Despedindo-se da Marlene de Vai na fé, a atriz, dramaturga e poetisa capixaba, de 65 anos, fala sobre carreira e sua luta contra o machismo, o racismo e o etarismo por meio da arte
O público da tevê não está muito acostumado a ver Elisa Lucinda nas novelas. Aos 65 anos de idade e mais de 40 de carreira, a atriz, escritora, cantora, dramaturga, diretora, empresária, cerimonialista e poetisa esteve em poucas novelas — do início ao fim, no elenco principal, foram apenas três na Globo. Coincidentemente, a veterana bissexta está no ar em dose dupla na Globo. Desde o final de maio, quem assiste a reprise de Mulheres apaixonadas, sucesso de 2003, no Vale a pena ver de novo, reconhece na cantora Pérola, ex-mulher do personagem de Tony Ramos, o rosto que está brilhando, desde janeiro, como a matriarca Marlene, mãe da protagonista Sol (Sheron Menezzes) de Vai na fé. “Adoro fazer novela, mas aconteceu menos do que eu desejei”, afirma ela, que não se exime de fazer uma crítica à cultura da escalação de pretos para papéis menores e sem enredo próprio na teledramaturgia. Para ela, o sucesso da atual novela é justamente considerar a história da pessoa negra. “O povo preto representa 56% da população, ele consome e quer ser considerado”, avalia a capixaba.
Em entrevista, Elisa Lucinda — que é do candomblé — fala sobre a experiência gratificante de mergulhar no universo de uma família evangélica que desmistifica o estereótipo de que é uma religião “atrasada”. Ela confessa que se despiu do próprio preconceito. “Eu vi e quis que as pessoas pudessem ver como é o evangélico com amor”, declara, ressaltando também o quanto foi importante a forma como o etarismo foi retratado na trama por meio do romance de outono de sua personagem. “A partir do amor, a Marlene renasceu”, explica a multiartista que, na vida pessoal, é casada com um homem 30 mais jovem, o fotógrafo Jonathan Estrella. “Amores são encontros e não têm explicação”, conclui a incansável trabalhadora da arte, que que emenda a novela com a gravação da terceira temporada da série Manhãs de Setembro e as filmagens de um documentário sobre sua vida. Além disso, Elisa vai lançar três livros: dois de poesia e um de prosa.
A que você atribui o sucesso de Vai na Fé?
Uma novela histórica. O preto representa 56% da população, ele consome e quer ser considerado. Quem acertar essa fórmula, vai ficar milionário. E Vai na fé considera a história do preto. Três roteiristas da equipe da Rosane Svartman [autora da novela] são negros, uma diretora é negra, há negros na edição, no figurino, e os brancos são antirracistas. A novela representa uma mudança de postura e compreensão do negro como figura de respeito pelo que a gente sofreu até agora. Ela vai na contramão e põe na novela das 19h temas como racismo, diversidade sexual, estupro, abuso de vulneravel… Isso tudo com muitas marcas grandes patrocinando, e eu mesma fiz muitas dessas inserções que a gente só via no horário das 21h, por meio de personagens brancos. É como se o capitalismo tivesse enxergado que pode ganhar dinheiro onde sempre excluiu.
Como foi para você interpretar uma mulher evangélica? Marlene te inspirou de alguma forma a algum tipo de reflexão religiosa?
Meu sagrado é mais próximo dos orixás e do candomblé. A natureza é sagrada. Acredito que Deus é a natureza, é o existir, não é um cara sentado no trono, irritado, mandando em tudo. Esse Deus mais próximo do homem mandão, chato, patriarcal, opressor, eu não quero comigo. Muito obrigada, dá licença, mas eu preciso de outra companhia. Mas, para a Marlene, eu me despi desse preconceito de que evangélico não presta, que é atrasado, existia uma régua que eu desfiz. Eu conheci muitos evangélicos anti racistas, anti-homofobia, liberais. Me inspirei na Ilka Duarte, mãe da Sara, que trabalha comigo. Ambas são evangélicas e eu me dou muito bem com elas, porque elas são mais próximas do que eu sou. Eu vi e quis que as pessoas pudessem ver como é o evangélico com amor. O amor é o fundamento daquela família e isso ficou muito evidente.
A novela tratou muito do etarismo. Esse é um assunto que, de alguma forma, te atravessa?
Me atravessa porque afinal de contas eu acho que o mundo ainda tarda a ver essa nova geração de velhos que é a mais jovem que o mundo já viu. Essa geração de 60+ é viva, namora, tem relações sexuais, dança. Quando eu era criança, não existia a expressão “namorado da vovó”. A novela foi nesse lugar com a Marlene e com a Wilma [interpretada por Renata Sorrah]. A partir do amor por outro homem [o viúvo Horácio, interpretado por Francisco Salgado], a Marlene renasceu. Ela namorou, saiu pra trabalhar, deixou a bolha da família, resgatou o samba, fez as paródias, se livrou da peruca e revelou a alopecia. Ela vai tendo várias camadas de libertação. O personagem do Antonio Calloni se interessar por ela na gravação do filme também foi marcante. Ela passou a ter dois homens interessados nela, àquela altura da idade, e isso excitou as mulheres, que se identificaram com ela. Mulheres falavam comigo na rua. Algumas vieram chorando para falar da alopecia, falaram que iam ao SUS buscar ajuda psicológica. A alopecia atinge mais mulheres negras, a cabeça da mulher negra é mais ferida. O lance com o Horácio foi maravilhoso. Podia ter tido mais, como cenas de cama, mas a novela cumpriu muito bem esse lugar e eu me senti representada.
Você sofre preconceito por se relacionar com um homem bem mais jovem?
Não sofro preconceito. Acontece o preconceito, mas eu não sofro. A gente tira de letra. Eu digo: “Não é meu filho, o que ele faz comigo filho não faz comigo não”. E eu falo isso bem safada. Porque tem que naturalizar. A sociedade se acostumou a ver galã de cabelo grisalho, Zé Mayer, Fagundes, tudo gato, mas a mulher gata de cabelo grisalho, não. É um preconceito patriarcal que a gente vai vencendo. Com meu marido, acham que somos parentes, porque o Jonathan é preto e tem olhos verdes também. Mas é só explicar o papel dele e está tudo bem. Amores são encontros e não têm explicação.
Suas participações em novelas são bem raras. Você possui algum tipo de ressalva ao gênero ou os convites não aconteceram?
Adoro fazer novelas. Aconteceu menos do que eu desejei, mas na medida da minha independência. Não fiquei presa a convites. Estou sempre em cartaz no teatro [o monólogo autoral Parem de falar mal da rotina está em turnê há 21 anos] e eu amo. Não faço papel bobo, sempre me chamam para papéis fortes. Eu queria mais convites como esse, que tem arcos dramáticos tão desafiantes. Conheci tantos colegas que morreram sem ter esse desejo realizado. Grandes atores ficaram presos aos papéis periféricos, de serviço, passaram a novela toda como empregados sem importância no enredo, e isso nos maltratou muito. Então, minha ausência também é fruto desse racismo brasileiro. Mas isso está mudando de forma expoente e expressiva. A Clara Moneke [a Kate, de Vai na fé] é a marca desse novo modelo.
Você está no ar também na reprise de Mulheres Apaixonadas, sucesso de 2003. Em que lugar Elisa Lucinda mais mudou nesses 20 anos?
Olha, ótima pergunta, para a qual eu não estava preparada. Eu mudei fisicamente, mas eu gosto e me reconheço. Meu grande medo é não me reconhecer no espelho da minha alma. Me vejo com mais marcas do tempo, mas com a mesma sensualidade, o tesão pela vida, a vontade de inovar, sendo criativa, ousada, destemida… Essa Elisa eu quero encontrar toda hora. Agora, mudou a relação com o amor, estou mais tranquila. Já fui mais manipulada e oprimida nas relações. E também construí uma carreira de respeito no Brasil. Eu loto teatros, independentemente de estar fazendo novela. Nesses 20 anos, eu fiz um desenho que eu gosto de ver. Na minha arte, no meu voto, na minha novela, no meu livro, sou eu, está tudo entrelaçado.
O que te inspirou a produzir o Parem de falar mal da rotina e a que você atribui o sucesso do espetáculo após 20 anos?
A peça tem uma chave: você é o autor da sua vida. Ela é sua, uma criação sua, uma organização, uma logística que é fruto da sua escolha. E eu atualizo a peça porque ela me ensinou, assim como a vida também. Por exemplo, não havia a palavra assédio quando comecei, não havia transfobia. O sucesso é a atualização e o exercício de fazer um espetáculo que interessa o seu tempo. É um monólogo de quase três horas, sempre lotado, é um acontecimento do qual me orgulho. Em Brasília, já fiz umas dez temporadas.
A atuação na luta contra o fascismo e contra o racismo e o machismo estruturais é uma marca de Elisa Lucinda. Em que momento da sua vida você percebeu que a sua imagem e a sua voz poderiam fazer diferença no mundo?
Eu sempre percebi. Numa das primeiras peças teatrais, em Vitória, que foi uma criação coletiva, esse grupo de atores, o Fantasias de Açúcar, já queria fazer diferença. A gente criticava a ditadura. Eu sou de uma geração que entende a arte como tradutora do tempo e revolucionária. Ela é livre, ela pode fazer coisas, criticar, retratar, questionar, acrescentar. Então, desde muito cedo, eu acreditei que, se a arte não servisse para fornecer alguns dados interessantes ou algum olhar sobre o meu tempo, não interessava então ser artista. Eu acho que a arte é a grande leitura humana, e eu estou nessa.
Você se enxerga em um cargo público?
Eu não me enxergo em cargo público porque eu acho que poderia até executá-lo, mas não gosto de fazer reunião com gente chata. Eu não gosto, eu não gosto de acordar cedo, virar funcionária. Isso não é pra mim. Gosto de ser artista. Me chamaram pra ser secretária de cultura do Estado do Espírito Santo, mas eu já não dou conta de tanta coisa que eu quero fazer com a minha arte, que dirá exercendo outro cargo. Eu sou uma jogadora que eu acho que funciono melhor solta. Eu acho que eu posso colaborar bastante, com várias instituições, estando livre.
Brasília é uma cidade que respira política, mas também transpira arte. Como é a sua relação com a cidade?
Amo Brasília. Eu até fiz um poema, acho que é Carta ao amante. Um poema tratando o céu da capital como meu amante. Eu acho o céu em Brasília o mais lindo do mundo. “Céu de Brasília traço do arquiteto”, como diz o Djavan. Eu amo, muito, muito essa cidade. Brasília é de um amor no meu coração, sabe? Tenho raízes amorosas aí. Tem Hugo Rodas, tem Diana Paixão, pessoas que me acolheram na cidade. Chico Neto, Chico Sant’Anna, Sérgio Sartori, é muita gente que eu conheço. Zélia Duncan, Ellen Oléria, Gabriel Grossi. Eu sou cercada por Brasília, minha vida é entrelaçada com Brasília. Tem minha parceira de vida, a Thaís Dumêt. Enfim, um lugar muito importante para mim. A capital do país é cheia de gente bacanérrima, a despeito de existir tanta corrupção, essa mania de serviço público que tem. Um povo muito bacana, numa cidade cheia de árvores, que só precisa ser menos desigual como todas as cidades do Brasil.