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Sem tempo a perder: STJ reforça a proteção às mulheres por meio do Tema 1249

Por Gabriela Pimenta R. Lima

As medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha são, hoje, um dos instrumentos mais importantes para prevenir a escalada da violência contra a mulher. Embora muitas vezes tratadas como simples anexos de processos penais ou familiares, elas têm natureza própria: destinam-se a impedir que a violência se repita ou se agrave, independentemente da existência de inquérito policial ou ação penal. Essa compreensão foi reforçada recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Tema Repetitivo 1.249[1].

O STJ reconheceu que as medidas protetivas não dependem da abertura de investigação, do andamento de um inquérito ou da existência de um processo criminal. Isso porque a lógica protetiva da Lei Maria da Penha é totalmente diferente da lógica punitiva do direito penal. Enquanto este se preocupa em apurar um fato passado para eventualmente punir o agressor, as medidas protetivas atuam olhando para o futuro: elas buscam evitar que a mulher seja novamente exposta ao risco, especialmente quando se trata de violência psicológica, que quase sempre ocorre de forma repetida, silenciosa e sem deixar marcas físicas.

Por isso, o simples arquivamento de um inquérito não elimina o risco. Tampouco significa que a violência inexistiu. Muitas investigações criminais são arquivadas por falta de elementos mínimos para oferecer denúncia, por dificuldades probatórias inerentes a esse tipo de crime ou até por deficiências investigativas. Nenhuma dessas situações é, por si só, capaz de justificar o fim da proteção concedida à mulher. A tutela protetiva não pode depender da eficiência da investigação criminal, porque o objetivo da Lei Maria da Penha é garantir a segurança da vítima, e não conduzir à punição automática do agressor.

Outro ponto essencial reafirmado pelo STJ é a obrigatoriedade de ouvir a mulher antes que qualquer medida protetiva seja revogada. Trata-se de um aspecto decisivo, pois a situação de risco só pode ser devidamente avaliada com base na palavra da vítima, que, conforme reconhecido pelo próprio Conselho Nacional de Justiça, tem importância especial em casos de violência doméstica. Como a violência costuma ocorrer dentro do lar, longe de testemunhas, a vítima muitas vezes é a única fonte de informações capaz de esclarecer se a ameaça acabou ou permanece. Revogar as medidas protetivas sem ouvir a mulher equivale a decidir às cegas sobre a sua segurança, e isso contraria diretamente a orientação do Tema 1249.

Ao mesmo tempo, tem crescido no Brasil o uso inadequado do habeas corpus para tentar reverter medidas protetivas. O remédio constitucional, no entanto, existe exclusivamente para proteger o direito de ir e vir em casos de prisão ilegal ou ameaça real de prisão. Medidas protetivas não restringem a locomoção do agressor, elas apenas impedem aproximação ou contato com a vítima, o que não configura violação da liberdade. Portanto, usar o habeas corpus para contestar medidas protetivas distorce completamente a finalidade desse instrumento constitucional. E o STJ já deixou claro que o habeas corpus não pode servir como “atalho jurídico” para rediscutir decisões que caberiam em recursos próprios ou que exigem análise mais profunda das circunstâncias do caso.

Essa prática, além de juridicamente inadequada, traz um problema grave: fragiliza a mulher que já está em situação de vulnerabilidade. Em alguns casos, o habeas corpus tem sido usado não para corrigir ilegalidades, mas como meio de influenciar disputas familiares ou desgastar emocionalmente a vítima, forçando-a a enfrentar mais uma frente de batalha judicial. Esse tipo de litigância abusiva precisa ser identificado e rejeitado pelo Judiciário, sob pena de transformar instrumentos constitucionais em mecanismos de revitimização.

A proteção à mulher, portanto, exige a compreensão de que as medidas protetivas têm autonomia, finalidade própria e fundamento na prevenção. Elas não são punições, não dependem de denúncia e não se confundem com decisões criminais ou familiares. Sua vigência está diretamente ligada à persistência do risco, e não ao destino do inquérito ou da ação penal.

Ignorar esse desenho legal e jurisprudencial é correr o risco de desmontar a principal barreira de proteção às mulheres em situação de violência. Por isso, o Tema 1249 não é apenas mais uma decisão técnica do STJ. Ele é um marco interpretativo que reafirma a centralidade da proteção integral, coloca a palavra da vítima no lugar de importância que ela merece e impede que instrumentos jurídicos sejam utilizados para enfraquecer a segurança das mulheres.

Proteger a vida e a integridade das mulheres não depende de formalismos, mas de sensibilidade institucional, respeito às normas e atenção ao risco real. Esse é o compromisso que o sistema de justiça precisa assumir, e é exatamente isso que o Tema 1249 determina.

[1] I – As medidas protetivas de urgência (MPUs) têm natureza jurídica de tutela inibitória e sua vigência não se subordina à existência (atual ou vindoura) de boletim de ocorrência, inquérito policial, processo cível ou criminal; II – A duração das MPUs vincula-se à persistência da situação de risco à mulher, razão pela qual devem ser fixadas por prazo temporalmente indeterminado; III – Eventual reconhecimento de causa de extinção de punibilidade, arquivamento do inquérito policial ou absolvição do acusado não origina, necessariamente, a extinção da medida protetiva de urgência, máxime pela possibilidade de persistência da situação de risco ensejadora da concessão da medida; e IV – Não se submetem a prazo obrigatório de revisão periódica, mas devem ser reavaliadas pelo magistrado, de ofício ou a pedido do interessado, quando constatado concretamente o esvaziamento da situação de risco. A revogação deve sempre ser precedida de contraditório, com as oitivas da vítima e do suposto agressor. Em caso de extinção da medida, a ofendida deve ser comunicada, nos termos do artigo 21 da Lei n. 11.340/2006.

Gabriela Pimenta R. Lima é advogada, Mestre em Direito Constitucional (IDP). LL.M em processo e recursos nos Tribunais Superiores (IDP), Pós-graduada em Direito Tributário (IDP) e possui especialização em Direito Tributário (IBET). É Cofundadora do grupo Amigas da Corte.

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