Ernst von Beling elaborou a obra La Doctrina del Delito-Tipo com o propósito de esclarecer questões que, a seu ver, haviam permanecido insuficientemente definidas em Doctrina del Delito (1906). Desde a publicação dessa obra, observou-se um aprofundamento das análises sobre o delito-tipo (Tatbestand) em sua conformação abstrata, especial e objetiva, ou, mais simplesmente, o delito-tipo jurídico-penal.
O primeiro problema identificado dizia respeito à relação entre a adequação do fato ao delito-tipo e a antijuridicidade. A esse se vinculavam outros: a inclusão do princípio da adequação na definição de delito e o modo de compreender os elementos normativos e subjetivos do delito-tipo. A literatura então produzida, rica em sugestões, convenceu Beling de que sua formulação originária continha algumas deficiências — embora, até aquele momento, as críticas apresentadas não houvessem determinado com precisão o ponto exato a ser corrigido.
Diante disso, Beling considerou imprescindível uma distinção mais rigorosa entre “delito-tipo” e “figura de delito”, bem como o esclarecimento do papel desempenhado pela adequação típica (Tatbestandsmässigkeit) em relação ao delito-tipo e à tipicidade, de modo a lançar nova luz sobre os problemas que desafiavam a doutrina da época.
Sua (re)análise parte da figura delitiva. Para Beling, no direito positivo, somente a conduta culpável e antijurídica pode ser punida dentro dos limites e medidas de pena legalmente estabelecidas. As ameaças penais influenciam de tal modo a definição de delito que somente as condutas previstas nas figuras típicas ingressam no âmbito do punível. Seguindo esse raciocínio, toda ação típica será punível precisamente de acordo com a pena correspondente ao tipo correlato. A tipicidade, assim, constitui característica essencial do delito.
As figuras delitivas situam-se no interior do amplo campo das condutas culpáveis e antijurídicas. Qualquer ação — por mais reprovável que seja — que não se enquadre em um tipo legal definido será atípica e, portanto, não punível. Inversamente, a ação típica é, por definição, merecedora de pena, dentro da medida legalmente estabelecida e segundo as demais condições de punibilidade. O legislador realiza, portanto, uma dupla valoração: separa o ilícito culpável para decidir se merece ou não sanção penal e, simultaneamente, estabelece gradações e valores dentro do âmbito do típico, estruturando as figuras delitivas. Para Beling, as figuras de delito constituem quadros normativos, tão normativos quanto a ilicitude e a culpabilidade, que se articulam e se encontram reciprocamente.
Nesse sentido, cada figura delitiva apresenta um conjunto de elementos que remetem a uma unidade conceitual fundante: o delito-tipo que regula essa figura. Beling esclarece esse ponto por meio do exemplo do delito de furto. Todas as suas características — objetivas e subjetivas — orientam-se segundo o esquema “subtração de coisa móvel alheia”. Para que haja furto, é necessário que a subtração seja efetivamente praticada; que se encontre abrangida pelo dolo do agente; e que esteja acompanhada do elemento típico suplementar “fim de apropriação”, dirigido especificamente à coisa alheia subtraída. Assim, o conceito de subtração domina e confere homogeneidade a todos os elementos típicos. Esse raciocínio se projeta sobre qualquer figura delitiva, pois todas se estruturam conforme um “tom fundamental” que define e regula os elementos do tipo.
Essa forma básica — o esquema — indica, em geral, que determinado tipo de ilicitude deve coincidir com determinado tipo de culpabilidade para compor uma figura delitiva. O homicídio, por exemplo, exige a conjugação da ação objetiva de matar um homem com a correspondente intenção subjetiva dirigida a essa mesma ação. Não seria possível obter-se as figuras delitivas de homicídio ou prevaricação combinando, por exemplo, a morte de um homem com a intenção de interpretar parcialmente a lei. As fases objetiva e subjetiva devem sempre coincidir segundo um mesmo esquema.
Segundo Beling, é possível que, com essa integração, a figura delitiva esteja completa — como “violação de domicílio”, “sequestro”, “dano”, “homicídio culposo” — ou que requeira características externas puramente objetivas (como no concurso em crime falimentar ou no resultado morte das lesões corporais seguidas de morte), ou ainda elementos internos puramente subjetivos (como delitos premeditados). Esses elementos, embora integrantes da figura delitiva, não se confundem com o delito-tipo, que permanece como simples esquema regulador do conjunto. Por isso, os “tipos regentes” — como “causar a morte de um homem” — não podem ser confundidos com a figura de delito. São representações conceituais necessárias, mas não constituem partes do delito; funcionam como imagens abstratas que orientam logicamente a construção típica. O primeiro elemento da figura delitiva é, precisamente, a adequação da ação ao delito-tipo.
Surge aqui uma confusão frequentemente observada: a tendência de confundir a representação conceitual com sua realização concreta. O quadro representativo “matar um homem”, embora abstraído da realidade, adquire autonomia lógica e permanece válido mesmo quando inexistente o fato concreto. Assim, o primeiro elemento do conceito de homicídio não é simplesmente “matar um homem”, mas a ação produtora da morte. Ou seja, o que inaugura a figura delitiva não é o delito-tipo em si, mas a adequação da conduta a ele.
O delito-tipo jurídico-penal é, para Beling, uma categoria sem conteúdo próprio. Os conteúdos que possuem função definidora — os tipos regentes — derivam indutivamente das figuras delimitadas pelo legislador. Por isso, não existe um delito-tipo “em si”; todo delito-tipo é relativo à figura delitiva à qual serve de esquema. Assim, “matar um homem” é típico para o homicídio, mas não para a violação de domicílio.
O caráter funcional do delito-tipo produz quatro consequências. Primeiro: não existe modo de conduta humana que possa ser considerado, a priori, como delito-tipo do direito vigente. Segundo: um mesmo esquema típico pode servir a diferentes figuras delitivas, desempenhando funções distintas. Terceiro: um esquema pode ser comum a diversos delitos, distinguindo-se estes apenas pelo dolo ou culpa. E, quarto: esquemas distintos podem apresentar semelhanças ou correspondências, variando em amplitude conforme o caso.
Beling prossegue afirmando que a parte especial do direito penal funciona como um catálogo de figuras delitivas, e que os delitos-tipo figuram nesse catálogo como representações estilizadas — imagens conceituais como “matar um homem”, “apoderar-se de coisa alheia” — cuja função é orientar o intérprete. Apenas o legislador pode introduzir novos esquemas ou modificar os existentes; ao jurista cabe compreendê-los e aplicá-los. O delito-tipo, portanto, desempenha função reguladora fundamental: sem ele, toda discussão penal perderia sustentação, pois a própria existência do direito penal pressupõe a referência a figuras delitivas.
As figuras não autônomas, ou formas acessórias, também não podem ser pensadas independentemente do conceito tipificante. Cada uma possui seu próprio esquema — “começo de execução”, “determinar outrem”, “prestar auxílio” — mas nenhuma adquire relevância jurídico-penal sem referência ao delito-tipo correspondente. A antijuridicidade, igualmente, só tem sentido se referida à ação vinculada ao delito-tipo; e o mesmo vale para a culpabilidade, que pressupõe a orientação da conduta ao tipo regulador.
Com essas bases, Beling esclarece a relação entre delito-tipo e ilicitude, bem como entre adequação típica e antijuridicidade. Critica, nesse ponto, a posição de Sauer e Mezger, segundo a qual os delitos-tipo seriam “tipos de ilicitude”. Para Beling, essa compreensão mistura planos distintos: os tipos de ilicitude dependem não apenas do delito-tipo, mas também de condições objetivas que lhe são externas; além disso, o delito-tipo é regulativo, não constitutivo, da ilicitude. “Causar a morte de um homem”, por si só, não é tipo de ilicitude; apenas “causá-la antijuridicamente” o é.
A doutrina que identifica delito-tipo e tipo de ilicitude se funda na falsa crença de que as condutas típicas seriam apenas subáreas da conduta antijurídica. Ainda que se admitisse essa divisão, ela permaneceria insuficiente, pois o domínio da conduta antijurídica não é separado do domínio da conduta lícita. Os delitos-tipo só coincidem com tipos de ilicitude quando de fato forem tipos de ilicitude, o que reforça a distinção entre adequação típica e antijuridicidade.
O delito-tipo expressa uma determinação descritiva, não valorativa, da conduta, servindo de esquema para o tipo de ilicitude. Alguns conceitos jurídicos — como “culpabilidade” — são eminentemente valorativos; outros, porém, funcionam apenas como objetos de regulação, e não possuem caráter normativo próprio. O delito-tipo pertence a essa segunda categoria.
A distinção também se aplica aos chamados “elementos subjetivos do tipo”. Beling critica a expressão, pois o subjetivo — enquanto estado anímico — não pode ser confundido com o delito-tipo, que permanece esquema regulador da conduta. No furto, por exemplo, o “fim de apropriação” pertence à figura delitiva, não ao delito-tipo; inscreve-se na fase subjetiva da figura, não na estrutura do esquema típico. Inserir elementos internos no delito-tipo conduziria a uma distorção metodológica, inviabilizando sua função de esquema comum das fases objetiva e subjetiva.
Beling adverte ainda para o perigo das palavras da lei, que podem sugerir que o delito-tipo coincida com a descrição legal. Certas figuras, como a injúria, possuem apenas designações nominais, não revelando, explicitamente, seu esquema regulador; esse deve ser reconstruído pelo intérprete. O “culto à letra” pode gerar confusão entre antijuridicidade e delito-tipo, especialmente quando a lei menciona ou omite expressões valorativas. Mas o esquema regulador permanece independente do modo como a lei se expressa.
Segundo Beling, o próprio nome “Tatbestand” contribuiu para os equívocos. A palavra designa não apenas o delito-tipo, mas também o “fato concreto”, o caso exterior, o conjunto de elementos do delito ou até mesmo outros quadros jurídicos (como legítima defesa ou prescrição). Essa ambiguidade linguística obscurece o verdadeiro sentido do conceito. Beling sugere, então, a expressão Leitbild legal (“esquema legal”), mais apta a captar sua natureza regulativa.
No tocante ao dolo e à imprudência, surge dificuldade específica: se o legislador exige que o agente conheça as circunstâncias do fato “correspondentes ao delito-tipo”, o delito-tipo deve servir também como esquema do tipo de culpabilidade. A definição de dolo como “agir com conhecimento e vontade” é insuficiente, pois não distingue dolo e culpa, apenas diferencia ação consciente de ação involuntária. Falta indicar o que deve ser conhecido e querido: as circunstâncias relevantes para o delito-tipo.
Ao concluir, Beling afirma que o esquema reitor — chame-se como se queira — é imprescindível à dogmática penal e deve ser claramente incorporado à sua sistemática. Surge, então, a questão central: o delito pode ser definido como a “ação adequada ao tipo, antijurídica e culpável”? Beling conclui que não, porque essa definição excluiria as formas acessórias — tentativa, instigação, cumplicidade — que são delitos, embora não impliquem realização objetiva do delito-tipo. Para essas figuras, importa a vinculação ao delito-tipo, não sua realização.
Tampouco é adequada a fórmula segundo a qual o delito é uma ação “referente a um delito-tipo, antijurídica e culpável”, pois coloca delito-tipo, ilicitude e culpabilidade como elementos coordenados, quando, na verdade, a antijuridicidade e a culpabilidade devem referir-se especificamente ao esquema que regula a figura delitiva. Assim, quem “mata um homem” só é homicida se a ação for antijurídica e dolosa como morte de um homem.
Para o autor, a definição correta deve afirmar que o delito é uma ação tipicamente antijurídica e correspondentemente culpável. A tipicidade não é elemento paralelo à antijuridicidade, mas modo de determinação desta. A partir dessa formulação, desaparece a necessidade de incluir a “ameaça penal adequada” como elemento definidor. O dano culposo, por exemplo, pode ser típico, antijurídico e culpável, mas não será punível se não constituir figura penal.
Por essa razão, as condições objetivas de punibilidade e as formas especiais de culpabilidade encontram seu lugar sistemático dentro da tipicidade.
Beling acrescenta que a definição deve conter também menção às causas legais objetivas de exclusão da pena — sejam condições negativas de punibilidade, sejam excludentes extratípicas —, pois estas impedem a imposição da pena mesmo diante de conduta tipicamente antijurídica e culpável. A definição completa, portanto, seria: “Delito é a ação tipicamente antijurídica e correspondentemente culpável, sempre que não incida causa legal objetiva de exclusão da pena.” Nesse quadro, o delito-tipo desaparece como elemento da definição de delito, mas conserva-se como fundamento necessário dentro do conceito de tipicidade.
O capítulo relativo ao delito-tipo é também o local próprio para a doutrina da “carência de tipo”. Dizer que uma ação carece de delito-tipo significa que não corresponde ao esquema regulador. As figuras acessórias — tentativa, instigação, cumplicidade — lidam justamente com hipóteses de carência parcial de realização típica, justificando a punição apesar da falta de correspondência integral ao delito-tipo.
Além disso, o delito-tipo possui importância metodológica decisiva para a subsunção penal: ele é o fio condutor para a análise casuística e para a verificação da presença de todos os elementos do delito.
Por fim, Beling menciona que sua doutrina enfrentou certa desconfiança devido ao suposto “formalismo” do delito-tipo. Acreditou-se que sua natureza metodológica poderia obscurecer o conteúdo material das disposições legais. Para o autor, esse receio é infundado: ao contrário de empobrecer a interpretação, o delito-tipo permite maior clareza conceitual e rigor analítico, favorecendo a compreensão da ratio legis e a solução correta dos problemas dogmáticos.
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