Beirando os 15 anos de existência, o Universo Cinematográfico Marvel abusa da auto reverência como ferramenta da nova fase do estúdio
Por Pedro Almeida* e Pedro Ibarra
Que os super-heróis se tornaram um dos gêneros mais rentáveis e populares da história do cinema não é novidade para ninguém. Bilhões de dólares são movimentados anualmente em bilheteria, licenciados e marketing dos longas há quase 15 anos. O segredo do sucesso vai além de filmes e séries bem produzidos. Os personagens em questão fazem parte da vida de crianças e adultos ao redor do mundo há décadas; alguns se aproximam do centenário.
Homem-Aranha e Hulk, por exemplo, são ícones que vivem no fantasioso imaginário infantil. Se o mundo real, que não conta com a ilustre presença de escaladores de prédios, homens que voam e mulheres que levantam carros com um braço, já os têm como grandes personalidades, não é de se assustar que, dentro do universo cinematográfico, essas figuras sejam verdadeiras celebridades. A Marvel, ciente dessa possibilidade, passou a explorar esse viés em novas produções.
Em 2008, Robert Downey Jr. escancarou a porta do Universo Marvel com o filme Homem de Ferro, considerado uma das melhores produções do gênero até hoje. De lá para cá, mais heróis ganharam um lugar ao sol e tiveram a oportunidade de salvar o mundo algumas vezes. Ainda que ser o salvador da pátria não seja um emprego bem remunerado, como retratado na série Falcão e Soldado Invernal, o fator popularidade se torna inevitável.
Em 2019, o longa Vingadores: ultimato, ápice do Universo Cinematográfico Marvel até ali, mostrou, de forma descontraída, fãs interrompendo uma importante conversa heroica sobre viagem no tempo para tirar fotos com o Hulk. Era um dos primeiros indícios de que, além das milhões de pessoas vidradas nas telas de cinema naquele momento, as pessoas comuns que transitam por aquele universo fantástico são tão obcecadas quanto os que estão aqui fora.
As novas produções da Marvel, em especial as séries feitas para o streaming Disney , parecem querer incorporar esse olhar ainda mais ao cânone. O seriado Ms. Marvel, lançado em junho de 2022, apresenta Kamala Khan, uma adolescente fissurada na heroína Capitã Marvel. Ao detalhar os embates vividos pela ídola, a protagonista narra com a precisão de quem assistiu, de perto, os filmes. Em outra ocasião, a jovem foge de casa para ir a uma convenção em homenagem aos super-heróis. Aqui, mundo real e cinematográfico se embaralham.
O evento não deve nada às Comic Cons que existem mundo afora. A diferença, claro, é que, para eles, aqueles seres mitológicos são de carne e osso; às vezes, de metais raros. O que importa é que Kamala e a companhia de adoradores de heróis vivem o sonho do fã que aguarda ansioso por meses para se sentar na sala escura e presenciar uma nova aventura. Para eles, a fantasia é realidade.
Outro exemplo é a série do Gavião Arqueiro, lançada em novembro de 2021. O veterano personagem-título, presente desde 2011 na franquia, tem de lidar com uma adolescente que o idolatra desde que o assistiu lutar na famosa batalha de Nova York, acontecimento relatado no primeiro longa dos Vingadores. Kate Bishop se torna aprendiz do arqueiro e revela o interesse da franquia em trazer uma nova geração às telas e às salas de cinema.
Filhos dos originais, sejam os vingadores, sejam os espectadores, são bem-vindos. Vale ressaltar que a passagem de tempo dentro do universo já é tão longa, que alguns personagens, como Kate Bishop, ainda não eram nascidos quando Tony Stark colocou a armadura de Homem de Ferro pela primeira vez.
Agora, a Mulher-Hulk, novíssimo lançamento da Marvel, leva a metalinguagem para um novo nível. Jennifer Walters, protagonista e prima de Bruce Banner, o famoso e incrível Hulk, tenta arrancar do primo informações e curiosidades, por vezes irrelevantes, sobre os Vingadores. Nas cenas, Walters não passa de uma personificação de um fã e retrata as questões que eles teriam, caso tivessem a surreal oportunidade de conversar com o Hulk.
Obcecada com Steve Rogers, o Capitão América, a heroína traça uma teoria para Banner, na qual o famoso vingador não teria tido tempo, entre batalhas e congelamentos, de se relacionar com uma mulher. Jennifer propõe a maluca teoria em busca de endosso ou negação do primo. O curioso, nesse caso, é que a fala da personagem não passa de uma teoria de fãs que circula pela internet. Sem negar que sabe do fator popularidade da própria franquia, a Marvel abre uma porta inovadora: os fãs estão representados nas obras que amam.
Fazendo agrados
Todo esse lucrativo mercado começou de jovens aficionados por histórias em quadrinhos. O Universo Cinematográfico Marvel (MCU) é, antes de tudo, um sonho de crianças de todas as gerações sendo materializado nas telas, a adaptação de grandes aventuras antes enquadradas em revistinhas de centenas de volumes.
Contudo, a criação foi se tornando maior que o criador. Esses fãs, antes os poucos “nerds”, agora são milhões pelo mundo inteiro. Não é mais tão difícil encontrar uma pessoa viciada em super-heróis, mas que nunca leu um dos quadrinhos originais. Hoje, o MCU é um lugar para todos e isso é mais que bem-vindo. Porém, os fãs do início ainda são lembrados com frequência e a fixação de Jennifer Walters com o Capitão América diz muito sobre isso. A Marvel dá voz e participação ao fã que, por horas a fio, fala da própria Marvel na internet. É um processo de retroalimentação, o estúdio gera expectativa, o público pede, o estúdio dá, o público consome e pede mais.
Às vezes, uma pequena cena pode gerar dias de comentários on-line. Uma notícia no computador pode ser o indício de Wolverine, ou um desenho na parede pode indicar um novo vilão. Fãs adoram teorizar, e agora com histórias que disponibilizam episódios diários, fica ainda mais fácil para a Marvel mexer com a cabeça do fã a ponto de ele ter ideias mirabolantes, por vezes até inaplicáveis, de como todo esse grande universo vai se desenrolar. Com isso, todos saem ganhando, a Marvel não precisa se esforçar muito e ganha em troca um gigante burburinho. Tudo isso de espectadores que querem justamente que a Marvel faça isso, dê dicas para que eles mesmos fechem o quebra-cabeças.
A Marvel é realmente uma máquina de sucesso, e encontrou mais uma das próprias fórmulas para atingir o público de outra forma. Com um universo ainda mais expandido e com acesso possível na tela da televisão ou até mesmo celular, o estúdio encontra a resposta em si mesmo para que todos esses fãs, que angariaram durante anos, continuem se sentido representados, mesmo quase 15 anos depois do começo de tudo.
*Estagiário sob a supervisão de Sibele Negromonte