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Viva o SUS: O papel do Superior Tribunal de Justiça na preservação da governança normativa do nosso Sistema Único de Saúde

Por Tomás Imbroisi Martins[1]

O Sistema Único de Saúde, o nosso SUS, completou 35 (trinta e cinco) anos em 19 de setembro de 2025 e se tornou patrimônio nacional, com razão.

Concretizado com a Constituição de 1988, que assegurou a saúde como direito fundamental e dever do Estado, e regulamentado após a edição da Lei nº 8.080/90, o SUS se consolidou como o maior sistema público, gratuito e universal de saúde, sendo responsável pelo atendimento de 76% da população brasileira, o que representa 213 milhões de pessoas[1].

O Supremo Tribunal Federal, ao julgar o Tema 793-RG, facilitou ainda mais o acesso da população à saúde, direito fundamental, na medida que a parte poderá acionar qualquer um dos entes federativos para vindicar seu direito, cabendo o juízo, posteriormente, direcionar o cumprimento e ressarcimento à luz das competências materiais estabelecidas na Lei nº 8.080/90.

Ainda, ciente das limitações inerentes ao Estado, a Lei nº 8.080/90, estabeleceu em seu art. 24 a possibilidade de o SUS recorrer à participação complementar em caso de insuficiência de disponibilidade dos entes federados para garantir a cobertura assistencial à população, que é prestada em grande parte por Santas Casas, entidades filantrópicas e sem fins lucrativos.

É justamente nesse contexto que o Superior Tribunal de Justiça tem a oportunidade de reforçar a facilitação do acesso à saúde e preservar a governança normativa de nosso sistema, consoante se verifica das teses afetadas a julgamento no Tema 1.305 dos recursos especiais repetitivos[2].

Antes de sua afetação, a Primeira Seção do STJ já havia sido instada a pacificar a divergência existente entre as Turmas de Direito Público por ocasião da oposição do EARESP n° 2.097.284/DF, oportunidade que o Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal (CONPEG) requereu ingresso na qualidade de amicus curiae, a fim de representar e defender os interesses dos Estados e Distrito Federal.

A tese do CONPEG estrutura-se no eixo da governança normativa do SUS, tal como delineada pela Lei nº 8.080/1990. O ponto de partida é a repartição de competências: o art. 9º da Lei Orgânica da Saúde prevê a direção única do SUS em cada esfera de governo, enfatizando um modelo de descentralização executiva e regionalização da prestação, mas mantendo sob a órbita federal a coordenação nacional do sistema.

A descentralização, portanto, recai sobre a execução dos serviços e não sobre a definição das políticas nacionais de financiamento e remuneração.

É, porém, o art. 26 que se apresenta como dispositivo nuclear: “os critérios e valores para a remuneração de serviços e os parâmetros de cobertura assistencial serão estabelecidos pela direção nacional do Sistema Único de Saúde (SUS), aprovados no Conselho Nacional de Saúde”.

A leitura conjugada dos arts. 9º e 26 permite afirmar que a política de remuneração dos serviços de saúde prestados em caráter complementar ao SUS está, por desenho legal, centralizada na União, ainda que a execução e o repasse dos valores aos prestadores privados sejam operacionalizados por contratos e convênios celebrados com Estados, DF e Municípios.

A tese do CONPEG, nesse ponto, é processualmente irretocável: o ente que pratica o ato normativo é aquele que deve responder pela sua validade e adequação. Não há fundamento legal, à luz da Lei 8.080/1990, para impor a participação coativa do ente local no polo passivo de uma ação que ataca um ato normativo federal cuja modificação só pode ser promovida pela União.

O papel do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e da direção nacional do SUS reforça essa conclusão. O CNS, órgão colegiado de caráter deliberativo, integra a estrutura do Ministério da Saúde e exerce controle social sobre as políticas públicas de saúde, inclusive aprovando os critérios e valores de remuneração. A direção nacional, por sua vez, conduz tecnicamente a formulação da Tabela, a partir de critérios de custo, epidemiologia e capacidade orçamentária federal.

O único fundamento adotado para tentar superar jurisprudência pacífica e consolidada do STJ, no sentido de que “não parece razoável que a unidade federativa que tenha figurado direta e  exclusivamente no contrato, seja este escrito ou não, deixe de também responder à demanda judicial, na qual o prestador complementar questiona exatamente a justeza dos valores recebidos pela execução de seu objeto”, contraria e ignora toda a lógica jurídica e técnica do Sistema Único de Saúde.

Em primeiro lugar, desconsidera a diferenciação entre duas relações jurídicas paralelas, mas distintas: (a) a relação jurídico-regulatória entre União e prestadores, que tem por objeto a definição dos critérios e valores de remuneração, em âmbito nacional, com fundamento direto no art. 26 da Lei 8.080/1990; e (b) a relação jurídico-contratual entre os entes subnacionais e os hospitais, meramente instrumental, por meio da qual se formaliza a prestação de serviços e o pagamento dos valores fixados pela União.

Trata-se de mera descentralização administrativa para formalização, em nome da União, dos contratos de prestação de serviço complementar, nos termos do art. 8º da lei em comento.

Em segundo lugar, a interpretação que equipara solidariedade federativa a litisconsórcio necessário contraria frontalmente a lógica da cindibilidade processual. O art. 114 do CPC condiciona o litisconsórcio necessário à impossibilidade de decisão válida ou eficaz na ausência de todos os sujeitos da relação jurídica material. Ora, o juiz pode reconhecer a insuficiência dos valores da Tabela SUS e condenar a União a reajustá-los – ou a aplicar parâmetros específicos – sem que isso exija qualquer declaração sobre a validade, a existência ou o conteúdo dos contratos celebrados entre hospitais e entes locais.

A relação contratual permanecerá íntegra; apenas se alterará, por força da decisão, o parâmetro remuneratório nacional que serve de referência para tais contratos.

Em terceiro lugar, ao converter a solidariedade em critério de litisconsórcio necessário, essa leitura subverte o próprio espírito do Tema 793-RG. O STF construiu a solidariedade federativa como mecanismo de ampliação do acesso à Justiça, permitindo que o cidadão escolha contra qual ente demandar. Trata-se de retrocesso interpretativo que não encontra apoio na tese firmada pelo STF ou mesmo em doutrina.

Nesse aspecto, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios não poderão suportar a obrigação material de modificar os valores descritos na referida tabela e muito menos ressarcir o autor pelos valores pagos a menor nos últimos anos, porque essa responsabilidade é exclusiva da ré União Federal.

Os recursos financeiros destinados ao SUS, originários da Seguridade Social, são administrados pelo Ministério da Saúde, por intermédio do Fundo Nacional de Saúde, nos termos do art. 31 da Lei n° 8.080/90.

Do ponto de vista crítico, a imposição de litisconsórcio necessário aos entes subnacionais traz riscos jurídicos e orçamentários significativos. Em termos jurídicos, multiplica a litigiosidade, sobrecarregando procuradorias estaduais e municipais com a defesa de atos que não praticaram e sobre os quais não têm poder de disposição. Em termos orçamentários, a vinculação automática dos entes locais a condenações proferidas em face da União – sem que eles tenham poder normativo para ajustar a Tabela – aprofunda assimetrias federativas e compromete a capacidade de planejamento financeiro de Estados e Municípios, já pressionados pela execução descentralizada do SUS.

A tese defendida pelo CONPEG, ao contrário, concentra a responsabilização no ente que formula a política de remuneração e detém os instrumentos normativos para alterá-la. Ao reconhecer a legitimidade passiva exclusiva da União nas ações de revisão da Tabela SUS e afastar a necessidade de litisconsórcio passivo com entes subnacionais, essa tese harmoniza a repartição de competências da Lei 8.080/1990 com a dogmática processual civil contemporânea, respeitando a distinção entre solidariedade material e litisconsórcio necessário, a cindibilidade das relações jurídicas e a função garantística do Tema 793.

Caberá à Corte, em sede de repetitivos, reconduzir o debate aos trilhos da dogmática processual e da arquitetura normativa do SUS. O Tema 1305, assim, surge como ocasião privilegiada para permitir a continuidade da governança em nosso sistema de saúde.

[1] https://agenciagov.ebc.com.br/noticias/202509/sus-completa-35-anos-como-principal-rede-da-assitencia-para-76-dos-brasileiros.

[2] “Tema repetitivo 1.305: Definir a) se a União deve figurar no polo passivo de demanda em que se pretende a revisão da Tabela de Procedimentos Ambulatoriais e Hospitalares do Sistema Único de Saúde – SUS; (b) a (in)existência de litisconsórcio passivo necessário entre os entes federativos para integrarem a lide; e (c) se é possível equiparar os valores da Tabela de Procedimentos Ambulatoriais e Hospitalares do Sistema Único de Saúde – SUS aos estabelecidos pela Agência da Nacional de Saúde – ANS (TUNEP/IVR), com o objetivo de preservar o equilíbrio econômico-financeiro de contrato ou convênio firmado com hospitais privados, para prestação de serviços de saúde em caráter complementar.”

[1] Procurador do Distrito Federal. Sócio na Dutra e Associados Advocacia. Ex-Assessor de Ministro do Superior Tribunal de Justiça.

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