O novo hábito de “maratonar” séries tem a ver com o sucesso dos serviços de streaming
O avanço tecnológico e o crescimento dos serviços de streaming, como Netflix, Amazon Prime Vídeo e Hulu (esse o único ainda indisponível no Brasil), foram responsáveis pelas mudanças televisivas, tanto da forma de consumo do espectador quanto do estilo de produção de quem faz atrações para o formato. Se hoje, o público gosta de maratonar séries, por exemplo, é porque essas transformações foram determinantes no consumo televisivo.
Há alguns anos, o espectador precisava esperar que sua atração favorita passasse na televisão em um dia e horário específico, agora ele tem a opção de assistir no momento que lhe convém (até porque a televisão aberta e fechada passaram a aderir o on-demand), incluindo até a possibilidade de ver um capítulo seguido do outro. O novo hábito ficou conhecido no mundo pelo termo binge watching — que pode ser traduzido para “assistindo compulsivamente” — e, no Brasil, simplesmente por maratonar.
“É um hábito cada vez mais usual para os adeptos de streaming. O que notamos desse comportamento é que a comodidade e o tempo são fatores determinantes na assistência esses conteúdos, ofertados de uma só vez”, analisa a pesquisadora e doutoranda Mariana Lima, autora do artigo Netflix: Tópicos sobre uma nova forma de consumir TV.
Mas começar a maratonar séries, por exemplo, não foi apenas uma escolha do espectador, mas um caminho natural devido às inovações dos produtores de conteúdos, que decidiram criar atrações originais pensadas nessa forma de consumo, sendo disponibilizadas completas de uma só vez. “Três características são importantes acrescentar nessa cadeia de produção, são elas: temporalidade, reassistibilidade e complexidade narrativa. Em suma, temos um consumidor mais estratificado, que encontra nas plataformas de streaming uma forma de dar vazão a esse tempo”, completa Mariana.
O serviço de streaming Netflix divulgou no ano passado um ranking com as suas séries mais “maratonadas” do mundo. No Brasil, a lista é encabeçada pelas temporadas disponibilizadas de produções que não são originais da plataforma, The killing e The walking dead. Depois, a lista tem a ficção científica Sense8 e a comédia dramática Orange is the new black.
Cenário brasileiro
Apesar de boa parte dos espectadores terem mudado sua forma de consumo optando pelas maratonas, a pesquisadora Mariana Lima afirma que é preciso analisar o cenário brasileiro, em que a televisão aberta ainda possui um público majoritário no país. “Creio que o modelo de programação aos quais já estamos acostumados ainda perdurará por muito tempo. Apesar do crescimento da técnica em ofertar outros suportes que abarcam a televisão, o modelo de programação ainda é bastante premente no país, configurando todo um território simbólico”, analisa.
Em contrapartida é importante ressaltar que emissoras como a Rede Globo e a Band têm se apoiado em outras plataformas. O canal da família Marinho tem apostado no serviço Globo Play, disponibilizando o conteúdo completo para assinantes e até algumas séries com exclusividade na plataforma, como ocorreu com Dois irmãos, Sob pressão e até Carcereiros, que chegou ao on-demand antes mesmo da tevê, em que estreará apenas em 2018. Já a Band aproveita o YouTube para disponibilizar programas de sucesso, como é o caso do reality show MasterChef Brasil.
A televisão por assinatura também tem dado seus passos, além de criar seus próprios serviços on-demand, também tem inserido cada vez mais maratonas em sua programação. A Warner, por exemplo, fará uma maratona de The Big Bang Theory hoje, a partir das 12h30, com todos os episódios da sétima temporada da comédia exibidos em sequência.
Consumo equilibrado
A pesquisadora acredita que o modo de consumo da televisão encontrará um equilíbrio entre os dois jeitos. Um exemplo para isso é sucesso da atração Game of thrones, seriado da HBO, que ainda consegue bater recordes de audiência em suas exibições aos domingos. O primeiro episódio da sétima temporada da atração conseguiu ter mais de 10 milhões de pessoas assistindo simultaneamente nos Estados Unidos, sem contar o público mundial.
“No caso de Game of thrones criou-se uma verdadeira comoção, no qual podemos até inferir que assistir a um episódio da série tornou-se um evento/reunião contando com a presença de amigos, aperitivos e bebidas. Podendo ainda, posteriormente a exibição, uma discussão descontraída acerca daquele episódio”, comenta. Mariana ainda completa: “Acredito que poucas séries, hoje, consigam concentrar esse grau de ritualidade e engajamento. Sendo a questão do spoiler outro fator determinante. O modelo de programação, isto é, a exibição de um episódio por semana permite que a série possa ser digerida e comentada.
Série mais “maratonadas” da Netflix (Brasil)
1. The killing
2. The walking dead
3. Sense8
4. Prison break
5. Orange is the new black
6. Better call Saul
7. Marvel’s Demolidor
8. Narcos
9. House of cards
10. Bojack horseman
Entrevista com Humberto C. Rezende, autor do artigo Maratonas de vídeo e a nova forma dominante de se consumir e produzir séries de televisão
Na sua opinião, o que motivou a mudança do consumo de televisão no mundo?
O consumo de audiovisual em geral passou por uma grande modificação com o streaming e o video on demand via internet. O que hoje chamamos de binge watching ou um assistir compulsivo demandaria de três pilares básicos, um deles é a tecnologia com a facilidade de acesso, o espectador escolhe o que e quando assistir o conteúdo. A outra é o comportamento do consumidor mais ativo, buscando informações e “evitando spoilers” em redes sociais e sites ou blogs, formando nichos sobre atrações. O terceiro pilar seria a complexidade das narrativas. A forma de se contar as histórias mudou. E mudou porque a natureza do negócio audiovisual permitiu isso com essas novas tecnologias que alcançaria, então, esse espectador mais pesquisador, detetive de mistérios. Essa complexidade das histórias e dos personagens permitiu a difusão de histórias que antes não caberiam em uma narrativa com vários níveis de profundidade, personagens tão centrais que, apesar de centrais, podem morrer no meio de uma temporada. A fruição da história deixou de ter a necessidade de ser por blocos, ou por episódios, sem redundância (ou repetição das ações) e se transformou em um grande longa metragem de 9 horas, por exemplo (o tempo total de uma temporada). É interessante observar que a quantidade de episódios por temporada caiu. Antes uma temporada de uma série procedural seria de 22 episódios. Com a popularização de se assistir a temporada inteira como modelo de distribuição, o que também demanda todo um sistema produtivo distinto de se produzir por capítulos, a quantidade de episódios por temporada diminuiu. Em resumo, o desenvolvimento tecnológico, a predisposição ativa do espectador e a narrativa audiovisual ter se tornado mais profunda permitiu uma experiência de consumo de mídia mais intenso e mais rico, o binge watching.
Com a nova forma de disponibilização de produções pela Netflix, o público tem apostado cada vez mais nas maratonas. O que isso representa para a mudança do consumo televisivo?
Os fandoms ou os grupos de fãs têm o “dever” de se manterem sempre atualizados com os lançamentos para não receberem um spoiler. A “morte” da experiência com um spoiler é devastador para o espectador, diminuindo a fruição e, possivelmente, o engajamento com a série. Há estudos sobre essa relação de grupos de fãs, hoje em dia reunidos principalmente via redes sociais, e o sentimento de não poder ficar para trás com as séries. O modelo de negócio do Netflix encontrou ressonância nesses consumidores inicialmente. E depois a experiência de engajamento compulsivo em uma série permite um prazer de não ter que esperar uma semana inteira para saber o que o seu personagem favorito irá fazer. Essa experiência de consumo, aliado à facilidade de acesso as plataformas de VOD títulos muito bem desenvolvidos, com qualidade cinematográfica, faz o consumidor ir aos poucos migrando da TV broadcast dos canais abertos e depois dos canais por assinatura, ambas plataformas controladas por um diretor de programação, indo para a própria satisfação de escolher o que, quando e a quantidade do que assistir, e um conteúdo superior em qualidade técnica e artística do que antes era produzido na TV. Essa mudança tem provocado um fenômeno chamado de cord cutting que é a substituição das tvs por assinatura por serviços via streaming, ou Vod como Netflix, Amazon Prime, HBO GO (os principais serviços ofertados no mercado brasileiro). A Netflix muda a forma de consumir e força todo o mercado a mudar a forma de distribuir aos poucos, pois se criou, principalmente no nicho de histórias como novelas, séries e filmes, a forma de se pensar a produção e o consumo.