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Santiago, Chile — Para que um programa com o objetivo de garantir o desenvolvimento de crianças pequenas comece por aqui, o ideal é que parta da presidência da República, como na experiência do país encravado entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico. O governo do Chile entendeu que investir na primeira infância é fundamental para diminuir lacunas de desigualdade e acelerar o desenvolvimento econômico do país.
Em 2006, foi dada a largada ao programa Chile Crece Contigo, focado em garantir o pleno desenvolvimento de crianças de 0 a 6 anos por meio de várias frentes: saúde, assistência social e educação. A política pública oferece serviços para todos atendidos no sistema público de saúde (cerca de 80% da população infantil), mas a intensidade e a quantidade de benefícios varia de acordo com o poder econômico. O apoio é mais completo para os que pertencem aos 60% mais vulneráveis do país que são, de fato, o público-alvo do sistema.
Doze anos depois, o investimento e os esforços compensaram? Pesquisas comprovaram melhorias, especialmente, no quesito saúde. Houve redução no número de partos prematuros e de baixo peso ao nascer, e aumento dos períodos de amamentação exclusiva. Poucos estudos, no entanto, verificaram evidências de impactos nas outras áreas até agora. O que é compreensível: os efeitos de uma política de estado para a primeira infância devem ser medidos a longo prazo, com as consequências positivas desaguando na adolescência e na vida adulta. E tudo indica que as repercussões do programa devem ser cada vez melhores, como apontam estudo publicado na revista Lancet e relatório do Banco de Desenvolvimento da América Latina.
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Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) do Chile, atua no programa Chile Crece Contigo desde o início de sua implementação. No primeiro ano, dos 346 municípios do país, 159 foram envolvidos. No ano seguinte, todos passaram a participar. E no terceiro ano, a iniciativa se tornou lei. “A política foi desenhada por técnicos que definiram o jeito de tratar a primeira infância que seguimos até hoje, o que influencia tudo, até o jeito de abordar os assuntos com os pais”, comenta Jeanet. “Ao falarmos sobre castigos físicos, não dizemos ‘não, você não pode fazer isso’. Explicamos que não se deve usar porque isso pode prejudicar o cerebrinho do seu filho e mostrar o porquê, além de explicar como educar sem violência.”
O ministério onde Jeanet trabalha já foi procurado por diversos países em busca de orientações para replicar a política (já há modelos funcionando em Colômbia, Uruguai e Panamá, por exemplo). “Por parte do Brasil, fomos procurados pelo Governo do Ceará, e inclusive fui à Fortaleza falar de como é o nosso trabalho”, relata. A experiência chilena, porém, não é suficiente para embasar um sistema. “Não é uma política pública que eu possa escrever um manual e dizer ‘toma, aí está, implemente’, porque cada país tem uma realidade totalmente diferente”, justifica. “Depende muito do estilo de organização governamental e da maneira como se organizam as estratégias voltadas à primeira infância.”
De algo, porém, Jeanet, que trabalha na Divisão de Promoção e Proteção Social do MDS chileno, está convencida de que deve ser regra: “A iniciativa deve ser pensada, ou abraçada, por alguém ou algum setor que seja capaz de liderar a mudança, colocar ordem na casa, como o presidente do país, pois haverá muitas resistências com as quais lidar”. A relutância, ela explica, parte tanto de outros entes políticos quanto de profissionais na ponta. “Para fazer com que diferentes ministérios trabalhem juntos, o chamado precisa vir de cima, pois ninguém pode se negar a ouvir a presidência. No Chile, tudo foi impulsionado pela presidência, o que foi muito importante”, diz.
“Foi preciso superar muita resistência, por exemplo, por parte dos profissionais de saúde, que já faziam o registro de informações das crianças de um jeito e tiveram de passar a fazer de outro, mas hoje está totalmente incorporado. Foi todo um aprendizado”, conta. “O orçamento inicial não era tão grande, mas foi crescendo ano a ano, hoje, atendendo cerca de 680 mil crianças e 120 mil gestantes.” Aí está outra lição do modelo chileno. “Ao elaborar a política, é preciso pensar no dinheiro. Pois pode ficar superbonito escrito no papel, mas, se não há orçamento, a verdade é que vai ser só poesia”, alerta.
“Afinal, não basta dizer que é a favor da primeira infância, até porque ninguém vai dizer que é contra a primeira infância. Se não há apoio real por trás por parte de um agente político poderoso, não avança.” No Brasil, caso o presidente eleito, Jair Bolsonaro, não resolva apostar numa política integral de primeira infância, o que seria o ideal, os governadores do DF, o eleito Ibaneis Rocha, e os governadores dos estados podem fazer a diferença. “Se não for possível fazer em nível global, dá para implementar estratégias em cada unidade da Federação”, acredita.
Um conselho da porta-voz é evitar o perfeccionismo na hora de começar. “Não tenha pretensão de começar com tudo pronto, com tudo de uma vez, de imediato. Só tenha a pretensão de começar. Parta de algo como pontapé inicial para depois ir crescendo”, ensina. Ela faz essa observação, pois já acompanhou casos de países que vieram buscar inspiração no modelo chileno,mas estão tentando aplicar todos os aspectos do programa de pronto. “Alguns estão esperando virar lei primeiro para depois agir ou estão esperando isso ou aquilo. Não! Comece, pois, se não, passa uma vida toda e você não faz nada. Vá fazendo e aprendendo, fazendo e melhorando”, alerta.
Pontos para avançar
Apesar do impacto e das boas intenções, Chile Crece Contigo, como qualquer outra política pública de qualquer outro país, tem espaço para melhorias. “É um programa que promete mais no papel do que entrega, mas a validade e a importância são inegáveis”, comenta Alejandra Cortazar, pesquisadora do Centro de Estudios Primera Infancia. Ela avalia que é importante desvincular o programa da vontade polícia, pois, apesar de definido em lei, ainda depende muito de decisões do governo. Professora de educação infantil da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Pamela Rodríguez Aceituno destaca que Chile Crece Contigo se tornou uma instituição no país (qualquer pessoa a quem você perguntar sabe do que se trata), trouxe muitos efeitos positivos e oferece muitos serviços importantes.
No entanto, isso não o isenta de ter que melhorar. “Sem desmerecer o programa, mas apenas a presença dele não significa que todas as coisas estejam solucionadas… Seria fantástico se fosse assim.” Até mesmo para identificar o que deve ser aperfeiçoado, Pamela acredita que é preciso ter mais pesquisas. “Avaliar a qualidade dos serviços prestados, muitas vezes, é complicado, pois seria necessário medir qualitativamente e não apenas quantitativamente.” Alejandra Cortazar, doutora em políticas para a primeira infância e mestre em psicologia do desenvolvimento e da criança pela Universidade de Columbia, sugere que é necessário estabelecer padrões de qualidade exatos para poder monitorar o programa.
Pamela e Alejandra concordam que a intersetorialidade precisa aumentar e se intensificar. Conseguir que setores e ministérios diferentes trabalhem juntos, porém, não é fácil. “A política vincula educação, saúde e proteção social. Isso não aconteceu naturalmente ou espontaneamente e é preciso seguir avançando rumo a essa integração. Ainda é um programa mais ligado à saúde do que às outras áreas”, analisa Pamela. “E, sem interação, o que acontece nos países desenvolvidos, é que usa-se esforços em dobro, não se utiliza tão eficientemente os recursos e certas parcelas da população ficam desatendidas”, diz.
“Falta integrar o Poder Judiciário e o atendimento às crianças privadas do cuidado familiar, pois, muitas vezes, essas, em vez de terem acesso a mais serviços, são mais excluídas”, destaca Alejandra. Pamela acredita que falta ao programa estabelecer mais claramente como prioridade atender pessoas com deficiência, pobres e imigrantes, por exemplo. A comunicação entre diversas organizações também pode ser melhor. “Às vezes, uma informação de saúde não chega ao centro escolar e, se a família não acompanha de perto o sistema, a criança poderia ficar sem matrícula”, alerta Pamela.
“Falta um trabalho mais longitudinal, de acompanhamento permanente, mas estamos avançando”, aponta.Nesse sentido, a professora acredita que o programa colombiano De cero a siempre, inspirado no Chile Crece Contigo, é um bom exemplo. “É uma política que se inspirou no Chile Crece Contigo, mas que tem uma visão mais projetiva, de futuro, deixando claro que o trabalho não se acaba aos 3 ou aos 6 anos. Há uma visão de acompanhamento e de antecipação”, compara.
Palavra de especialista
Contraponto: uma visão crítica
“Chile Crece Contigo é um sistema difícil de entender a avaliar. Porque alguém poderia pensar que um programa social é um pacote de bens e serviços que se entrega à população. Só que o Chile Crece Contigo não só entrega algo assim, ele é mais um sistema de protocolamento, de maior destinação de recursos e de melhor coordenação do que se entrega. É difícil saber onde começa e termina Chile Crece Contigo e o que já era oferecido antes e passou a ser oferecido depois. O sistema tem um bom objetivo, de congregar tudo o que se oferece em infância, mas carece de avaliação. Desde a criação, há uma falta grave de investigação. Ele não foi implementado tendo em mente que deveria ser avaliado, e de forma rigorosa. Não foi desenhado de forma que se possa avaliar. Essa é uma falha lamentável, pois sabemos menos do impacto do que deveríamos. Sem avaliar, é difícil saber se precisa oferecer mais coisas, se precisa incluir mais uma determinada população. Se o Brasil for aplicar algo assim precisa investigar o que já tem, entender a população-alvo (gestantes, crianças na faixa etária) para, então, desenhar o que será oferecido, com metas específicas que possam ser avaliadas.”
Andrés Hojman, professor da Escuela de Gobierno da Pontifícia Universidade Católica do Chile, mestre e doutor em economia pela Universidade de Chicago, economista pela Universidade do Chile, pesquisador de impacto de políticas de formação de capital humano, com ênfase em programas de educação infantil
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
E se os novos governantes abraçarem a causa da primeira infância?
Santiago, Chile — A responsabilidade pelo futuro da primeira infância no Brasil estará, em grande parte, nas mãos dos candidatos eleitos para a Presidência da República e o governo do Distrito Federal e dos estados a partir de hoje. O poder público tem aptidão para garantir os direitos e o pleno desenvolvimento das crianças do país — ou não. Tudo depende dos recursos, das políticas públicas e, para começar, da vontade política para promover a valorização da fase que começa no útero da mãe e se estende até os 6 anos de idade. Independentemente do partido ou do posicionamento ideológico, os novos governantes têm potencial de se tornarem grandes agentes de transformação nesse sentido.
Exemplos de fora mostram o grande impacto que a decisão de abraçar a causa da primeira infância pode trazer a um país. E não é preciso ir muito longe: é possível aprender lições valiosas de vizinhos, como o Chile. A república encravada entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico viu o tratamento destinado às crianças pequenas se revolucionar nos últimos 12 anos com a criação do programa intersetorial Chile Crece Contigo, impulsionado pela decisão de quem teria poder para fazer com que ministérios diferentes trabalhassem juntos: a então presidente Michelle Bachelet. A médica e política chilena presidiu o país em dois mandatos: o primeiro, entre março de 2006 e março de 2010, e o segundo, entre março de 2014 e março de 2018.
Como o sistema de proteção da primeira infância foi instituído como política de estado, e não de governo, continuou se desenvolvendo durante o mandato de Sebastián Piñera, de centro-direita, que comandou o país entre março de 2010 e março de 2014 e acaba de assumir novamente a presidência do Chile, que deve prosseguir avançando com o programa, de acordo com Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile. “O programa se tornou lei e, por isso, não pode desaparecer. O orçamento tem crescido a cada ano”, diz. Por fatores econômicos e geográficos, trata-se de um país com o qual o Brasil pode se comparar.
Se uma política pública voltada à primeira infância deu certo por lá, é possível que um programa voltado a esse público dê certo por aqui. Jeanet ressalta, porém, que qualquer política precisa ser desenhada de acordo com as especificidades de cada região. “Cada país é totalmente distinto, depende muito de como se organiza. É importante que os países não sejam tão ambiciosos no início: não se pode esperar iniciar já com uma grande dimensão de alcance. Mas é preciso começar e ir avançando gradativamente”, ensina. E o pontapé para que um processo desses se estabeleça, é a decisão política. Governantes locais podem fazer a diferença em suas regiões, mas para uma estratégia nacional, o ideal é que a iniciativa comece na presidência.
O envolvimento presidencial também foi fundamental para permitir a implantação de programas bem executados em outros países da América Latina que se inspiraram no modelo chileno (por exemplo, “De zero a sempre”, na Colômbia; e “Uruguai Cresce Contigo”). No Brasil, existem algumas iniciativas positivas, como o Brasil Carinhoso (programa criado em 2012 de transferência de renda da esfera federal para as redes municipais com o objetivo de custear despesas com educação infantil, cuidado integral, segurança alimentar e nutricional de crianças em vulnerabilidade social) e Criança Feliz (programa de visitas domiciliares lançado em 2016, que, até o momento, atingiu 16,5% da meta de visitas às famílias), no entanto, ainda não surtiram efeitos em larga escala.
Para que um programa voltado à primeira infância tenha efetividade e seja aplicado em larga escala, precisa ser visto como prioridade e abraçado como estratégia de desenvolvimento pelo presidente e demais autoridades. Independentemente do resultado nas urnas neste domingo (7), fica a torcida para que os novos representantes da população, de todos os níveis e poderes, entendam a importância dessa causa e trabalhem, desde o início do mandato, em prol dela.
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)