A série da Disney + trabalha muito bem os arcos de alguns personagens e abre caminho para que o Falcão e o Soldado Invernal assumam o protagonismo no MCU
Por Pedro Ibarra*
O tempo de tela é um dos principais responsáveis por aproximar o público dos personagens. Assim, quanto mais uma figura aparece e é desenvolvida, mais fácil é de gerar empatia com o espectador. Deste conceito é que parte o principal ponto alto de Falcão e o Soldado Invernal. O novo seriado da Disney + vem da ideia de “se colocar no lugar do próximo” e cria todo um enredo em cima de dois personagens que nada mais eram que apêndices de Steve Rogers (Chris Evans). Importante ressaltar que o conteúdo tem spoilers da série.
A série se inicia pouco tempo depois de Sam Wilson, o Falcão (Anthony Mackie), receber o escudo. É neste momento que começam as discussões sobre empatia. A série explora em vários pontos o que é estar na pele do outro, algumas vezes até literalmente falando sobre a cor da pele. Sam Wilson tem que conciliar a vida de herói com a vida pessoal, que envolve a irmã, os sobrinhos e um barco que herdou do pai. Enquanto Bucky Barnes, o Soldado Invernal (Sebastian Stan), precisa entender que não é mais uma máquina de matar, e que tudo que fez vai o atormentar pro resto da vida, mas não define quem ele é, só quem ele foi.
Contudo para entender as entrelinhas de cada um dos personagens é necessário perceber que para que fosse possível chegar a este nível de detalhamento foi necessário desenvolver muito bem personagens que antes eram muito coadjuvantes nas histórias. E, levando em consideração os protagonistas, o seriado consegue entregar um excelente nível aprofundamento dessas personas.
Sam, antes muito usado para alívio cômico, ganha uma família, um propósito, uma relação ancestral, opiniões sociais e raciais. Bucky, antes apenas um brutamontes, embarca em uma jornada de auto-perdão, aceitação, remorso, ganha sentimentos e demonstra inseguranças. A parceria dos dois ganha profundidade e cumplicidade e agora faz mais sentido vê-los tanto em momentos de batalha, quanto em cenas cômicas.
A empatia parte desses personagens e das relações deles e vai subindo as esferas de discussão dentro da série. Questões sociais e raciais são levantadas. O seriado não é só uma continuação dos eventos de Vingadores: Ultimato, ele é uma reflexão séria sobre figuras públicas, julgamentos e passado. Afinal, um homem negro pode ser o Capitão América? Uma pessoa que matou pode ser perdoada pela sociedade, mas ela perdoa a si mesma? Estas perguntas, que são feitas e respondidas, permeiam todo enredo não só dos personagens, mas da série.
O mundo pós-blip
Uma das linhas mais cruciais que as novas produções da Marvel tem seguido é a das definições de como ficou o mundo pós o estalo de Thanos, e o momento em que o Hulk desfez o estrago, o chamado blip. Deste conceito são apresentados os Apátridas, grupo que perdeu muito após o retorno das pessoas apagadas por Thanos e por isso acredita que o mundo não deveria possuir fronteiras para que haja mais oportunidades. Com lema “Um mundo, um povo” eles fazem críticas fortes a como os países usam as soberanias, ao falso assistencialismo norte-americano e ao egoísmo das classes mais ricas e dominantes do planeta
Líder dos Apátridas, Karli Morgantown (Erin Kellyman), se apresentou como uma figura crucial para o desenvolvimento deste lado crítico da história. A personagem une um discurso forte e atual, que condena a forma como imigrantes são tratados e critica a divisão de poder e renda no mundo, com tendências às vezes um tanto extremistas na intenção de transmitir uma mensagem. Os pontos levantados por Karli são sempre muito válidos e críveis e a personagem é um dos maiores focos de empatia da série, inclusive é o motivo do discurso final de Sam Wilson, quando já no manto de Capitão América.
Zemo, John Walker e as outras peças do quebra-cabeça
Não só de Falcão e o Soldado Invernal viveu o novo seriado da Disney +. Com pouco menos de seis horas, contando os seis episódios, a série explorou muitos outros personagens, discursos e críticas. Da união de todas essas nuances conseguiu criar um micro universo muito bem estruturado.
A começar por Barão Zemo (Daniel Brühl), talvez o maior acerto de todo o seriado. O personagem, antes insosso quando apresentado em Capitão América: Guerra Civil, roubou completamente a cena quando apareceu, serviu de guia para os personagens da história, mas também mostrou seu lado vilanesco. O personagem se torna um forte postulante a assumir o papel do vilão que mistura genialidade, loucura, maldade e carisma. Em uma atuação memorável de Brühl, Zemo ganhou outro caráter, mais personalidade e a importância que o papel merecia, já que o antagonista é um dos mais importantes da Marvel nos quadrinhos.
Talvez o coadjuvante mais bem desenvolvido da série, John Walker (Wyatt Russell), primeiramente o novo Capitão América, tem um arco bastante satisfatório. Dedicado a vida inteira a servir, o personagem se perde quando deve tomar as próprias decisões e é protagonista do momento mais impactante da série, a mancha de sangue no escudo vai muito além de um erro, ela é um símbolo de que não basta ser um super-soldado para ser um super-herói. Interpretado com muita paixão por Russell, o personagem encontra a própria redenção quando consegue entender que tudo o que estava vivendo não era uma aventura pessoal e sim para um bem maior. Walker demonstra muito potencial, ainda mais como Agente Americano, se mostra um dos personagens mais humanos da nova fase desse universo super-poderoso que é o MCU.
Outro ponto ápice da série está em Isaiah Bradley (Carl Lumbly), o super-soldado que deveria ser tratado como herói de guerra por tudo que fez no Vietnã, mas acaba sendo injustiçado pelo governo e é apagado dos livros de história. Por mais que tenha tido pouquíssimo tempo de tela, o personagem serve como um mentor do Falcão na jornada de autodescoberta em direção ao papel de Capitão América. Ele traz reflexões e críticas importantes sobre como o negro é tratado na cultura norte-americana, e talvez dele de Karli venha o lado mais político da série. Sem o personagem de Isaiah a série seria só mais uma história de super-heróis e não teria o caráter engajado e inovador que apresenta.
Porém nem todos os personagens foram acertados. A reintrodução de Sharon Carter (Emily VanCamp) teve alguns problemas. Por mais que ela tenha sido importante para o desenvolvimento da história e a introdução da ilha fictícia de Madripoor, a parte mais crucial da personagem é desenvolvida de forma corrida no último episódio. O gancho dela como eventual vilã dado na cena pós-créditos é bom, mas uma personagem tão boa e já conhecida do público merecia mais.
Mais vale um Falcão na mão, do que dois voando
Por mais que agora tenham realmente dois Falcões voando, considerando que Torres possui as asas antigas de Sam, esta parte diz respeito a como a produção mirou nos focos certos, mas acabou errando, por pouco, em algumas coisas.
Falcão e Soldado Invernal levantou temas sociais cruciais, como racismo estrutural e imigração, deu profundidade aos personagens, principalmente uma personalidade ao Sam e sentimentos ao Bucky, e ainda precisava entregar sequências de ação de qualidade Marvel. Os três itens foram bem sucedidos, mas a que custo?
Mesmo com uma grande quantidade de temas complexos de se trabalhar, a série optou por fazer um último episódio de muita ação. O resultado foram boas cenas, resoluções dos arcos, porém pouco tempo. Tudo teve de ser resolvido muito rápido, não houve a possibilidade de uma troca mais empolgante socos, porque era necessário tempo para finalizar os discursos, mas nem todos os discursos tiveram espaço para terminarem de forma gloriosa, porque eram necessários os socos.
O fim, contudo, entrega tudo resolvido, porém, pelo o que foi visto em toda série, se esperava mais. Um excelente discurso do novo Capitão América, uma cena emocionante com Isaiah Bradley e um fim digno para John Walker são destaques, mesmo que alguns deles em um ritmo mais acelerado. No entanto, as redenções de Bucky são muito rápidas e perdem o caráter emocionante , o qual tinham muito potencial.
O seriado é uma produção que traz novidades ao universo Marvel assim como Capitão América 2: Soldado Invernal fez, e pode ser tranquilamente colocada como uma das melhores histórias audiovisuais do personagem, agora interpretado por Anthony Mackie. O Capitão América agora é outro e cabe a Marvel mantê-lo relevante assim como foi o seu início em Falcão e o Soldado Invernal.
*Estagiário sob a supervisão de Vinicius Nader