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David Junior quebra paradigmas ao protagonizar Bom Sucesso

Publicado em Entrevista

David Júnior vive um protagonista negro em Bom Sucesso e desabafa: “Falta muito ainda pra gente conseguir minimamente se equiparar, mas o caminho está aí”

O ser humano está sempre em evolução. A sociedade também. O ator David Júnior faz parte de uma transformação que, lentamente, está em curso na televisão brasileira. A da representatividade. David vive Ramon, um dos protagonistas de Bom Sucesso, novela das 19h da Globo.

Bom Sucesso é, com certeza, uma linha de evolução”, afirma David sobre o fato de a trama de Rosane Svartman e Paulo Halm trazer um protagonista negro. “54% da população do Brasil é negra. Está na hora de a gente se ver e se ver de forma qualitativa. A gente precisa se mostrar afetuoso também, amoroso, ter relações de paz e não só de guerra como eles colocam pra gente”, completa o ator.

Além de Bom Sucesso, David está no elenco da mais recente temporada de Sessão de terapia, série disponível no Globoplay, como Nando. “É um orgulho muito grande poder fazer um personagem periférico que fala inglês e um outro personagem que é um empresário, o CEO de uma empresa multimilionária que também vem da periferia e conseguiu vencer na vida. O Nando tem outras questões que não a periferia pelas mazelas da periferia. Ele consegue transcender isso e falar de suas questões emocionais”, afirma.

Na entrevista a seguir, David fala sobre representatividade, Bom Sucesso, Sessão de terapia e o “corpo político” que carrega como ator. Confira!

Entrevista // David Júnior

David Junior e Gabryela Moreira como o casal Ramon e Francisca na novela Bom Sucesso
Foto: Raquel Cunha/Divulgação. “O fato de termos agora um casal negro ー eu e a Gabriela Moreyra (a professora Francisca) ー já é um avanço”, diz David Junior

O que significa para você estar vivendo o primeiro protagonista na Globo? Muda alguma coisa dos outros trabalhos para esse?
Muda porque você tem que se habituar a uma rotina de trabalho que até então você nunca teve e a gente deixa de lado a demanda com a família, com as coisas da casa, com sua saúde física e mental. Eu comecei a fazer terapia porque é uma visibilidade que às vezes assusta. Eu já sou uma pessoa pública, mas um protagonista ascende de um jeito que as pessoas têm uma referência diferente de você.

A gente quase não vê protagonistas negros na televisão brasileira. Qual é a importância de termos um personagem como o Ramon?
Representatividade. 54% da população do Brasil é negra. Está na hora de a gente se ver e se ver de forma qualitativa. A gente precisa se mostrar afetuoso também, amoroso, ter relações de paz e não só de guerra como eles colocam pra gente. Temos algumas séries aí. O Seu Jorge está arrebentando (na série Irmandade, da Netflix), o Fabrício Boliveira fez novela das 21h, (o filme) Simonal, enfim. A gente tem, mas não é suficiente. Falta muito ainda pra gente conseguir minimamente se equiparar, mas o caminho está aí.

Bom Sucesso é uma novela que sai um pouco do estereótipo, traz um médico negro, uma editora negra. São personagens grandes e que não trazem apenas o discurso contra o racismo, que é importante, mas não é só. Você vê isso como um avanço?
Eu vejo. É um ótimo recurso para a gente começar a mostrar que existem possibilidades. Agora a gente quer abrir para os afetos. A gente quer ver essa editora negra com a sua mãe, com seu marido, família. A gente está numa constante evolução. O fato de termos agora um casal negro ー eu e a Gabriela Moreyra (a professora Francisca) ー já é um avanço porque, até então, as relações que se davam ー quando se davam ー eram interraciais. Agora a gente já deu um passo a mais. Já estamos dando um espaço de afeto para a mulher negra também. Mostrando que ela sabe amar, sabe respeitar. Bom Sucesso é, com certeza, uma linha de evolução.

A novela está fazendo um sucesso que há muito tempo a gente não vê nessa faixa de horário. A que você atribui essa aceitação tanto da crítica como do público?
Sinceramente porque a gente está mostrando a periferia do jeito que ela é, com diretores de escola negros, a tia que bota o lencinho do lado do sutiã igual a Carla Cristina (a Lulu), a passista da escola de samba do bairro. A gente tem mostrado que a periferia não só apresenta outro viés que não o das drogas, da criminalidade, da violência, mas também que nosso cotidiano é miscigenado, como o personagem do padre ou da beata. A gente consegue ver a periferia no rosto de cada um deles. A gente fala da questão da introdução às drogas, a questão do amor não correspondido. É lindo de se ver isso. A novela é um sucesso porque ela tem dado protagonismo pra todo mundo e não só para um núcleo. Existe um núcleo central que rege a trama, mas você consegue ver a história de cada um, várias relações interessantes e bonitas de se ver e que apresentam a periferia, apresentam a nossa sociedade como ela é. A periferia é que consome novela hoje em dia e eles precisam se ver. É lindo você levar esperança a essas pessoas.

O Ramon é um técnico de basquete. Como é o esporte na sua vida?
Eu sempre pratiquei esporte, desde pequeno. Comecei a competir no mountain bike aos 12 anos de idade. Eu tenho a mecânica do esporte do Ramon. Eu joguei basquete na escola e depois pouquíssimas vezes na vida. Mas sempre acompanhei os jogos. Quando me deram o personagem eu comecei a treinar e está aí um personagem que muita gente diz que jogou basquete a vida inteira (risos).

A novela Bom Sucesso estreou perto da série Sessão de terapia (Globoplay) e o Ramon e o Nando são personagens muito diferentes. Como é estar no ar em dois trabalhos tão distintos?
Eu tinha acabado de gravar O tempo não para (novela das 19h na qual David foi Menelau) quando eu soube que ia fazer Sessão de terapia e engrenei direto para Bom Sucesso. É um orgulho muito grande poder fazer um personagem periférico que fala inglês e um outro personagem que é um empresário, o CEO de uma empresa multimilionária que também vem da periferia e conseguiu vencer na vida. O Nando tem outras questões que não a periferia pelas mazelas da periferia. Ele consegue transcender isso e falar de suas questões emocionais. É muito bom poder colocar um corpo negro falando de questões emocionais, do porquê ele se descobre um machista, um opressor que acha que só a provisão financeira é o suficiente para a família. O Nando está no lugar oposto do Ramon – ele conseguiu atingir o objetivo dele e o que ele faz com isso? Levantar essas questões é tudo o que eu quero como artista. A gente tem um corpo político e precisa usar essa visibilidade que a gente tem para falar de assuntos pertinentes, transformadoras na vida das pessoas.

Os episódios da série são como sessões de terapia mesmo. Isso acabava funcionando para vocês como uma terapia também? As questões do Nando acabavam falando de alguma forma para o David?
Muito. Não tem como não esbarrar em mim. Se é preto, se é periférico, as questões são parecidas. A gente vive a mesma opressão. Se eu venço hoje como personalidade na dramaturgia brasileira eu preciso ressignificar muitas coisas, como o Nando precisa. E isso é diário. Quando eu ia lendo o texto que foi feito por uma trans negra, eu ia me quebrando inteiro por dentro a cada episódio. Falar tudo aquilo foi dolorido demais para mim. Acredito que tenha sido dolorido também para Selton (Mello, diretor e ator de Sessão de terapia), que é um homem branco ouvir o que eu estava falando. Ele, inclusive, fala que foi o personagem mais difícil que ele já fez. É uma complexidade muito grande você descascar as cebolas de um corpo que foi oprimido a vida inteira. Eu comecei a fazer terapia uns três meses antes da série. Quando comecei a gravar era duas vezes: eu fazia terapia com o Selton e com a minha terapeuta. (risos)