“Juízo de Piso” e “Peça Vestibular”

Publicado em Português jurídico

Por Wanderson Melo

A busca por sinônimos de termos técnicos tem produzido expressões que não apresentam nenhuma relação com as palavras de origem

Viralizou, recentemente, fala do Ministro Reynaldo Soares, do Superior Tribunal de Justiça, em que critica o uso dessas expressões[1]. Com razão Sua Excelência.

A elaboração de um texto é tarefa árdua. Não pode o autor se esquecer jamais de que o texto não é para si, mas para o outro. Nesse sentido, é fundamental que redator e leitor estejam numa relação de harmonia, que depende de alguns quesitos. Um deles é a manutenção das relações coesivas do texto. Ou seja, as partes do texto precisam estar interligadas, para que o leitor consiga compreender não apenas o período, mas o parágrafo e, claro, o texto.

Nesse contexto, existem quatro mecanismos de coesão e de coerência, apresentados no Manual de Redação da Presidência da República: referência; elipse; conjunção; substituição. A referência consiste no uso de termos que remetam a informações já mencionadas no texto ou a informações que serão introduzidas; é o uso de palavras que recuperem informações ou que as antecipem. A elipse é a omissão de termo, com o claro intuito de não tornar a leitura cansativa, já que o leitor facilmente consegue recuperar o termo omitido. A conjunção é um facilitador excelente do texto. Por meio de conjunções (e locuções conjuntivas), o redator evidencia o sentido que quer apresentar entre as frases.

A substituição é o tema deste texto. Com a substituição, usam-se sinônimos, hipônimos ou hiperônimos com o intuito de não se repetirem palavras e, assim, não tornar a leitura cansativa. É claro também que o outro objetivo do uso da substituição é o redator demonstrar ao leitor – na construção da relação harmoniosa – que ele (redator) tem repertório vocabular, que ele domina diversas palavras e que, assim, há credibilidade no que se diz, no que se apresenta. Tudo isso faz sentido e é verdade, até que o redator de texto jurídico resolve escrever “juízo de piso” ou “peça vestibular”.

O Manual de Redação da Presidência da República indica que, para se obter a precisão na construção do texto, não se deve utilizar “sinonímia com propósito meramente estilístico” (p. 17). A Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998, afirma que se deve “expressar a ideia, quando repetida no texto, por meio das mesmas palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente estilístico” (art. 11, II, b).

Esses trechos indicam que a sinonímia pode ser utilizada, sim. Porém, ela precisa ser feita com atenção. Um dos cuidados é saber que termos técnicos são técnicos e que, em regra, são únicos. A busca por sinônimos a eles é inútil, exatamente porque a substituição é artificial e não permite a transmissão de mesmas informações. É o que acontece com “peça vestibular”. O dicionarista Houaiss traz estes sentidos para o adjetivo vestibular: “que diz respeito ou pertence a vestíbulo; relativo ao vestíbulo da orelha ou da vagina; que aprova e classifica os estudantes a serem admitidos nos cursos superiores.” Claramente se percebe que “peça vestibular” nada tem a ver com “petição inicial”. Os sentidos não estão relacionados entre si.

Além disso, é preciso considerar que as palavras técnicas aparecem, em regra, em textos denotativos (e não conotativos, de que são exemplos os textos literários). Normalmente, os substitutos que são escolhidos para os termos técnicos estão no campo da conotação. Veja-se, por exemplo, “juízo de piso”. Utiliza-se a linguagem figurada para se reportar ao juízo de primeiro grau. Sabe-se, contudo, que todos os juízos estão no piso – ninguém flutua por aí. Como utilizar, então, em texto jurídico, que é técnico, ora palavras denotativas ora palavras conotativas? É preciso uniformidade na construção de texto, para que haja uniformidade de entendimento, de interpretação.

É por isso que atos normativos repetem termos técnicos. Quantas vezes o Código de Processo Civil utiliza as palavras “petição inicial”, “juiz”, “embargos de declaração”, etc.? Não se pode correr o risco de haver duplicidade de sentido, de o leitor não compreender o redator. A informação tem de ser clara e precisa. Não faz sentido, portanto, que o texto jurídico – em que os princípios da clareza e da precisão têm de preponderar – continue a utilizar sinônimos de termos técnicos.

Para a construção harmoniosa entre redator e leitor, no texto jurídico, não há outra solução: sendo palavra técnica, repita-a. Isso não evidencia pobreza de estilo; evidencia, ao contrário, respeito ao leitor.

[1] Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=BYSuKeML_d8>.

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