A memória foi uma preocupação constante nas vidas e nas obras do colombiano Gabriel García Márquez e do italiano Umberto Eco. O ofício de contar uma história se refletia na maneira de pensar o próprio trabalho, a partir da documentação e do testemunho. A tarefa de um contador honesto é se cercar dos melhores relatos, sejam eles orais sejam escritos. Mas, principalmente, é ter a noção da própria missão, sempre árdua, complexa e — por que não? — incompleta.
Entre os vários trechos de citações dos dois escritores, fiquemos primeiro com um de Márquez: “Não foi possível encontrar outra história como aquela porque não era das que a gente inventa no papel. Quem as inventa é a vida, e quase sempre aos golpes”, disse o colombiano uma vez, aqui pouco importante o título do relato. E, para não deixar o italiano de fora, uma de Eco: “Nem a memória individual nem a memória coletiva são fotografias do que realmente aconteceu. São reconstruções”. Trata-se de quebra-cabeça com peças infinitas.
É preciso ter tal coisa sempre em mente ao ler uma biografia ou ouvir um simples relato. O livro recém-lançado Roberto Marinho: o poder está no ar (Editora Nova Fronteira, R$ 89,90, 576 páginas), do jornalista Leonencio Nossa, trata das memórias de personagens que viveram com o empresário criador da Globo e, por tabela, do Jornal Nacional — na tarefa de seis anos, documentos inéditos foram encontrados. Leonencio sabe ir a fundo na apuração, tal qual o contador de uma história compromissado com o biografado e com a própria história do país.
Um bom exemplo está no racismo sofrido por Roberto Marinho em vários episódios relatados no livro. “O dono da Globo nasceu 16 anos após a decretação da Lei Áurea. Ele e o pai (Irineu) nunca escreveram uma única linha para negar a suposta ascendência africana da família ou apontar a origem da pele mais escura que a de outros descendentes de europeus”, conta Leonencio. “Tampouco jamais a assumiram.” O empresário, segundo o biógrafo, usava pó no rosto e evitava o sol.
Segundo Leonencio, dos filhos homens de Irineu, Roberto era o de cor mais escura. João Roberto Marinho, filho do dono da Globo, confirma que o pai se sentia mal com as ofensas. “Ele se incomodava com o sol. Não gostava de barco aberto, tinha que ser barco com capota”, disse João Roberto a Leonencio. A memória do filho vale como uma das melhores fontes, ainda mais pela honestidade do retrato particular. “Acho que se preocupava em não ficar mais moreno. Mas não falava sobre isso. É minha percepção de pequenos gestos.”
Roberto Marinho é um personagem complexo, primeiro porque se trata de alguém controverso, distante léguas de unanimidade, depois porque viveu 98 anos. Leonencio, assim, dedica-se a quase um século a personagem que se confunde com a história política e econômica de um país, em vários momentos como protagonista dos mais importantes episódios. O trabalho de Leonencio é dividido em duas partes. A primeira tem quase 600 páginas e chega até a criação do Jornal Nacional, quando Roberto Marinho
ainda não era o controverso Roberto Marinho.
O primeiro volume, entretanto, mostra as complexidades do personagem e das reconstruções. Roberto Marinho:o poder está no ar será lançado em Brasília na próxima quarta-feira, a partir das 19h, no restaurante Carpe Diem (104 Sul).
Seminário
Entre a quinta (23) e o sábado (25), ocorre o II Seminário Internacional Neoliberalismo, Direito e Pós-democracia, na Universidade de Brasília (UnB). A iniciativa é da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. A cerimônia de abertura será em homenagem à juíza Kenarik Boujikian, conhecida pela militância em defesa dos direitos humanos. Logo depois se inicia um debate sobre Governos contemporâneos no mundo e a crise da democracia liberal.