Categoria: Chile Crece Contigo
Mariano Jabonero, secretário-geral da Organização dos Estados Ibero-Americanos (OEI), estará está semana em Córdoba, na Argentina, para participar da oitava edição do Congresso Internacional da Língua Espanhola entre quarta-feira (27) e sábado (30). Entre esta segunda (25) e terça (26), a cidade também recebe o Seminário Ibero-Americano de Jornalismo e Comunicação, organizado pela OEI e que reunirá jornalistas e estudiosos da área de diversos países, incluindo o Brasil.
O Correio Braziliense estará representado no evento pela jornalista Ana Paula Lisboa, que, a convite da OEI, será uma das painelistas da discussão sobre “Comunicação transmídia: intertextualidade da palavra”. Em conversa no escritório da OEI em Brasília, Mariano Jabonero comentou a importância e as recomendações dele para a primeira infância no Brasil e nos demais países da Ibero-América. Confira entrevista com ele:
Como está sendo o início da sua gestão à frente da OEI?
Fui eleito em abril e assumi o posto em julho do ano passado. Têm sido meses muito intensos, de muito trabalho e, na verdade, também apaixonantes porque tratamos de temas muito importantes. Tive a vantagem de que já estava trabalhando na OEI há muitos anos; então, conheço a casa por dentro. No entanto, é uma região muito grande, especialmente, a América Latina. É complexo. Tomar o pulso de tudo isso é uma tarefa que leva tempo e esforço. É preciso planejar o orçamento com muito rigor…
Quais são os maiores desafios?
A região é muito grande, e há vocação para a integração. Mas os instrumentos políticos para integração estão em crise. A educação e a cultura são fatores muito sólidos e permeiam a região. Podemos ser a maior comunidade bilíngue do mundo, há potencial de todo tipo. Mas há muitos desafios, entre eles a desigualdade, em todos os sentidos, social, de gênero… E a desigualdade feminina, especialmente entre a mulher rural e a mulher indígena, é muito grande. O abandono escolar e, em muitas vezes, por gravidez precoce, acontece muito. Assim, perpetuam-se desigualdades. Estudos mostram que uma mãe analfabeta tem mais chance de que seus filhos morram precocemente. Por isso, precisamos investir e priorizar educação.
Como o senhor avalia que a primeira infância tem sido tratada na Ibero-América? Os países estão fazendo um bom trabalho?
Tenho que ser sincero e dizer que precisamos avançar. Há dois comportamentos históricos: um de não ligar ou cuidar muito disso porque não se importa com isso; e outro de perceber que, muitas vezes, está mal, mas saber que tem que melhorar. Precisamos passar para o segundo comportamento e tentar melhorar. Até porque investir na primeira infância é apostar no futuro. Um dos principais problemas na região da Ibero-América é a baixa cobertura da educação infantil. E, nessa etapa, eu diria que é baixa em todos os países. Além disso, a cobertura é de baixa qualidade, porque sempre foi considerada uma etapa subsidiária, enquanto a educação básica, que é obrigatória, é priorizada, pois essa fase dura de 16 a 17 anos, e os governos prestam mais atenção.
Qual cenário o senhor vê no Brasil?
A cobertura da educação infantil brasileira também é baixa, muito baixa, todavia bastante similar a outros países da região. Há outros países com maior nível de cobertura, como é o caso o Uruguai, do Chile, da Argentina, mas, no restante dos vizinhos, é bem baixa. A atenção dada ao componente educativo da etapa tem sido escassa. Há também uma questão de recursos humanos, pois não há formação suficiente para trabalhar com isso. Para ser professor da educação primária e secundária, exige-se titulação. E, nas creches e nas escolas de ensino infantil, não houve todavia essa formação no quadro.
Qual aspecto o Brasil mais precisa melhorar?
Precisamos melhorar mesmo a formação dos docentes para educação infantil. Isso é fundamental. A etapa da primeira infância é a mais importante para investir nas crianças, pois marca o futuro das meninas e dos meninos. Por vários motivos, entre eles, porque é quando está acontecendo maturação neurológica, quando conexões estão sendo criadas no cérebro, quando as crianças começam a socializar com a família e com seu entorno, o que gera grandes avanços… A primeira infância está entre as prioridades da sua gestão para os quatro anos de mandato.
O que a OEI vai fazer nesse sentido?
Já estamos fazendo. Temos programas de apoio aos governos fazendo um diagnóstico da situação, indicando quais são os problemas mais e menos graves. Também estamos fazendo comparação de políticas públicas diferentes a fim de difundir as melhores práticas por meio de publicações. Também estamos desenvolvendo metodologias de trabalho para a primeira infância, colocando para os governos e as instituições quais seriam as melhores maneiras de trabalhar.
Qual a sua avaliação do programa Chile Cresce Contigo, exemplo de política pública voltada para a primeira infância? Seria algo replicável no Brasil?
É muito positivo. No Chile, os últimos presidentes colocaram a primeira infância à frente. A cobertura de educação infantil é boa para a média dos países da América Latina. Com relação a um possível “Brasil Cresce Contigo”, a magnitude de um país não é uma desvantagem. Em quase todos os países, os programas de primeira infância têm forte implicação municipal porque estão muito próximos das políticas municipais, já que são políticas de apoio às famílias, de saúde, de bem-estar social, de educação e de tudo que tem a ver com um município. Há países nos quais tudo que tem a ver com educação infantil acontece nas escolas municipais. Então, ser um país grande não é impeditivo para aplicar um programa do tipo, que seria global, mas aplicado em nível municipal.
Porém é necessário haver orçamento e vontade política…
Com certeza. Nessas coisas creio. A América Latina é a região onde mais se investe em educação no mundo fazendo a correlação com o PIB (Produto Interno Bruto). Os países da América Latina investem 5,2%. Está acima da média dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico), que investem 4,6%. Então, o que falta não é dinheiro, é melhor gestão. A melhor vontade política se traduz em orçamento. Quando alguém fala de política, precisa falar de orçamento. E, se um país investe mais num tema do que em outro, está mostrando que quer mais um tema do que outro.
Quais países da América Latina têm as melhores políticas?
Além do Chile, a Colômbia (que tem o programa De zero a sempre, que é muito interessante), a Argentina (que conta com centros de socialização e estímulo para a primeira infância; onde as crianças ficam, assim, sobretudo as mães ganham tempo livre para fazer outras coisas), o Uruguai e o Peru.
O senhor não citou o Brasil. Ele está entre os piores no que diz respeito à primeira infância?
Há complexidades especiais do Brasil, que é um país muito grande é muito desigual, mas, decididamente, não está entre os piores. Os piores tratamentos à primeira infância estão na Nicarágua e outros países da América Central. Os países mais comparáveis com o Brasil seriam México e Colômbia, que têm extensão maior. Podemos dizer que o Brasil está na média dos países da região que, como eu disse a princípio, não é boa.
Como a OEI apoiará ou trabalhará com os novos governantes do Brasil, que assumiram mandato este ano?
A boa notícia é que o Brasil conta com um presidente eleito democraticamente. Isso é muito bom porque, há alguns anos, não era assim na América Latina. Vamos apoiar as políticas que melhorem a educação, a cultura e o tratamento dado às pessoas. Todos os países da região da Ibero-América têm situação política muito diferente, mas a OEI trabalha em todos eles. Não tenho dúvidas de que os temas que mais nos preocupam são primeira infância, competências do século 21, governança, educação superior e ensino de português.
O que os adultos, incluindo pais e professores, devem valorizar na interação e na educação de crianças de até 6 anos?
Duas iniciativas são principais: a leitura, no sentido de contar histórias e incentivar uma atitude positiva com relação aos estudos, e o despertar da curiosidade. Quando falo da leitura, ela não deve ser confundida com aprender a ler e a escrever, que é uma tarefa de aprendizagem muito escolar, qualquer professor com boa formação sabe ensinar isso. Estou falando de algo mais básico: é de uma atitude com relação aos estudos. Há uma especialista em literatura infantil colombiana chamada Yolanda Reyes (escritora, educadora e promotora de leitura) que diz que a leitura na primeira infância tem um primeiro componente que é ser um ato de amor. O fato de o pai, a mãe, os avós pegarem a criança nos braços e lerem para ela quando ela ainda não pode fazê-lo gera um laço afetivo muito forte. Além disso, esse ato apresenta um mundo diferente à criança. Então, após você ler uma história para uma criança, ela dirá: “outra”, e “outra” e “outra vez”. Isso gera um laço afetivo, além de uma atitude favorável com relação aos estudos. Por isso, como diz a Yolanda Reyes, é um gesto de amor. Em segundo lugar, é um gesto educativo. A criança terá vontade de aprender a escrever e a ler, o que será muito útil. Em terceiro lugar, é um ato político. Os países avançados têm a leitura como pilar, o elemento da leitura faz parte da política do governo para educação. Um plano de leitura é um valor positivo para a cidadania.
Além de ler para as crianças, como se parte para a segunda iniciativa, de despertar a curiosidade?
Essa outra estratégia importante não é ideia minha, é da argentina Melina Furman (doutora em educação, pesquisadora da formação do pensamento científico do nível inicial ao universitário), que fala do “despertar de mentes curiosas”. Isso é que o menino ou a menina tenha uma atitude curiosa, que manipule os objetos, que brinque, que crie, que tenha uma atitude que podemos classificar como “pré-científica”, de descobrir. Isso tem a ver com competências cognitivas, comunicativas, são “pré-competências” ou competências prévias…
Como se estimula o desenvolvimento dessas competências?
Elas não vão se desenvolver com uma criança ficando três horas em frente a uma tela assistindo a desenhos. Isso não desperta a curiosidade, isso é colocar o menino numa atitude passiva por completo. Então, como é possível desenvolver isso? Em ambientes enriquecidos em que existam múltiplos estímulos. São lugares onde se possa brincar com brinquedos e com outras crianças, onde tenha objetos para manipular, coisas para se divertir.
Por que as competências do século 21 estão entre suas prioridades? Como desenvolvê-las?
É um tema fundamental, especialmente as competências comunicativas, digitais (ou seja, tudo que tem a ver com tecnologia) e socioemocionais (que tem a ver com direitos humanos e cidadania). É uma área em que precisamos ter mais formação de docentes. É um trabalho que deve ser feito em longo prazo nas escolas e veremos os resultados lá na frente no mercado de trabalho. Com relação ao pensamento crítico, importante para a educação midiática, ele deve ser estimulado desde o início da educação, para que a criança possa identificar o que é e o que não é falso, inclusive com relação a desenhos, vídeos e notícias. É preciso criar uma educação de uso de telas e dispositivos móveis entre crianças de 0 a 6 anos. Há muita preocupação com o tema, porque a interação das crianças sem cuidado com essas mídias causa muitos problemas.
Livro reúne resultados do Criança Feliz e de outros programas de desenvolvimento infantil
Estudo, feito com apoio de fundação holandesa, foca efeitos de políticas públicas para crianças de 0 a 6 anos de baixa renda
Lançado em dezembro de 2018, o livro Da ciência à prática — os programas de apoio ao desenvolvimento da América Latina reúne resultados de levantamento sobre as iniciativas de estímulo ao desenvolvimento de crianças de 0 a 6 anos de famílias de baixa renda ou em situação de vulnerabilidade social.
Dividida em cinco capítulos, a publicação traz evidências científicas sobre a importância dessa fase, um histórico desse tipo de iniciativa no Brasil e no mundo e detalhes sobre a metodologia e o trabalho de programas que são referência na América Latina. Bons exemplos são Educa a Tu Hijo (Cuba), Chile Crece Contigo, Uruguay Crece Contigo, Cuna Más (Peru), Pastoral da Criança, Primeira Infância Melhor (PIM), Mãe Coruja Pernambucana e outros no Brasil.
As 212 páginas evidenciam ainda resultados do programa Criança Feliz no Brasil que, em julho de 2017, atendia 69 municípios e, hoje, está presente em 2.692 cidades, contemplando mais de 400 mil crianças e gestantes — especialmente nas regiões Norte e Nordeste. A produção editorial é da Cross Content, cuja equipe viajou centenas de quilômetros pelo Brasil, visitando 13 estados em diversas regiões, acompanhou visitas domiciliares em dezenas de cidades, além de entrevistar gerentes, supervisores, crianças, mães, pais, avós, entre outros beneficiados pelo Criança Feliz.
A publicação discute ainda a importância do investimento na primeira infância, que dá mais retorno do que qualquer outro investimento. O livro conta com o apoio da fundação holandesa Bernard van Leer. Uma versão gratuita da publicação está disponível para download no link.
Santiago, Chile — Para que um programa com o objetivo de garantir o desenvolvimento de crianças pequenas comece por aqui, o ideal é que parta da presidência da República, como na experiência do país encravado entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico. O governo do Chile entendeu que investir na primeira infância é fundamental para diminuir lacunas de desigualdade e acelerar o desenvolvimento econômico do país.
Em 2006, foi dada a largada ao programa Chile Crece Contigo, focado em garantir o pleno desenvolvimento de crianças de 0 a 6 anos por meio de várias frentes: saúde, assistência social e educação. A política pública oferece serviços para todos atendidos no sistema público de saúde (cerca de 80% da população infantil), mas a intensidade e a quantidade de benefícios varia de acordo com o poder econômico. O apoio é mais completo para os que pertencem aos 60% mais vulneráveis do país que são, de fato, o público-alvo do sistema.
Doze anos depois, o investimento e os esforços compensaram? Pesquisas comprovaram melhorias, especialmente, no quesito saúde. Houve redução no número de partos prematuros e de baixo peso ao nascer, e aumento dos períodos de amamentação exclusiva. Poucos estudos, no entanto, verificaram evidências de impactos nas outras áreas até agora. O que é compreensível: os efeitos de uma política de estado para a primeira infância devem ser medidos a longo prazo, com as consequências positivas desaguando na adolescência e na vida adulta. E tudo indica que as repercussões do programa devem ser cada vez melhores, como apontam estudo publicado na revista Lancet e relatório do Banco de Desenvolvimento da América Latina.
Recomendações
Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social (MDS) do Chile, atua no programa Chile Crece Contigo desde o início de sua implementação. No primeiro ano, dos 346 municípios do país, 159 foram envolvidos. No ano seguinte, todos passaram a participar. E no terceiro ano, a iniciativa se tornou lei. “A política foi desenhada por técnicos que definiram o jeito de tratar a primeira infância que seguimos até hoje, o que influencia tudo, até o jeito de abordar os assuntos com os pais”, comenta Jeanet. “Ao falarmos sobre castigos físicos, não dizemos ‘não, você não pode fazer isso’. Explicamos que não se deve usar porque isso pode prejudicar o cerebrinho do seu filho e mostrar o porquê, além de explicar como educar sem violência.”
O ministério onde Jeanet trabalha já foi procurado por diversos países em busca de orientações para replicar a política (já há modelos funcionando em Colômbia, Uruguai e Panamá, por exemplo). “Por parte do Brasil, fomos procurados pelo Governo do Ceará, e inclusive fui à Fortaleza falar de como é o nosso trabalho”, relata. A experiência chilena, porém, não é suficiente para embasar um sistema. “Não é uma política pública que eu possa escrever um manual e dizer ‘toma, aí está, implemente’, porque cada país tem uma realidade totalmente diferente”, justifica. “Depende muito do estilo de organização governamental e da maneira como se organizam as estratégias voltadas à primeira infância.”
De algo, porém, Jeanet, que trabalha na Divisão de Promoção e Proteção Social do MDS chileno, está convencida de que deve ser regra: “A iniciativa deve ser pensada, ou abraçada, por alguém ou algum setor que seja capaz de liderar a mudança, colocar ordem na casa, como o presidente do país, pois haverá muitas resistências com as quais lidar”. A relutância, ela explica, parte tanto de outros entes políticos quanto de profissionais na ponta. “Para fazer com que diferentes ministérios trabalhem juntos, o chamado precisa vir de cima, pois ninguém pode se negar a ouvir a presidência. No Chile, tudo foi impulsionado pela presidência, o que foi muito importante”, diz.
“Foi preciso superar muita resistência, por exemplo, por parte dos profissionais de saúde, que já faziam o registro de informações das crianças de um jeito e tiveram de passar a fazer de outro, mas hoje está totalmente incorporado. Foi todo um aprendizado”, conta. “O orçamento inicial não era tão grande, mas foi crescendo ano a ano, hoje, atendendo cerca de 680 mil crianças e 120 mil gestantes.” Aí está outra lição do modelo chileno. “Ao elaborar a política, é preciso pensar no dinheiro. Pois pode ficar superbonito escrito no papel, mas, se não há orçamento, a verdade é que vai ser só poesia”, alerta.
“Afinal, não basta dizer que é a favor da primeira infância, até porque ninguém vai dizer que é contra a primeira infância. Se não há apoio real por trás por parte de um agente político poderoso, não avança.” No Brasil, caso o presidente eleito, Jair Bolsonaro, não resolva apostar numa política integral de primeira infância, o que seria o ideal, os governadores do DF, o eleito Ibaneis Rocha, e os governadores dos estados podem fazer a diferença. “Se não for possível fazer em nível global, dá para implementar estratégias em cada unidade da Federação”, acredita.
Um conselho da porta-voz é evitar o perfeccionismo na hora de começar. “Não tenha pretensão de começar com tudo pronto, com tudo de uma vez, de imediato. Só tenha a pretensão de começar. Parta de algo como pontapé inicial para depois ir crescendo”, ensina. Ela faz essa observação, pois já acompanhou casos de países que vieram buscar inspiração no modelo chileno,mas estão tentando aplicar todos os aspectos do programa de pronto. “Alguns estão esperando virar lei primeiro para depois agir ou estão esperando isso ou aquilo. Não! Comece, pois, se não, passa uma vida toda e você não faz nada. Vá fazendo e aprendendo, fazendo e melhorando”, alerta.
Pontos para avançar
Apesar do impacto e das boas intenções, Chile Crece Contigo, como qualquer outra política pública de qualquer outro país, tem espaço para melhorias. “É um programa que promete mais no papel do que entrega, mas a validade e a importância são inegáveis”, comenta Alejandra Cortazar, pesquisadora do Centro de Estudios Primera Infancia. Ela avalia que é importante desvincular o programa da vontade polícia, pois, apesar de definido em lei, ainda depende muito de decisões do governo. Professora de educação infantil da Pontifícia Universidade Católica do Chile, Pamela Rodríguez Aceituno destaca que Chile Crece Contigo se tornou uma instituição no país (qualquer pessoa a quem você perguntar sabe do que se trata), trouxe muitos efeitos positivos e oferece muitos serviços importantes.
No entanto, isso não o isenta de ter que melhorar. “Sem desmerecer o programa, mas apenas a presença dele não significa que todas as coisas estejam solucionadas… Seria fantástico se fosse assim.” Até mesmo para identificar o que deve ser aperfeiçoado, Pamela acredita que é preciso ter mais pesquisas. “Avaliar a qualidade dos serviços prestados, muitas vezes, é complicado, pois seria necessário medir qualitativamente e não apenas quantitativamente.” Alejandra Cortazar, doutora em políticas para a primeira infância e mestre em psicologia do desenvolvimento e da criança pela Universidade de Columbia, sugere que é necessário estabelecer padrões de qualidade exatos para poder monitorar o programa.
Pamela e Alejandra concordam que a intersetorialidade precisa aumentar e se intensificar. Conseguir que setores e ministérios diferentes trabalhem juntos, porém, não é fácil. “A política vincula educação, saúde e proteção social. Isso não aconteceu naturalmente ou espontaneamente e é preciso seguir avançando rumo a essa integração. Ainda é um programa mais ligado à saúde do que às outras áreas”, analisa Pamela. “E, sem interação, o que acontece nos países desenvolvidos, é que usa-se esforços em dobro, não se utiliza tão eficientemente os recursos e certas parcelas da população ficam desatendidas”, diz.
“Falta integrar o Poder Judiciário e o atendimento às crianças privadas do cuidado familiar, pois, muitas vezes, essas, em vez de terem acesso a mais serviços, são mais excluídas”, destaca Alejandra. Pamela acredita que falta ao programa estabelecer mais claramente como prioridade atender pessoas com deficiência, pobres e imigrantes, por exemplo. A comunicação entre diversas organizações também pode ser melhor. “Às vezes, uma informação de saúde não chega ao centro escolar e, se a família não acompanha de perto o sistema, a criança poderia ficar sem matrícula”, alerta Pamela.
“Falta um trabalho mais longitudinal, de acompanhamento permanente, mas estamos avançando”, aponta.Nesse sentido, a professora acredita que o programa colombiano De cero a siempre, inspirado no Chile Crece Contigo, é um bom exemplo. “É uma política que se inspirou no Chile Crece Contigo, mas que tem uma visão mais projetiva, de futuro, deixando claro que o trabalho não se acaba aos 3 ou aos 6 anos. Há uma visão de acompanhamento e de antecipação”, compara.
Palavra de especialista
Contraponto: uma visão crítica
“Chile Crece Contigo é um sistema difícil de entender a avaliar. Porque alguém poderia pensar que um programa social é um pacote de bens e serviços que se entrega à população. Só que o Chile Crece Contigo não só entrega algo assim, ele é mais um sistema de protocolamento, de maior destinação de recursos e de melhor coordenação do que se entrega. É difícil saber onde começa e termina Chile Crece Contigo e o que já era oferecido antes e passou a ser oferecido depois. O sistema tem um bom objetivo, de congregar tudo o que se oferece em infância, mas carece de avaliação. Desde a criação, há uma falta grave de investigação. Ele não foi implementado tendo em mente que deveria ser avaliado, e de forma rigorosa. Não foi desenhado de forma que se possa avaliar. Essa é uma falha lamentável, pois sabemos menos do impacto do que deveríamos. Sem avaliar, é difícil saber se precisa oferecer mais coisas, se precisa incluir mais uma determinada população. Se o Brasil for aplicar algo assim precisa investigar o que já tem, entender a população-alvo (gestantes, crianças na faixa etária) para, então, desenhar o que será oferecido, com metas específicas que possam ser avaliadas.”
Andrés Hojman, professor da Escuela de Gobierno da Pontifícia Universidade Católica do Chile, mestre e doutor em economia pela Universidade de Chicago, economista pela Universidade do Chile, pesquisador de impacto de políticas de formação de capital humano, com ênfase em programas de educação infantil
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
Os centros de saúde são a porta de entrada para o programa Chile Crece Contigo que, além de agir com o objetivo de que cada criança desenvolva todo seu potencial, ataca desigualdades
Santiago, Chile — Em La Pintana, a comuna mais pobre da região metropolitana da capital chilena, com 198 mil habitantes, o Centro de Salud Familiar (Cesfam) El Roble é um dos sete do tipo a atender a população local. Cerca de 177 mil pessoas, entre essas, 22 mil de até 9 anos, fazem uso do sistema público de saúde na região. É nesse tipo de espaço que costuma ocorrer o primeiro contato de famílias e crianças pequenas com o programa Chile Crece Contigo, ainda durante a gravidez, no pré-natal, prosseguindo após o nascimento, nas consultas de acompanhamento.
É como se os centros de saúde fossem a porta de entrada para as outras frentes do sistema, pois é lá que pais e mães participam de oficinas para aprender os melhores cuidados e formas de estimular os filhos a cada fase da vida, além de receberem kits. Desde a implementação da política pública, em 2006, os serviços passaram a ser cada vez mais integrados. Esses centros contam, por exemplo, com sala de estimulação para atacar desde cedo e prevenir a intensificação de qualquer tipo de déficit ou atraso no desenvolvimento. Nesses espaços, médicos e enfermeiros trabalham com fonoaudiólogos, terapeutas e profissionais de educação infantil.
“Fomos um dos centros pioneiros em ter educadora”, conta Francis Ciampi, diretora da unidade El Roble, referindo-se à Patrícia Lopez, educadora infantil do Chile Crece Contigo. “Antes desse programa, ter fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e educadora era algo impensável dentro de uma unidade de saúde primária”, relata Patrícia. “O mais bonito da iniciativa é ajudar a acabar com as lacunas da desigualdade do nosso país, que são muitas. E começa-se a atacar essas desigualdades desde a barriga, desde o berço, para que crianças pobres consigam ter as mesmas chances de desenvolvimento que as ricas”, afirma. Ou seja, permitir condições de início equivalentes para que o resto da vida também seja mais igualitário, na escola e no mundo do trabalho.
“O que é possível graças a essa intervenção integral proposta pelo programa, juntando diversos profissionais e áreas para priorizar a infância”, completa Francis. “O Chile Crece Contigo veio para potencializar as estratégias que oferecíamos antes, mas de forma desordenada, agora, de jeito coeso, conseguindo também identificar melhor e agir mais rápido em situações de risco”, diz Francis. “A cada contato com as famílias, são registrados alertas de vulnerabilidade. Por exemplo, mãe com escolaridade incompleta, criança com deficiência, família com esse ou aquele problema. E, a partir de um alerta desses, ações específicas serão implementadas para atender melhor aquela criança”, observa Valeria Guzmán, encarregada da comuna de La Pintana.
Os efeitos são esperados a longo prazo, como esclarece Rodrigo Cabezas, profissional do Fondo de Intervenciones de Apoyo al Desarrollo Infantil que trabalha na sala de estimulação com terapia psicomotora. “A lei do Chile Crece Contigo não é de muito tempo atrás. Então, veremos os resultados das intervenções lá na frente, na adolescência, na universidade. Se um menino tem dificuldade de andar agora, quando vem à sala de estimulação, os pais podem pensar que estamos apenas agindo para que esse garoto consiga fazer melhor as coisas agora. Mas não é só isso, pois o trabalho age no físico e no cognitivo”, aponta. “Com as atividades, estamos dando à criança a chance de desenvolver as distintas competências necessárias no mundo atual.”
Qualidade superior
Desde a implementação do programa multissetorial de proteção à primeira infância no país, os pais recebem, além de orientações sobre como cuidar e estimular os filhos a cada fase, kits de materiais ao comparecer aos centros de saúde. Durante a gestação, são entregues agenda, guias da gravidez, CD de músicas para tocar para o bebê ainda no útero, DVD com exercícios pré-natais, guia de paternidade ativa e corresponsável para pais. Ao nascer, há distribuição de berço portátil, colchão e jogo de fronha, lençol e manta, tapete de EVA, livros, DVD com lições educativas, móvel de estimulação, mochila para carregar itens infantis, toalha, trocador, artigos de higiene (como sabão e pomada), fraldas e roupas.
Materiais de estimulação continuam sendo entregues aos quatro meses e também quando a criança completa 1, 2, 3 e 4 anos. Outros itens são distribuídos ainda quando os pais participam de oficinas e quando há necessidades específicas. Por exemplo, se há um diagnóstico de deficiência ou doença, há equipamentos para estimulação especializados. Existe um kit lúdico de apoio para meninos e meninas em situação de emergência, como terremoto ou outro tipo de desastre. Todos os kits são tão completos que chamam a atenção.
“Ninguém fazia coisa da melhor qualidade para a rede pública antes. Então, os artigos são tão bons que até quem procura atendimento na rede particular gostaria de receber”, comenta Alejandra Cortazar, doutora em políticas para a primeira infância pela Universidade de Columbia. Isso incentiva que os pais levem os filhos para as consultas de acompanhamento nos centros de saúde, pois é lá que receberão os materiais. “Tudo de primeira qualidade realmente, tanto que a taxa de satisfação ultrapassa os 85%”, observa Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile.
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
Santiago, Chile — Do lado de fora, parece uma casa como as outras da rua, térrea e simples, com grades no portão. Por dentro, porém, a edificação, mesmo que modesta, abriga um universo de diversão, aprendizado, afeto e arte para 20 crianças de 2 anos a 5 anos e 11 meses. Assim é o único Centro Educativo Cultural de la Infancia (Ceci) localizado na comuna de La Granja, em Santiago, no Chile. Nesse modelo de educação infantil, todos convivem juntos em uma única sala, onde brincam, ouvem histórias, fazem desenhos e pinturas, além de almoçar. Muito além da estrutura ou de qualquer outro aspecto, o que faz a diferença ali, como contam as famílias, é a dedicação das duas educadoras, Cecilia Férnandez e Gladys Hormazaval.
“Sou apaixonada pelo que faço. Fico encantada com a pureza das crianças”, conta Gladys. O amor pela atividade é visível em tudo o que faz. Para explicar, por exemplo, a uma menina de 3 anos que ela não pode sair da sala enquanto os outros almoçam, não se limita a ordenar ou proibir. A funcionária senta com a garota e esclarece que, naquele momento, se ela ficar no quintal, estará sozinha, pois durante o almoço, as “tias” precisam ajudar as outras crianças a comer. “E se você cair e se machucar, doerá em você e também em mim. Sofreremos as duas.” A mesma gentileza e sensibilidade observa-se em Cecilia.
“A convivência com as crianças e as famílias sempre foi fácil para nós, pois nos baseamos no respeito. Há algumas muito ativas, outras mais reservadas, e aceitamos o jeito de cada uma. Não são elas que têm de se adaptar a nós, mas o contrário”, afirma Cecilia. Ali, meninos e meninas são livres para brincar com o que quiserem e só existe uma regra, baseada na consideração pelos demais: “É preciso respeitar o amiguinho, se ele está usando um brinquedo, por exemplo, tem de esperá-lo parar de usar”. Com o convívio social, é possível notar o desenvolvimento de cada aluno.
Experiência aprovada
“Uma das crianças aqui tem autismo, e o pai estava desesperançoso quando a trouxe para cá, mas, em pouco tempo, as mudanças eram visíveis. Ele conta que o filho mudou demais, socializa, participa das atividades”, comemora. Os bons resultados também têm como componente fundamental a participação ativa das famílias que não só comparecem a reuniões, mas avaliam as funcionárias periodicamente e são estimuladas a contribuir com os projetos da instituição, cada uma como puder. Os pais de Agustín Vergara, 5 anos, por exemplo, fazem móveis em madeira e trouxeram para o centro infantil um esqueleto de baleia em madeira, quando a turma estava investigando esse animal.
Em outra ocasião, quando as crianças estavam aprendendo sobre as abelhas, produziram a réplica de um apiário. Os temas que motivam as atividades são escolhidos pelas próprias crianças. Evelin Gallardo, mãe de Agustín, conta que dois tios do filho frequentaram o espaço durante a infância. “Por isso, procuramos esse lugar, que é excelente, a comida é de qualidade, tudo é bem-feito. O que realmente faz a diferença são as ‘tias’. O Agustín está aqui há três anos e melhorou muito na maneira de expressar ideias.” O garoto é um dos mais sociáveis da sala, gosta de puxar conversa com todo mundo.
Volta e meia diz aos outros que tem superpoderes: “O principal é o da supervelocidade”, brinca. Luciana Poblete Sepulteda, 5, diz que tem muitos amigos ali no centro infantil. “O que eu mais gosto aqui é descobrir sobre os animais, como a baleia”, conta. Ela mora perto do centro infantil e costuma ser buscada pela avó, Cecilia Cabierre, que é só elogios para a instituição. “É um espaço muito bom. Nesses dois anos, a Luciana aprendeu mais sobre compartilhar, dividir com os outros e socializar”, diz. Os Cecis são uma das modalidades alternativas ligadas à Junji (Junta Nacional de Jardines Infantiles). Esse tipo de espaço é sempre cedido e administrado por alguma organização social, recebendo fundos do governo. Cada estabelecimento pode atender até 32 crianças em período parcial de segunda a sexta-feira. À noite, são realizadas atividades com a comunidade.
Modelo diferente
O Ceci de La Granja surgiu como um centro comunitário de mães na década de 1970. “Durante o período da ditadura (que durou de 1973 a 1990), havia muitas famílias entristecidas. Muitos maridos tiveram de imigrar, e as esposas ficaram sozinhas. Éramos mães, mulheres da comunidade, que não tínhamos nada e começamos a trabalhar aqui tecendo lã, que vendíamos para o exterior”, recorda Cecilia. Elas não tinham com quem deixar os filhos, então vinham com eles para o espaço. Com o passar do tempo, cada vez mais integrantes passaram a trabalhar fora, então o que antes era um lugar para fazer artesanato na presença das crianças acabou se tornando um ambiente para acolher a meninada, mantido por mulheres da região.
“Recebíamos doações de alimentos, como queijo e leite, de ONGs e, em 1987, escrevemos uma carta à Junji pedindo ajuda para que fornecessem alimentação completa para os meninos”, afirma Cecilia, cujos três filhos e três netos frequentaram o espaço durante a infância. A existência e a continuidade do centro é prova do esforço das funcionárias e do envolvimento da comunidade com ele, pois os desafios não foram poucos. “Antes, tínhamos muitos cômodos, então atendíamos mais crianças, divididas em três turmas, até passarmos por um incêndio”, relata Cecilia. A casa ficou destruída depois que o fogo, que começou em um vizinho, se alastrou para ali.
A edificação (que hoje conta com dois salões, um onde funciona o centro infantil, e outro onde são oferecidas oficinas para avós) foi reconstruída pelas próprias famílias. Durante as obras, a iniciativa funcionou por dois anos em uma capela e por mais um em um colégio. Depois disso, o local passou a receber, além de alimentação de Junji, recursos do governo, tornando-se um Ceci. Natalia Jimena Tapia Arévaldo, profissional de gestão de programas da Junji, explica que cada unidade do tipo tem particulares, mas o que caracteriza a todos é o senso de comunidade. “A participação é muito grande. Se os pais trabalham e não podem vir ali pessoalmente, mandam algo”, observa.
“Existe a noção de que a responsabilidade não é só da instituição, pois a família é a primeira fonte educadora”, explica. “E, assim, os Cecis acabam sendo, muitas vezes, mais legitimados pela população, há mais confiança por parte dos pais, pois eles também participam do processo e conhecem os funcionários”, completa Paulina Saldaño Aránguiz, funcionária do sistema de proteção à infância do programa Chile Crece Contigo.
>> Leia amanhã sobre o atendimento de saúde a crianças e famílias no Chile
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
Chile também enfrenta desafios para universalizar a educação infantil, especialmente até os 3 anos
Santiago, Chile — Capacitações e avaliações permanentes de professores garantem a qualidade do atendimento de crianças de até 6 anos em ambientes educativos chilenos. Apesar de ter avançado, o país também tem, como o Brasil, o desafio de ampliar o acesso a creches e jardins de infância, especialmente até os 3 anos de idade. Por lá, a educação infantil é obrigatória entre os 5 e os 6 anos, quando as crianças frequentam o nível chamado Kinder.
Nessa faixa etária, a cobertura passou de 85%, em 2001, para 98%, em 2017. No mesmo intervalo, a cobertura de educação infantil como um todo saltou de 30% para 53,24%. A universalização antes dos 5 anos é um desafio e uma das metas da Junta Nacional de Jardines Infantiles (Junji), instituição pública responsável pela administração e fiscalização de creches e jardins de infância no país desde 1970. No total, cerca de 793 mil meninos e meninas têm acesso à educação infantil por lá, dos quais apenas 6% frequentam instituições pagas.
Cerca de metade está em unidades públicas; e 43% em entidades particulares, mas com subvenção do governo. Enquanto o acesso não se torna universal, são atendidas prioritariamente as crianças das famílias mais pobres e as de até 4 anos. No total, a Junji administra 1.276 jardins de infância no país, 654 clássicos (fundados, mantidos e administrados pelo governo) e 622 alternativos (que recebem dinheiro público, mas a gestão é de alguma organização social). Belia Toro, chefe de desenvolvimento curricular da Junji, conta que, apesar de a Junta ter 48 anos e tradição em educação infantil, muito mudou após a criação do programa Chile Crece Contigo, há 12 anos. “A partir disso, passou a existir, além de um trabalho multissetorial (que precisa se intensificar), uma ideia de educação para a família, não só para as crianças”, aponta.
“Há uma série de materiais, oficinas e elementos de apoio para os pais”, completa. Adriana Gaete Somarriva, vice-presidente executiva da Junji, conta que a capacitação e a avaliação permanente de professores é prioridade na rede. Graças a isso, a oferta de educação infantil é de alta qualidade. “Eu tive muita experiência em escolas de educação básica. E, entre as crianças que estão chegando, você nota imediatamente quais são as que passaram por educação infantil e as que não. Pois o tempo que demoram a aprender a ler é muito menor”, compara. “Apesar de não serem alfabetizadas nesse período, elas têm um bom desenvolvimento na linguagem que faz toda a diferença”, afirma.
Comparações
O Brasil tem 8,5 milhões de crianças matriculadas na educação infantil, o que inclui creche e pré-escola. No Chile, as matrículas são da ordem de 793 mil — quase 11 vezes menos. O vizinho latino-americano também tem população e terreno mais de 11 vezes menores que os brasileiros. Há diferenças, mas também similaridades: ambos os países precisam trabalhar para ampliar o acesso à educação infantil.
Por aqui, a meta do Plano Nacional de Educação (PNE) é ter, pelo menos, 50% das crianças de até 3 anos frequentando creches, mas correlacionando dados das Sinopses Estatísticas da Educação Básica de 2017 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), apenas 26% o fazem.
No Chile, a taxa média de matrículas até os 3 anos está em patamar similar, mas ligeiramente maior que o do Brasil: cerca de 29%. Uma grande diferença é que boa parte da oferta brasileira é particular, enquanto no Chile é majoritariamente pública. Outra questão é que a procura dos próprios pais chilenos por matrículas até os 3 anos ainda não é tão alta, de acordo com avaliação da Junji.
Numeralha
Cobertura da educação infantil no Chile por faixa etária
De 85 dias a 1 ano – 10%
De 1 ano a 2 anos – 26%
De 2 anos a 3 anos – 33%
De 3 anos a 4 anos – 64%
De 4 anos a 5 anos – 90%
De 5 a 6 anos – 98%
Fonte: Junji
Pais satisfeitos
Com 31 educadoras e cinco cozinheiras, o Jardín Infantil Santa Mónica atende 236 crianças de 0 a 4 anos de segunda a sexta-feira, das 8h30 às 16h30. Ali, as crianças tomam café da manhã e almoçam. As turmas são divididas por faixa etária. A instituição se localiza na comuna de Recoleta, que, no total, tem seis jardins infantis clássicos (ou seja, fundados, mantidos e administrados pelo governo), como o de Santa Mónica, e nove que funcionam com transferências de fundos. María Jesus Arriagada, diretora da unidade, conta que há uma reunião mensal com todos os funcionários. “Nessas ocasiões, passamos um dia discutindo, promovemos capacitações, conseguimos revisar nosso projeto educativo e ver no que podemos melhorar.”
Num centro maior, é mais difícil que a participação comunitária seja tão próxima quanto em unidades menores, mesmo assim, o envolvimento familiar é muito estimulado. “Os pais que podem vêm e interagem. Os que não têm como estar presencialmente podem se fazer de presentes de outras formas. Pedimos que enviem por exemplo um vídeo mostrando como é a criança na rotina do lar”, conta a diretora María Jesus. Para subsidiar o trabalho e atender melhor às necessidades de cada estudante, ela conta que troca informações e dados sobre alunos com equipes de serviço social e do centro de saúde da região.
Para ela, o retorno das famílias é muito gratificante, como quando contam que a criança aprendeu algo diferente e mostrou em casa. “Muitos responsáveis que tiveram os filhos num jardim particular e vêm para cá gostam muito mais daqui. Não necessariamente a educação paga será melhor. Há um abismo de diferença entre a educação infantil pública e muitos jardins particulares”, comenta. A estudante de estética Susan Ramirez fica muito tranquila ao deixar a filha de 1 ano e 9 meses, Florencia, ali. “Vejo que ela gosta das tias. Isso é o mais importante. Mais que a estrutura, as educadoras fazem a diferença, pois são muito prestativas e dedicadas”, elogia.
A haitiana Dialine Teautij mora no Chile há pouco tempo e, apesar de falar pouco espanhol, demonstra que está satisfeita com o desenvolvimento da filha de 1 ano, Delca. “Ela fica bem e feliz aqui. Não chora para vir”, conta a vendedora numa barraca de feira. Álvaro Berrios Vergara trabalha na construção civil e busca o filho Gustavo, 3, no local quase todos os dias. “Este é o primeiro ano dele nesse jardim e vejo que é muito melhor do que o em que ele estava anteriormente, pois as tias são mais próximas dos alunos e se preocupam mais”, afirma o pai ainda de outros filhos de 16 anos, 12 anos e 10 anos. Nicolás Riquelme só tem elogios para a experiência da filha, Colomba, 3, ali.
“A qualidade é excelente, ela me conta dos desenhos que fizeram e outras atividades.” Colomba fala com carinho de Joselyn Campillay, educadora que trabalha há três anos no local. A filha dela, Fernanda, 3, também frequenta o jardim, mas em outra turma. “É muito gostoso conviver com crianças, todos os dias há algo especial. Tenho 30 anos, mas carrego comigo a alegria da minha infância”, conta ela que também tem um filho de 12 anos.
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
O que o Brasil pode aprender com o Chile sobre primeira infância?
Santiago, Chile — Os rumos da primeira infância no Brasil nos próximos quatro anos foram selados com o resultado final das urnas no último domingo. A partir de 1º de janeiro de 2019, recairá sobre o presidente eleito, Jair Bolsonaro; o governador eleito do DF, Ibaneis Rocha; e os governadores dos 26 estados parte considerável da responsabilidade pelo futuro das crianças de até 6 anos do país. Com vontade política e gestão adequada, eles podem fazer muito por elas — ou não. Os novos governantes têm o potencial de acelerar e intensificar o desenvolvimento infantil, caso abracem a causa e a tratem como prioridade.
Um investimento que se provou melhor do que qualquer outro: além do retorno social, cada dólar gasto com o início da vida uma vez traz um retorno anual de mais de 14 centavos por criança pelo resto de seus dias. O cálculo é do economista estadunidense James Heckman, ganhador do Prêmio Nobel da área no ano 2000. Os efeitos da decisão política de priorizar a primeira infância não precisam se limitar a um mandato, desde que o tema seja objeto de uma política de Estado e não de governo. É o que aconteceu no Chile, país que mais investe na primeira infância da América Latina. Lá, o programa Chile Crece Contigo, adotado a partir de 2006, tornou-se lei em 2009 e continuou mesmo após a saída da ex-presidente Michelle Bachelet, que iniciou o projeto.
Ela e Sebastián Piñera, atual presidente chileno, “revezam” o comando do país desde então. Michelle Bachelet teve dois mandatos (2006-2010 e 2014-2018) e Piñera começou, em março deste ano, seu segundo, após presidir a nação latino-americana de 2010 a 2014. Apesar de os dois serem opositores na política, quando o assunto é primeira infância, eles se tornam aliados, cada um contribuindo para a melhoria e a expansão do programa. O sistema de proteção da primeira infância do Chile tem a missão de apoiar plenamente todas as crianças e suas famílias por meio de uma abordagem multissetorial e multidimensional.
Na prática, elogios
A auxiliar de limpeza Janira Gomez Espinosa, 24 anos, cria sozinha dois filhos, de 5 e de 3 anos. A família vive em La Pintana, uma das comunas mais pobres da região metropolitana de Santiago e, apesar das dificuldades, Janira se sente muito apoiada pelos serviços do Chile Crece Contigo. “Os kits de estimulação, todos os materiais são muito bons. Por meio de folhetos e oficinas para pais, nos dão orientações sobre como cuidar das crianças. Para mim, é muito bom”, elogia. O filho mais novo, Vladimir, apresenta um atraso na fala. Janira o leva para consultas no centro de saúde da região, que conta com uma sala de estimulação e a participação de fonoaudiólogos, enfermeiros e educadores. “Todos os profissionais nos atendem muito bem.”
Comparação
Estudo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) de 2016 revelou que o Chile destina US$ 882 anualmente a cada criança de até 5 anos, sendo o país da América Latina que mais investe no segmento. Em segundo lugar, aparece o Brasil, reservando US$ 641 por criança nessa faixa etária. Em ambos os casos, o montante equivale a 0,5% do Produto Interno Bruto (PIB). Assim como as outras nações latino-americanas, Chile e Brasil ainda investem cerca de cinco vezes mais nas crianças de 6 a 12 anos do que nas mais novas (cerca de US$ 2.608 por ano no caso do Chile; e US$ 2.179, no Brasil — 1,7% e 2,3% do PIB de cada um respectivamente).
Modelo replicável
Alejandra Cortazar é pesquisadora do Centro de Estudios Primera Infancia. O grupo lançou um relatório de monitoramento da Agenda Regional para o Desenvolvimento Integral da Primeira Infância, acordo de metas assinado por diversos países latino-americanos, incluindo o Brasil. “A partir desse monitoramento, vemos que é consenso que Chile Crece Contigo é uma política muito relevante em termos de infância no país e na América Latina.” Tanto que o modelo foi adaptado e replicado em outros países, como Colômbia, Uruguai e Panamá.
Questionada se um sistema semelhante funcionaria no Brasil, Alejandra, que é doutora em políticas para a primeira infância e mestre em psicologia do desenvolvimento e da criança pela Universidade de Columbia, não tem resposta pronta. Ela avalia, porém, que, diferentemente do que se possa pensar, a dimensão geográfica e social não seria um empecilho. “O país tem de estar disposto a investir em infância para dar certo. No Chile, foi uma política feita com padrões de qualidade superaltos, o que exige um alto investimento”, pondera.
Membro diretora da Fundación Educacional Oportunidad e conselheira da Agencia de Calidad de la Educación, ela observa que a iniciativa foi uma mudança de paradigma com relação à qualidade que a população pode esperar de algo público no país dela. “Qualquer pessoa que tenha vivido no Chile nos últimos 10 anos sabe que houve uma mudança importante em um monte de temas a partir de Chile Crece Contigo, incluindo no processo de humanização do parto, a inclusão dos pais, o apoio às famílias, os materiais entregues, a integração de setores”, avalia.
“Tudo isso dignificou a infância e as famílias no processo de ser pais. É raro no Chile ver coisas públicas de excelente qualidade, e todo o material do programa é do mais alto padrão. É um tratamento muito pouco comum”, diz. “É algo totalmente diferente ao que estamos acostumados. Então, é um país que está entregando qualidade para as crianças pequenas e, assim, deixando claro para a sociedade a importância delas. Houve uma mudança de mentalidade no povo com relação a valorizar o início da vida.”
Resultados
O impacto é bastante relevante: 90% das crianças de 4 a 5 anos frequentam escola de educação infantil; a taxa de frequência de creche entre crianças de 3 anos quase dobrou entre 2006 e 2015, passando de 16,4% para 30%. Ao monitorar meninos e meninas de perto por várias frentes (saúde, assistência social e educação), é possível detectar sinais de atraso no desenvolvimento precocemente e iniciar estimulação específica, o que resultou em 42% das crianças com algum tipo de deficit acompanhando as demais. Afinal, um dos lemas do programa é “não deixar nenhuma criança para trás”.
A política pública abarca grande variedade de ações, desde atendimento pré-natal, promoção da paternidade ativa, subsídio para gestantes em situação de pobreza, visitas domiciliares, kits (de brinquedos, livros, roupas e outros materiais), oficinas para mães e pais, creche, jardim de infância e linha telefônica de apoio psicológico para pais. Gerido pelo Ministério de Desenvolvimento Social do país, o programa envolve também os ministérios de Educação e Saúde. O orçamento anual do programa é da ordem de US$ 83 milhões, o que não constitui todo o investimento na primeira infância no país.
Trabalho conjunto
Bacharel em educação pela Universidade do Chile e doutora pela Universidade de Granada, Pamela Rodríguez Aceituno avalia que o programa foi um grande marco do país em relação à primeira infância. “O Chile Crece Contigo deu visibilidade à necessidade de cuidado com as crianças em um sistema público que, de alguma maneira, articule distintas ações e áreas.” Chefe de pedagogia na educação infantil da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica do Chile, ela acredita que uma das maiores contribuições do programa é o fortalecimento das famílias. “A política estimula o bom cuidado dos pais. Há uma cartilha e uma oficina chamada ‘Ninguém é perfeito’ que mostra que o programa não vai julgar ninguém por ser pobre, solteiro, mulher, imigrante, adolescente ou qualquer outra coisa”, diz.
“Ao contrário. Entendendo a sua situação, o sistema ajudará e apoiará as pessoas para que sejam bons pais e boas mães independentemente disso. É como se o governo dissesse: entendo suas condições, por isso te ajudo”, afirma. Assim, Chile Crece Contigo significou uma mudança de visão no sistema de proteção infantil. “Saímos da abordagem protecionista e tradicional, de simplesmente invalidar os pais e de recolher as crianças daqueles com menos condições para a abordagem de ajudá-los para que eles cuidem bem das crianças”, destaca. Pamela relata que muitas famílias conseguiram se reconectar com o prazer de brincar e conviver com crianças pequenas.
» Leia amanhã sobre como funcionam berçários, creches e jardins de infância no Chile
* A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)
E se os novos governantes abraçarem a causa da primeira infância?
Santiago, Chile — A responsabilidade pelo futuro da primeira infância no Brasil estará, em grande parte, nas mãos dos candidatos eleitos para a Presidência da República e o governo do Distrito Federal e dos estados a partir de hoje. O poder público tem aptidão para garantir os direitos e o pleno desenvolvimento das crianças do país — ou não. Tudo depende dos recursos, das políticas públicas e, para começar, da vontade política para promover a valorização da fase que começa no útero da mãe e se estende até os 6 anos de idade. Independentemente do partido ou do posicionamento ideológico, os novos governantes têm potencial de se tornarem grandes agentes de transformação nesse sentido.
Exemplos de fora mostram o grande impacto que a decisão de abraçar a causa da primeira infância pode trazer a um país. E não é preciso ir muito longe: é possível aprender lições valiosas de vizinhos, como o Chile. A república encravada entre a Cordilheira dos Andes e o Oceano Pacífico viu o tratamento destinado às crianças pequenas se revolucionar nos últimos 12 anos com a criação do programa intersetorial Chile Crece Contigo, impulsionado pela decisão de quem teria poder para fazer com que ministérios diferentes trabalhassem juntos: a então presidente Michelle Bachelet. A médica e política chilena presidiu o país em dois mandatos: o primeiro, entre março de 2006 e março de 2010, e o segundo, entre março de 2014 e março de 2018.
Como o sistema de proteção da primeira infância foi instituído como política de estado, e não de governo, continuou se desenvolvendo durante o mandato de Sebastián Piñera, de centro-direita, que comandou o país entre março de 2010 e março de 2014 e acaba de assumir novamente a presidência do Chile, que deve prosseguir avançando com o programa, de acordo com Jeanet Leguas Vásquez, porta-voz do Ministério de Desenvolvimento Social do Chile. “O programa se tornou lei e, por isso, não pode desaparecer. O orçamento tem crescido a cada ano”, diz. Por fatores econômicos e geográficos, trata-se de um país com o qual o Brasil pode se comparar.
Se uma política pública voltada à primeira infância deu certo por lá, é possível que um programa voltado a esse público dê certo por aqui. Jeanet ressalta, porém, que qualquer política precisa ser desenhada de acordo com as especificidades de cada região. “Cada país é totalmente distinto, depende muito de como se organiza. É importante que os países não sejam tão ambiciosos no início: não se pode esperar iniciar já com uma grande dimensão de alcance. Mas é preciso começar e ir avançando gradativamente”, ensina. E o pontapé para que um processo desses se estabeleça, é a decisão política. Governantes locais podem fazer a diferença em suas regiões, mas para uma estratégia nacional, o ideal é que a iniciativa comece na presidência.
O envolvimento presidencial também foi fundamental para permitir a implantação de programas bem executados em outros países da América Latina que se inspiraram no modelo chileno (por exemplo, “De zero a sempre”, na Colômbia; e “Uruguai Cresce Contigo”). No Brasil, existem algumas iniciativas positivas, como o Brasil Carinhoso (programa criado em 2012 de transferência de renda da esfera federal para as redes municipais com o objetivo de custear despesas com educação infantil, cuidado integral, segurança alimentar e nutricional de crianças em vulnerabilidade social) e Criança Feliz (programa de visitas domiciliares lançado em 2016, que, até o momento, atingiu 16,5% da meta de visitas às famílias), no entanto, ainda não surtiram efeitos em larga escala.
Para que um programa voltado à primeira infância tenha efetividade e seja aplicado em larga escala, precisa ser visto como prioridade e abraçado como estratégia de desenvolvimento pelo presidente e demais autoridades. Independentemente do resultado nas urnas neste domingo (7), fica a torcida para que os novos representantes da população, de todos os níveis e poderes, entendam a importância dessa causa e trabalhem, desde o início do mandato, em prol dela.
*A jornalista viajou como bolsista do programa de reportagens sobre primeira infância do International Center for Journalists (ICFJ), com patrocínio da Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal (FMCSV)