acontece, mas não se entrega.
Um dos maiores baques de Damien é encontrar o cargo de chefia da empresa onde ele trabalha ocupado por uma mulher, que logo o dispensa. Ele acaba indo trabalhar como empregado pessoal de Alexandra (Marie Sophie Ferdaneé), que o choca pela liberdade com que explora sexualmente os homens. É, Damien. A nova Alexandra ー no primeiro mundo eles se conhecem e ela, ousada, dá um fora nele ー praticamente é você em outro corpo, meu caro! “O mundo está de cabeça para baixo”, queixa-se Damien para a mesma psicanalista de antes.
Impossível não ler a premissa de Eu não sou um homem fácil e não se lembrar da comédia nacional E se eu fosse você. As semelhanças, no final das contas, são poucas: os dois longas são divertidos e contam com as interpretações como o grande chamariz. Assim como Tony Ramos e Gloria Pires, Vincent Elbaz e Marie Sophie Ferdaneé estão impagáveis. A cena de quando ele tem um acesso de riso num bar ao presenciar a discussão entre homens sobre a paternidade é contagiante; a confusão causada quando ele nota a inversão entre os papéis do pai e da mãe no negócio da família e a sequência de depilação (clássico desse tipo de filme) também rendem boas risadas.
O diferencial é que Eu não sou um homem fácil vai além da armadilha de ser uma boa comédia e pronto. Se a premissa do filme de Eleonore Pourriat não é das mais originais, a intenção de trazer à luz uma discussão oportuna com leveza, é. Longe de apenas divertir, o longa leva à reflexão. “Me tornei uma vítima. Era um abusador. Não existe o meio termo?”, dispara Damien ao perceber o quanto é incômodo ser visto como objeto sexual.
Além do empoderamento feminino, o preconceito é tema da comédia. Nesse novo mundo invertido, os homens passam a ser discriminados como a mulher é no de hoje. Mas outros grupos, como os gays, por exemplo, continuam na marginalidade. Aceitar as diferenças continua sendo, portanto, uma dificuldade desse ser humano mais “evoluído”.
O excesso de clichês em Eu não sou um homem fácil pode incomodar um pouco ー mesmo que a intenção aqui possa ser a de fixar os conceitos pela repetição. As mulheres podem sair às ruas sem camisa em dias quentes, fazem xixi de pé, trocam os maridos pelo futebol, assistem a qualquer jogo que passa na televisão, adoram carros e trocam pneu com facilidade incrível, os copeiros são sempre homens, as executivas, mulheres, a rainha vale mais do que o rei nas cartas do baralho ー não precisava de tanto.
Eu não sou um homem fácil tem um final surpreendente (calma! Não vou contar!), o que fecha o longa com chave de ouro. O filme, um acerto da Netflix, acaba agradando a todos ー ao homem perdido com as novas mulheres, às mulheres empoderadas, aos homens opressores, às mulheres oprimidas e aos que querem apenas uma comédia divertida e bem feita.
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