Ed Lopez mistura ficção e realidade ao levar o drama pessoal para uma websérie densa e diverte o público de Malhação e de Salve-se quem puder
Quem vê Gumercindo aprontando ao lado de Zezinho (João Baldasserini), em Salve-se quem puder, ou as trapalhadas de Valdemar, em Malhação — Viva a diferença, não imagina o drama que o ator Ed Lopez enfrenta fora das telas. Vítima de abuso sexual quando criança, Ed fez do sofrimento combustível para o livro Meninos que não vão para o céu, que originou premiada websérie homônima, prestes a ir para a terceira temporada.
“Demorei um tempo para expor isso. É algo muito pessoal e dá um certo medo. Eu sentia muita culpa. No começo, achava que tinha feito bobagem ter contado sobre esse caso, mas, quando o tema da série repercutiu, eu fui bem-recebido. Muitas pessoas que viveram o mesmo problema me procuraram nas redes sociais. Foi aí que senti que valeu a pena. É gratificante quando você transforma o veneno em remédio e vê o resultado em outras pessoas”, conta, em entrevista ao Próximo Capítulo.
Ed adianta que, na próxima temporada, o foco será no agressor, o que pode trazer ainda mais dramaticidade à websérie. “Essa temporada é mais dramática e mostra o ponto de vista do Doca, que é o estuprador. Foi bom fazer essa pesquisa. É um roteiro mais profissional e sombrio”, define.
A aceitação da crítica e da seleção de festivais para Meninos que não vão para o céu é boa. Mas, nem sempre o público aprovou a atração, que toca em temas caros à sociedade, como homossexualidade, incesto e outros. “Vários episódios foram bloqueados. Percebi que muitas pessoas não estavam preparadas. Muita gente acessava a nossa série à procura de diversão sexual e aí se deparava com temas fortes, que tocam na ferida”, conta Ed, que teve dificuldades em achar um ator que topasse fazer o agressor, mesmo sendo ficção.
Humor
Quando não está envolto nesse assunto tão sério da websérie, Ed Lopez dá vida ao divertido Gumercindo, de Salve-se quem puder, novela das 19h que já voltou a ser gravada. O humor também dá o tom do chapeiro Valdemar, de quem o público pode matar as saudades na reprise de Malhação — Viva a diferença.
“Sair de três personagens sérios e criar o Gumercindo, que é do núcleo de comédia, foi um desafio e tanto. Mas, com a boa parceria com João Baldasserini, eu pude dar conta do recado. Nesse tempo sem gravar, pude me preparar para compor melhor o Gumercindo, pude assistir com calma à novela no Globoplay e agora deu para construir algo melhor. Ele virá mais engraçado e mais familiarizado com o núcleo dele”, garante esse filho de ex-empregada doméstica e porteiro que pode dizer que fez a limonada com o limão que a vida o ofereceu.
Entrevista // Ed Lopez
Você está em Salve-se quem puder como o Gumercindo. Como está sendo a volta às gravações?
Eu amo gravar, mas é estranho esse novo modo de trabalhar. Eu gosto muito do contato humano, das conversas de bastidores, da harmonia com o elenco e com a equipe. Por causa da pandemia a gente está muito separado, gravando em horários bem diferentes e sempre mantendo uma certa distância. A Globo é muito rígida quando se trata de saúde. Isso é bom e logo vou me acostumar com esse novo modo de trabalhar. Antes eu costumava gravar 6 ou 8 horas por dia, agora chego, me arrumo gravo e vou embora.
Vocês ficaram quase o tempo de uma novela no ar sem gravar. Isso quebra o ritmo do ator? Como voltar ao mesmo personagem com tanto tempo de intervalo?
Por um lado, foi bom, pois quando eu entrei na novela os atores do meu núcleo tiveram uma preparação, tiveram um tempo para criar os personagens. Eu caí de paraquedas na novela, não tinha muita ideia do que ia fazer, foi bem corrido para mim, pois antes estava gravando na Record, ao mesmo tempo que fazia uma webserie e em um longa-metragem com temas bem diferentes e com personagens bem dramáticos. Sair de 3 personagens sérios e criar o Gumercindo, que é do núcleo de comédia, foi um desafio e tanto. Mas, com a boa parceria com João Baldasserini que faz o Zezinho, eu pude dar conta do recado. Nesse tempo sem gravar eu pude me preparar melhor para compor melhor o Gumercindo, pude assistir com calma à novela no Globoplay e agora deu para construir algo melhor, ele virá mais engraçado e mais familiarizado com o núcleo dele.
A temporada Viva a diferença de Malhação está sendo reprisada. Como se sente revendo o Valdemar?
O Valdemar é um presente que vou levar para a vida toda. Sou apaixonado por esse trabalho. Sempre sou pego de surpresa quando revejo as cenas, pois tem algumas que não lembro que fiz, isso é muito bom. Como um bom virginiano eu me cobro muito, sou muito exigente comigo mesmo. Mas já coloquei na cabeça, não posso mais refazer, então é daqui para a frente.
Que lembranças traz do trabalho em Malhação?
Realmente tenho boas lembranças desse trabalho, principalmente nos bastidores: as brincadeiras no camarim como concurso de jogar bolinhas de papel na cesta de lixo, os duelos de raps, as piadas e a minha parceria com o Lucinho (Lúcio Mauro Filho). Ele é uma pessoa muito querida e divertida. Trabalhar com um elenco jovem me renovou muito, eu me sentia muito travado. Sempre digo que o elenco adulto era mais criança que o elenco de adolescentes.
Tanto em Salve-se quem puder como em Malhação o Gumercindo e o Valdemar têm profissões e vidas periféricas. Falta espaço para o protagonismo nordestino na teledramaturgia brasileira?
Sim, falta muito. Os atores nordestinos não são tão valorizados no mercado televisivo. Não somos apenas comediantes ou escada para outros atores subirem. Rola um certo preconceito e muita gente não admite. Não é comum ver nordestino fazendo médicos, advogados ou empresários, geralmente são papéis de empregadas domésticas, porteiro, agricultor, pedreiro ou gari. Eu realmente tenho muito respeito por essas profissões, pois sou filho de uma ex-empregada doméstica e de agricultor que também trabalhou como porteiro. Eu até faço com muito prazer, mas a gente não se limitar a isso.
Você partiu da experiência pessoal de ter sofrido um abuso sexual para escrever o livro Meninos que não vão para o céu. A decisão de se expor foi difícil de ser tomada? Valeu a pena?
Foi uma decisão complicada. Realmente não foi fácil para mim. Demorei um tempo para expor isso. É algo muito pessoal e dá um certo medo. Eu sentia muita culpa. No começo eu achava que tinha feito bobagem ter contado sobre esse caso, mas quando o tema da série repercutiu eu fui bem recebido. Muitas pessoas que viveram o mesmo problema me procuraram nas redes sociais. Foi aí que senti que valeu a pena. É gratificante quando você transforma o veneno em remédio e vê o resultado em outras pessoas.
O livro virou websérie. Há projeto de levar para outras plataformas, como cinema?
Ainda não vai para os cinemas. Mas tenho esperança que vá. Por enquanto estamos apenas com a webserie. A primeira temporada foi comprada por um canal de streaming. Estamos negociando a segunda. No próximo semestre vamos estrear a 3ª temporada no nosso canal de mesmo nome e garanto que vamos acabar as filmagens em novembro. Realmente estou gostando dessa fase, pois essa temporada é mais dramática e mostra o ponto de vista do Doca, que é o estuprador. Foi bom fazer essa pesquisa. É um roteiro mais profissional e sombrio. Mas acredito que coisas boas virão para esse trabalho.
Quando a série estreou você recebeu mensagens do público compartilhando histórias parecidas com você. Isso te assustou? O que falar para essas pessoas?
No começo eu estranhei, mas depois me senti valorizado. Senti que estava ajudando, de que tinha feito a minha parte como ser humano. Sempre coloquei isso nas minhas orações: “Quero ser um artista para ajudar a humanidade através da minha arte”. E sempre dou o mesmo recado as pessoas que me procuram: “Não se cale! A sua voz pode te libertar”
A série acaba tocando em temas tabus para a sociedade, como homossexualidade, incesto e outros. Isso inviabilizaria o projeto fora da internet? A sociedade brasileira está pronta para lidar com isso na TV aberta?
Vários episódios foram bloqueados. Percebi que muitas pessoas não estavam preparadas. Muita gente acessava a nossa série à procura de diversão sexual e aí se deparava com temas fortes, temas que tocam na ferida. Um dos temas mais comentados foi a violência doméstica. Realmente foi algo forte a ser mostrado. Estou feliz porque o ator Ivan Marttins, que também é o nosso preparador de elenco e interpretou o agressor, está concorrendo a melhor ator no Rio Webfest por causa da nossa série. Três atores recusaram o papel, estavam com medo de interpretar algo tão forte. Muita gente não tem coragem de fazer algo assim, tem medo de se queimar no mercado.
Recentemente, o papa Francisco vem fazendo várias críticas e tomando algumas atitudes contra o assédio sexual na Igreja católica. Falta coragem a líderes religiosos de encarar esse crime e combatê-lo de verdade?
Sim. Existem muitos casos de pedofilia dentro das igrejas católicas e protestantes. Vários líderes religiosos já foram acusados de assédio sexual. Realmente é um tema polêmico e amedronta esses líderes. A cada dia que passa eu sinto muito orgulho do Papa Francisco. Ele é um grande líder religioso. Ele veio para fazer a diferença.
A maioria das religiões também condena ou fecha os olhos para a homossexualidade, apesar de um recente reconhecimento da união homoafetiva pelo papa. Isso não acaba aumentando o preconceito?
Existem muitas pessoas preconceituosas. Muita gente finge que aceita. Muitos pais aceitam o filho gay do vizinho, mas não aceitam o próprio filho. Tem muito preconceituoso incubado. Até hoje escuto a frase: “Prefiro ter um filho ladrão do que ter um filho viado”. O que mais me ofende é saber que a pessoa se ofendeu ao ser chamada de homossexual, como se fôssemos algo abominável ou asqueroso. Mas nós não somos, somos humanos e temos alma.
Você também fez Um casal inseparável, uma comédia para os cinemas. Como é esse trabalho?
É uma linda história de amor que tem os seus contratempos. Idas e vindas de um casal. A Manuela, personagem da Nathalia Dill, é uma jogadora de vôlei que se apaixona e se casa com um médico, personagem do Marcos Veras. Eu, como ajudante dela, sem querer acabo me metendo na relação deles. Faço o Adenilson, um diarista descolado que ajuda a Manuela a fazer comida. Ele dá dicas de culinária para agradar o marido. É bem diferente do Valdemar de Malhação que só queimava os hambúrgueres (risos).
Antes de ser ator, você trabalhou fazendo pães macrobióticos. Como é sua relação com a alimentação?
Hoje eu ainda faço pães macrobióticos, mas são caseiros, feitos com farinha integral ou farinha de amêndoa. Gosto muito de inventar receitas saudáveis. Curto manter a saúde em dia. Como amo massa, eu crio a minha própria massa que é feita de batata doce, abóbora ou de aipim.
A pandemia ficou conhecida como “pãodemia” porque as pessoas passaram a fazer pão em casa. Você expandiu seus conhecimentos na área nesse período ou passou a fazer mais vezes?
Expandi, troquei muitas receitas com atores, autores de novela e internautas. Mas eu sempre faço uma adaptação nos meus pães. Eu faço dois tipos toda semana, o salgado, de farinha de amêndoa, e o doce, feito com maçã, farinha de linhaça, mel e semente de girassol.