O núcleo da escola prestes a ser fechada vem roubando a cena em Amor de mãe. Liderados pela professora Camila (Jessica Ellen, leia entrevista com a atriz, que está ótima no papel), alunos e outros professores ocuparam um colégio público para evitar que ele seja demolido para dar lugar a um empreendimento.
Entre esses alunos está Joana, personagem defendida por Cacá Ottoni. A menina é uma das líderes do movimento dos alunos e desenvolveu um programa para ajudar uma colega a amamentar sem ser constrangida. “Entre as várias qualidades dessa novela, refletir corajosamente a realidade do país é a mais importante. Com certeza, o Brasil tem uma vasta população de jovens divididos entre estudo e trabalho que acabam naturalmente abandonando os estudos. Acredito muito na luta que retratamos na novela”, reflete Cacá, em entrevista ao Próximo Capítulo.
“Acho que o futuro está nas mãos da organização de secundaristas de escola pública e de professores, dispostos a lutar sem medo e sem arrego. Sei que é cômodo falar isso quando a polícia não está invadindo seu ambiente de trabalho com bala de borracha e gás lacrimogêneo, mas me coloco também dentro dessa luta como apoiadora”, completa.
Mãe da pequena Malu, Cacá entende bem os perrengues passados pelas protagonistas de Amor de mãe, Lurdes (Regina Casé), Thelma (Adriana Esteves) e Vitória (Taís Araujo). “A maternidade é cheia de contradições: ao mesmo tempo em que me considero mais forte depois do nascimento da Malu, também percebo que fiquei mais vulnerável, mais suscetível à emoção”, comenta.
Na entrevista abaixo, Cacá fala sobre feminismo, projetos infantis e no cinema e sobre a carreira de diretora. Confira!
A Joana mostra a dificuldade que alguns alunos da rede pública enfrentam por ter que trabalhar para ajudar no sustento da família. Acha que isso reflete a realidade do país? Como se preparou para esse lado da personagem?
Entre as várias qualidades dessa novela, refletir corajosamente a realidade do país é a mais importante. Com certeza, o Brasil tem uma vasta população de jovens divididos entre estudo e trabalho que acabam naturalmente abandonando os estudos. Quase todos saem perdendo com essa matemática perversa, em que o filho do juiz vira juiz ou algo equivalente de seu interesse e o filho do pedreiro tem que pintar para ajudar na economia familiar. Inclusive economicamente não é positivo para o país bater recorde de taxa de subemprego, de analfabetismo funcional, pelo simples fato de tantos brasileiros não conseguirem se formar no segundo grau. Mas acredito muito na luta que retratamos na novela. Sempre fui bolsista de escola particular, exceto na faculdade que estudei numa federal, para qual passei justamente por ter sido preparada na escola para isso. Tive que trabalhar e estudar só durante a faculdade porque não tinha como meus pais me sustentarem aqui no Rio, o que já foi suficiente para fazer da minha formatura um parto literalmente. Demorei 6 anos e meio e me formei grávida de 8 meses. Fico pensando nessa dificuldade vezes 100 quando se trata de uma aluna de ensino médio e escola pública, como é o caso da Joana.
A novela acaba mostrando a luta da Joana para ter acesso à educação. Como mãe de uma criança, como você vê o poder de transformação da educação na vida de uma pessoa? Tem medo de educar um cidadão para o Brasil de hoje, marcado pela polarização?
Para mim, a educação é alicerce, é base, é a única forma de se construir qualquer coisa, seja uma pessoa, um país ou um planeta. Nesse ponto ter uma filha no Brasil é desesperador. Vivemos em um país que optou por “desinvestir” no setor público que já se encontrava extremamente prejudicado. Somos governados por pessoas que propõem Emenda Constitucional de congelamento de investimento por 20 anos em educação e saúde, votam e ganham. É um filme de terror. Preciso me convencer todos os dias que uma grande transformação acontecerá num futuro bem próximo para que nosso destino não seja tão terrível quanto o que enxergo no horizonte. Toda a minha esperança está no tipo de mobilização que retratamos na novela. Acho que o futuro está nas mãos da organização de secundaristas de escola pública e de professores, dispostos a lutar sem medo e sem arrego. Sei que é cômodo falar isso quando a polícia não está invadindo seu ambiente de trabalho com bala de borracha e gás lacrimogêneo, mas me coloco também dentro dessa luta como apoiadora. A liderança dessas grandes revoluções sempre terá que partir do oprimido diretamente. Mas é nosso dever dar as mãos a todo manifesto em prol da educação. Nunca tive tanta admiração por um movimento político-social como tive pela primavera secundarista em São Paulo, que depois se estendeu por todo o território nacional em 2015 e 2016. Fazer menção a esses jovens organizados em luta é uma honra.
Com a ajuda da Camila, a Joana vai desenvolver um aplicativo para ajudar uma colega a amamentar na escola. A mulher ainda passa por muitos preconceitos ao amamentar? Não estamos caminhando para uma melhora nesse sentido?
Estamos caminhando a passos muito mais curtos do que eu gostaria nesse sentido. Particularmente nunca me senti coagida, mas a quantidade de amigas que relatam situações constrangedoras simplesmente por alimentarem seus filhos no metrô ou num banco de praça é preocupante. O que não podemos fazer é nos esconder por conta disso. Eu amamentava a Malu em qualquer lugar com muito orgulho de poder viver esse momento tão especial com ela. Acho que esse tipo de situação revela o quanto corpos femininos são vulgarizados e o quanto isso nos oprime e enfraquece. Por isso apoio todos os movimentos de combate a objetificação de nossos corpos. O simples fato de não podermos tirar a camisa, enquanto os homens podem parece mínimo, mas é imenso, a ponto de parecer fazer sentido pra maior parte das pessoas. Quão mais donas dos nossos corpos e livres pra fazermos o que quisermos com eles formos, mais avançaremos nessas mudanças tão necessárias.
Ser mãe mudou de alguma forma sua maneira de atuar?
Ser mãe mudou minha forma de olhar o mundo. Agora sem dúvida existe uma urgência muito maior em tudo o que faço. A maternidade é cheia de contradições: ao mesmo tempo em que me considero mais forte depois do nascimento da Malu, também percebo que fiquei mais vulnerável, mais suscetível à emoção. Depois do nascimento da Malu todos os momentos que compõem a minha individualidade ganharam uma importância muito maior também. Meu ambiente de trabalho passou a ser o único lugar em que de fato me permito desligar a função “mãe”. Ou pelo menos deixar em modo avião, para depois reencontrar com a Malu com a energia renovada.
Seu núcleo de Amor de mãe, a série Segunda chamada e outras produções estão falando sobre educação na televisão aberta. Qual a importância de levarmos essa discussão ao público?
A maior importância de todas. Nada é mais importante do que a educação. No entanto vivemos num país em que o professor é desvalorizado, mal remunerado, as instituições públicas se encontram em situação de precariedade máxima e o corte de verba pro setor só aumenta. Essa discussão nunca foi tão importante como agora. Nenhum país evolui sem investimento em educação.
Você fez Flicts, inspirado no universo de Ziraldo, e agora está em cartaz com Ana Fumaça Maria Memória, outra peça infantil. Fazer teatro dedicado a crianças e, portanto, à formação de plateia, é um ato político por si só?
Sem dúvida. Fazer teatro é um ato político. Principalmente no atual momento. O mais interessante para mim de trabalhar com teatro infantil é poder unir cultura a educação. Formar plateias dentro desse contexto de descaso absoluto do governo em relação à cultura é quase revolucionário. Fizemos algumas apresentações de Ana Fumaça Maria Memória para turmas de escolas públicas. Às vezes pequenas ações funcionam tal qual um boicote para esse projeto de governo que propositalmente sucateia a educação a fim de manter mão de obra barata e privilégios pros poderosos.
A maneira como a plateia infantil reage é diferente da que a adulta reage. O que mais te encanta em cada uma delas?
Acho o público infantil o melhor do mundo. A sinceridade e a espontaneidade da infância são encantadoras. O infantil que estou fazendo, Ana Fumaça Maria Memória, aborda temas profundos, como a perda. Então é interessante observar como as crianças saem eufóricas e os adultos arrasados. Acredito que a criança tenha uma capacidade maior de lidar de forma lúdica com a morte.
Você faz parte do projeto Enfermaria do riso. Conte um pouco mais sobre esse trabalho como palhaça… A arte pode curar?
O programa Enfermaria do riso faz parte dos projetos de extensão da UniRio. Algumas pessoas pensam que por ser um programa de formação de palhaço de hospital é tudo uma grande brincadeira, no entanto é necessário muita seriedade, muita disciplina e o triplo de sensibilidade para atuar no hospital. A começar por todas as regras de assepsia e a gravidade de determinados casos. Acredito que a arte provoca o cérebro pra pensar, o coração para sentir, dá uma sacudidela na alma e enche os olhos de brilho. Mas o trabalho do palhaço de hospital é menos romântico. Às vezes o valor de nossa atuação estava justamente em aceitar o “não” de um paciente. Ou em convencer uma criança em estado grave de que existe alguém no mundo em situação pior do que a dela: o palhaço. Ninguém é mais torto, mais inadequado, mais suscetível ao fracasso do que o palhaço. Por isso eu acho que o valor desse trabalho não está em buscar curar pessoas, mas torná-las capazes de realizar a cura em você, sempre envolvido até o último fio de cabelo em confusão e com o nariz vermelho de tanto bater com a cara na porta.
Você estará no filme O auto da mentira, do José Eduardo Belmonte. O que pode adiantar sobre esse projeto?
O filme é composto por cinco histórias paralelas, todas baseadas em casos que o Ariano Suassuna contava em suas palestras. A minha história é a última, intitulada Disney. A Lorena, minha personagem, é uma jovem estagiária de uma agência de publicidade. Ela tenta se incluir a qualquer custo, mas só dá bola fora. Sempre inadequada, Lorena é convidada para o Natal da firma e lá acaba mentindo pra tentar fazer amigos. Só que ela não imaginava a confusão que sua mentira causaria e tudo vai desabando em efeito dominó até que… acho que já falei demais.
Como está o projeto de Syd, espetáculo que deve marcar sua estreia como diretora no teatro? O caminho para a direção foi natural para você?
O caminho da direção não foi nem um pouco natural pra mim. Foi um apelo do Guilherme Prates que é meu amigo/irmão/confidente/psicólogo/parceiro artístico. Ele voltou de São Paulo com essa ideia e eu fui me acostumando aos poucos com a possibilidade de dirigir. Depois, conforme o projeto foi tomando forma, comecei a me encantar pelas nossas provocações. Mas confesso que estou ainda insegura, acho que só depois da estreia voltarei a dormir tranquila.
A peça é sobre Syd Barrett, do Pink Floyd. Como chegou ao projeto?
Fui recrutada pelo Gui Prates, que começou seus apelos narrando a história do Syd, que de cara já me despertou curiosidade. Depois emburacamos na biografia Crazy diamond: Syd Barrett e o surgimento do Pink Floyd e comecei a perceber assuntos que permeavam a vida do Syd e que me interessava falar. Além de conhecer mais a fundo esse guitarrista fantasma fundador do Pink Floyd, compositor, talentosíssimo é muito doido que foi o Syd Barrett.
O rock esteve sempre presente em sua vida? De que maneira?
O rock esteve pouco presente na minha vida. Eu obviamente conhecia o Pink Floyd, mas não fazia ideia da história do Syd Barrett por exemplo, até a chegada desse projeto na minha vida. O que eu mais ouço é samba. Mas o projeto abriu meu coração para o rock, tenho me interessado por esse universo cada vez mais, embora troque qualquer batida de cabeça por um samba no pé.
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