Acima de tudo, uma novela sobre resiliência — individual e coletiva — com uma narrativa que acredita nas possibilidades de transformação pessoal e social sem recair em ingenuidade
Patrick Selvatti
Claudia Souto assumiu um desafio considerável ao ser convocada pela TV Globo para revitalizar a faixa das 19h, menos de dois anos após Cara e coragem. O objetivo era ambicioso: resgatar o vigor do horário, ainda impactado pelas dificuldades enfrentadas após Vai na fé, de Rosane Svartman. Embora a obra anterior tenha sido indicada ao Emmy Internacional pelo produto de qualidade, seu tom não se encaixava perfeitamente na proposta de reunir famílias diante da televisão no horário nobre. Volta por cima surge, assim, não apenas como título, mas como síntese de uma missão narrativa e simbólica.
Em sua terceira novela, após incursões na comédia romântica de ação envolvendo assalto a um hotel de luxo em Pega pega e a indústria de dublês em Cara e coragem, a autora alcança definitivamente o tom dos novos tempos. A trama se destaca pela composição precisa entre romance, humor, drama e ação, costurada com um olhar cuidadoso para a representatividade. O conceito de “black joy” — a celebração da alegria e resistência da população negra — é conduzido com propriedade por Madá (Jéssica Ellen) e Jão (Fabrício Boliveira). Sem apelar à estetização da dor, Volta por cima entregou um retrato plural da vivência negra, equilibrando tensões sociais com momentos de afeto e construção comunitária.
A novela termina neste sábado (26/4) com louvor ao aliar audiência consistente, forte repercussão nas redes sociais e uma recepção crítica amplamente favorável. Fará falta no início da noite a abertura contagiante — um samba otimista homônimo interpretado por Alcione e Ludmilla — que logo estabelece à produção um tom vibrante, refletido tanto na estética quanto no enredo.
Uma novela para o povo
Um acerto notável de Volta por cima foi o uso simbólico da empresa de ônibus, a Viação Formosa, como eixo narrativo. Essa escolha não é casual: inseriu o cotidiano da mobilidade urbana no centro da dramaturgia, representando uma classe trabalhadora raramente retratada com protagonismo. Ao focar nos deslocamentos diários, a novela lançou luz a temas como solidariedade, esperança e luta por dignidade.
A produção também valorizou o carnaval como fenômeno de resistência cultural e política, distanciando-se de representações superficiais. A ancestralidade e a pulsação das ruas moldaram personagens que respiravam o espírito do samba e das manifestações populares, reiterando a capacidade da cultura de promover transformação social e porvocando intensa identificação com o povo carioca e brasileiro.
Mesmo o núcleo da contravenção, centrado nos complexos personagens Osmar (Milhem Cortaz) e Violeta (Isabel Teixeira), ampliou a densidade do roteiro ao expor com crueza as implicações da desigualdade. Sem ceder ao maniqueísmo, a trama propôs uma reflexão madura sobre os dilemas impostos pela exclusão socioeconômica. O Brasil torceu para que o casal amoral terminasse juntos. Já a cena final do bandidão Gerson (Enrique Diaz), morto após o sequestro de um ônibus que leva todos os personagens principais à Sapucaí, sendo buscado pelo espírito de Baixinho (Rodrigo Garcia) como um emissário do Inferno, teve humor, poesia e simbolismo.
Sátira social
No plano cênico, a fictícia Vila Cambucá traduziu com precisão a vitalidade suburbana carioca, graças à direção de arte que combina elementos da street art a uma paleta de cores vibrantes. Essa construção imagética reforçou o caráter orgânico da narrativa. Mas outro ponto de excelência de Volta por cima foi o núcleo satírico da elite em decadência, que funcionou como um contraponto irônico e mordaz à narrativa principal. Beliza (Betty Faria), Joyce (Drica Moraes) e Gigi (Rodrigo Fagundes) são personagens que personificaram o descompasso de uma aristocracia obsoleta com humor, inteligência e densidade emocional.
O texto de Claudia Souto, Wendell Bendelack, Julia Laks, Isadora Wilkinson e Juliana Peres revela um domínio da sátira social, extraindo da caricatura das elites não apenas comicidade, mas uma crítica afiada à manutenção das aparências em um mundo em transformação. Gigi, em particular, foi um achado: entre o exagero e a vulnerabilidade, o personagem empresta leveza e melancolia na medida certa, humanizando a decadência. A descoberta de sua origem e o florescer de sua homoafetividade fizeram dele a figura mais querida da novela.
Mulheres em destaque
As atuações femininas merecem destaque especial. Isabel Teixeira entregou uma Violeta de nuances sutis, transitando entre a rigidez e a vulnerabilidade com precisão. Como Joyce, Drica Moraes imprimiu uma complexidade que evita estereótipos e revela camadas emocionais profundas. Com pouca experiência no drama, Viviane Araújo surpreendeu como Rosana, conferindo à personagem uma força e autenticidade que enriquecerem a trama da mãe que se vê diante da possível perda de um filho.
A valorização de atrizes veteranas raras nas novelas — Betty Faria, Tereza Seiblitz e Lucinha Lins — também merece destaque. Longe de meros resgates nostálgicos, suas atuações reafirmaram a relevância artística de intérpretes que ajudaram a construir a história da televisão brasileira e merecem ocupar esse espaço com reverência.
Na esfera jovem, a subtrama envolvendo Tatiana (Bia Santana) introduziu uma perspectiva contemporânea ao explorar a influência da cultura pop asiática entre os jovens. Tati, adolescente fascinada por K-dramas, projeta suas fantasias românticas em Jin (Allan Jeon), um jovem sul-coreano que trabalha em uma lanchonete local. A confusão entre realidade e ficção gera conflitos e reflexões sobre identidade e idealização, e aproximou o enredo da novela à geração Z.
Além disso, a narrativa realiza um eficiente trabalho de merchandising social ao abordar questões contemporâneas de interesse da juventude, como o uso indiscriminado de anabolizantes, a pressão estética e a medicalização precoce dos corpos jovens. O tema foi explorado com sensibilidade e responsabilidade, sem recorrer a tom panfletário.
Volta por cima é, acima de tudo, uma novela sobre resiliência — individual e coletiva. Entregou ao público uma narrativa que acredita nas possibilidades de transformação pessoal e social sem recair em ingenuidade. Ao apostar na pluralidade de vozes, na força da cultura popular e na potência dos afetos, a obra reafirma o papel da telenovela como instrumento de reflexão e, sobretudo, de esperança.