Resenha dos Clássicos: O CONCEITO DE AÇÃO E SUA IMPORTÂNCIA PARA O SISTEMA DO DIREITO PENAL – Gustav Radbuch (1878-1949)

Publicado em Direito Penal

Por: Michelangelo Cervi Corsetti [1], Maria Luiza Diniz [2] e Rita Machado [3]

 

Na obra que inaugura a série Resenha dos Clássicos, intitulada “O conceito de ação e sua importância para o sistema do Direito Penal”, busca-se examinar como Gustav Radbruch (1878–1949) procurou demonstrar a possibilidade de identificar um conceito supremo, dentro do sistema jurídico-penal, que fosse capaz de abranger tanto a ação quanto a omissão.

Radbruch, orientado por Franz von Liszt (1851–1919) em sua tese de doutorado — dedicada à teoria da causa adequada — acabou provocando a insatisfação de seu mestre. Liszt, em tom de desafio, teria lhe dito: “Escreva então, com essa sua ideia, um Tratado!” A partir disso, Radbruch decidiu aprofundar sua investigação, não com o propósito de escrever um tratado dogmático, mas para verificar se seria possível conferir o mesmo tratamento conceitual e classificatório à ação e à omissão. Esse deveria ser, portanto, o ponto de partida de sua reflexão, sem negar, contudo, a influência de seu orientador.

  • 1º. Sobre a necessidade de uma ordenação das proposições jurídicas e a indispensabilidade de sua classificação. O objeto do Direito Penal e a tarefa dedutiva da Teoria Geral do Direito.

Escrita na virada do século XIX para o XX e publicada em 1904 — momento histórico em que ainda predominava a teoria causal da ação, fortemente influenciada pelos métodos das ciências naturais —, a obra de Radbruch inaugura uma nova forma de pensar o Direito Penal. O autor inicia examinando os critérios necessários à existência de um sistema jurídico-penal. Seu objetivo inicial é responder duas perguntas fundamentais: a) O que é uma classificação jurídica? B) Qual o propósito de realizá-la? Para Radbruch, classificação e dedução não têm a finalidade de descobrir novos conhecimentos, mas de organizar e expor os já adquiridos. A dedução serve também para confirmar a correção desses conhecimentos, colocando-se, assim, um passo adiante da classificação. Contudo, a dedução só é possível porque pressupõe uma classificação prévia; uma não existe sem a outra.

A matéria-prima da ciência jurídica, afirma o autor, consiste nas proposições legais — as afirmações normativas contidas nas leis e códigos. O primeiro passo do trabalho científico do jurista é elaborar essas proposições, depurando-as de expressões supérfluas (como proposições legais facultativas, denegatórias, ou definitórias, etc.) e reformulando-as em termos que as tornem logicamente claras e operacionais.

Essas proposições podem assumir múltiplas formas: podem ser autorizativas, concessivas, permissivas, ou impositivas, estabelecendo deveres, ordens ou proibições. Apesar dessa diversidade, todas possuem a mesma natureza lógica — são juízos condicionados, compostos por um pressuposto fático (a condição) e uma consequência jurídica (o efeito).

De acordo com Radbruch, conforme a concepção adotada acerca do “ser” do ordenamento jurídico, as proposições podem ser levadas à forma de autorização ou de obrigação. Se traduzidas como autorizações, conservam sua forma lógica de juízos condicionados; se entendidas como obrigações, convertem-se em normas ou imperativos condicionados, formulados na expressão “Eu, o legislador, ordeno o que segue”.

Radbruch adverte, porém, que apenas os juízos, e não os imperativos, permitem que se extraia deles conclusões. Assim, a dedução jurídica exige pensamento lógico, ao passo que a indução jurídica requer o que ele denomina de “sentimento do Direito justo” — algo que escapa à apreensão puramente racional. Em suas palavras, a dedução é apenas forma de exposição; a indução, sim, é o verdadeiro método de investigação. A primeira confirma o que a segunda descobre.

Para o autor, a ciência jurídica tem por tarefa preparar o Direito para sua aplicação prática. Se ao intérprete, encarregado de aplicar a lei, fosse dada apenas a possibilidade de dedução, ele precisaria — em cada caso concreto — revisitar todo o conjunto de normas para verificar se o fato em questão se encaixa em alguma proposição jurídica que produza a consequência desejada.

Daí decorre a necessidade de uma ordenação lógica das proposições jurídicas, segundo seus pressupostos fáticos e suas consequências. Tal sistematização permite ao juiz afastar, de antemão, classes inteiras de normas que não se aplicam ao caso, evitando uma análise caótica e fragmentada.

Radbruch cita Liszt, para quem “somente a ordenação dos conhecimentos em um sistema garante um domínio seguro e diligente sobre todas as particularidades; sem isso, a aplicação do Direito estaria entregue ao arbítrio ou à sorte, não passando de um eterno diletantismo”. A conclusão é inequívoca: a ordenação das proposições jurídicas é necessária, e sua classificação, indispensável.

Em seguida, Radbruch examina a relação entre classificação e dedução. A dedução, afirma ele, coloca em relevo o material jurídico; a classificação o ordena. A primeira é uma etapa intermediária, e a segunda, o ponto final da elaboração conceitual. Assim, a dedução deve preceder a classificação, e esta, por sua vez, deve organizar os conceitos e proposições enunciados.

As normas jurídicas, ressalta o autor, são imperativos ou dogmas, mas apenas os conceitos jurídicos podem ser objeto de juízos e, portanto, de classificação lógica. Para que o conteúdo das proposições jurídicas seja classificável, é necessário que elas sejam transformadas em conceitos — e não permaneçam como normas ou dogmas.

Radbruch observa, então, que num sistema de Direito Penal, uma unidade que compreenda simultaneamente conceitos e juízos seria ilógica. A classificação jurídica, ao contrário, deve recair sobre conceitos conectados pelo conteúdo das proposições jurídicas — seus pressupostos fáticos e suas consequências.

Nesse raciocínio, o autor conclui que as normas, enquanto imperativos, são em si mesmas ações, pois expressam ordens de vontade humana. Logo, o conceito de ação não deve ser compreendido apenas como um movimento corporal, mas como manifestação normativa da vontade.

Seguindo essa lógica, Radbruch demonstra que o direito subjetivo não é o conceito supremo do sistema jurídico, pois representa apenas a consequência jurídica em relação a um pressuposto fático. Ele cumpre a função de reunir proposições, mas não de servir como princípio unificador. Nenhuma teoria até então, observa o autor, havia sido capaz de definir a pirâmide conceitual completa, cuja base comporta uma multiplicidade de conceitos especializados e cuja cúspide se unifica em um único conceito superior.

As obras existentes, segundo Radbruch, limitavam-se a representar apenas fragmentos dessa pirâmide. As partes sem o vértice são as disciplinas jurídicas particulares, enquanto o vértice — o ponto de convergência — é a Teoria Geral do Direito. A divisão entre disciplinas especializadas e teoria geral, porém, é fruto da necessidade prática da divisão do trabalho, e não de uma exigência científica.

Em suma, Radbruch demonstra que a ciência jurídica necessita de uma estrutura sistemática que unifique seus conceitos sob um princípio supremo, e é precisamente nessa busca que se insere o conceito de ação, que será desenvolvido na parte seguinte de sua obra.

 

  • 2º. O conceito de ação. Radbruch supera a concepção de ação como representação do movimento corporal produzida pela voluntariedade. O duplo referencial no conceito formal de delito: a omissão não é a não ocorrência de uma ação, é a não representação de uma ação em um sujeito.

 

A partir desse ponto, Radbruch volta-se diretamente à tarefa de definir o que entende por ação punível, buscando um conceito que seja compatível não apenas com o sentido semântico da lei positiva, mas também com o que denomina “linguagem da vida” (Lebenssprache).

O ponto de partida de sua investigação repousa sobre um axioma fundamental: toda ação integra três elementos — vontade, ato e uma relação entre ambos — que deve ser compreendida causalmente. A síntese desses elementos, a unidade da ação, manifesta-se no juízo de imputação.

Radbruch observa que, na parte geral do Direito Penal, há momentos em que o encadeamento conceitual se interrompe por ausência de termos intermediários adequados, o que evidencia a necessidade de um sistema lógico de elementos. Esse sistema deve garantir coerência entre os conceitos fundamentais e os derivados, algo que somente uma teoria geral bem estruturada pode oferecer.

Segundo o autor, o objeto do Direito Penal é a proposição jurídica que pune o delito, assumindo-se como axioma que cabe à Teoria Geral do Direito deduzir suas bases conceituais. De acordo com a lógica, não é possível admitir elementos alternativos ou contraditórios dentro de um mesmo conceito — salvo quando tais elementos sejam classes de um mesmo gênero, como o dolo e a culpa, que se subordinam à culpabilidade.

Desse modo, questiona Radbruch, por que os delitos comissivos e omissivos, assim como os dolosos e culposos, são tratados como espécies distintas, quando poderiam ser considerados formas de manifestação de um mesmo fenômeno — o delito — tal como ocorre nas distinções entre tentativa e consumação, autoria e participação?

O autor responde que, em regra, somente é punível uma ação antijurídica e culpável; somente é culpável uma ação antijurídica; e somente é antijurídica aquilo que é uma ação. Assim, a ação constitui o termo genérico maior, a “unidade superior de todos os fenômenos do Direito Penal”.

A partir dessa constatação, Radbruch afirma que a teoria do delito deve partir da ação, considerada o “firme esqueleto que define a estrutura da teoria do delito”. A partir dela se abrem todas as demais categorias — antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade — como predicados de uma mesma substância conceitual.

Desse modo, o sistema jurídico-penal se revela como um edifício cujos alicerces repousam sobre o conceito de ação. A própria lei, ao empregar a expressão “ação punível” como sinônimo de delito, autoriza a ciência a tomar o conceito de ação como ponto de partida de toda a estrutura normativa.

Falta, contudo, definir com precisão o que a lei entende por “ação punível”. Para isso, Radbruch recorre à linguagem da vida: busca compreender que tipo de relação entre vontade e fato é necessária para caracterizar uma ação punível.

A ação, afirma, é uma relação entre a vontade e o fato. Assim, a pergunta pelo conceito de ação deve ser formulada da seguinte maneira: que relação entre vontade e fato é compatível com os atributos da antijuridicidade, da culpabilidade e da punibilidade?

Radbruch reconhece que até o final do século XIX predominava a visão hegeliana de que só existe ação quando o acontecimento é querido. Essa concepção, porém, fracassou porque não conseguia explicar os resultados culposos — aqueles em que o agente produz o resultado sem tê-lo querido.

Posteriormente, os conceitos de ação propostos por Karl Binding e Ernst Zitelmann substituíram a tradição hegeliana, mas mantiveram a mesma estrutura psicológica: para ambos, a vontade é a causa imediata do movimento corporal. Assim, onde não há movimento, não há ação; e onde não há vontade causal, tampouco há agir.

Radbruch identifica nessa formulação uma limitação fundamental: ela reduz a ação a um fenômeno físico-psicológico, ignorando o aspecto normativo e valorativo do agir humano. O autor cita Zitelmann, que comparava o movimento corporal à nascente de um rio que brota misteriosamente do interior de uma montanha: mesmo que não vejamos sua origem, sabemos que deve haver uma causa — a vontade.

Mas Radbruch observa que a experiência cotidiana contradiz essa analogia: muitas vezes, um movimento corporal voluntário não é acompanhado da representação consciente do ato. Pode-se querer algo sem efetivamente realizá-lo — como em uma tentativa frustrada — e, inversamente, realizar algo sem tê-lo querido.

A “linguagem da vida”, prossegue o autor, nos mostra que é possível querer algo apenas representado, ainda que não concretizado. Por isso, o conceito de ação deve ser mais amplo que o simples nexo causal entre vontade e movimento: ele deve abarcar também a relação de sentido entre querer e poder agir.

Nesse ponto, Radbruch introduz o problema da omissão. Até então, o conceito de ação se restringia à ação positiva, isto é, à prática de um movimento corporal. A omissão era tratada apenas como a ausência desse movimento. Contudo, para o autor, isso é insuficiente.

A omissão, afirma Radbruch, não é a não ocorrência de uma ação, mas a não representação de uma ação em um sujeito. É uma categoria própria, com estrutura lógica e valor jurídico específicos. Omitir-se não significa simplesmente nada fazer, mas não fazer o que se devia fazer.

Ele reconhece que a omissão carece dos três elementos da ação positiva — vontade, fato e causalidade —, pois nela falta precisamente o nexo causal entre a vontade e o fato. Contudo, lembra Radbruch, conforme Liszt, “omitir não significa não fazer nada, mas não fazer algo determinado”.

Na omissão própria, o agente é punido por não executar o movimento ordenado — por descumprir uma norma. Já na omissão imprópria, a imputação recai sobre o resultado: o agente responde não pela inércia em si, mas porque sua omissão permitiu a ocorrência de um resultado que poderia ter sido evitado.

Para Radbruch, o resultado da omissão é paradoxal. Seria correto falar aqui em resultado? O resultado da omissão é que ela não tem resultado algum, ou seja, consiste precisamente na ausência de resultado. Da omissão não fazem parte nem comportamento corporal, nem resultado, nem relação causal — apenas a inexecução de um dever.

Surge, então, a questão decisiva: é possível subordinar ação e omissão a um conceito superior comum? Se a ação deve conformar o conceito supremo do sistema penal, ela deveria também abarcar a omissão.

Radbruch responde negativamente. A omissão, diz ele, não possui em comum com a ação os elementos da vontade, do ato e da causalidade; ao contrário, ela se esgota ao negá-los. Assim como não se pode colocar “a” e “não-a” sob o mesmo conceito superior, também não é possível colocar ação e omissão sob um conceito único de conduta humana.

Contudo, há entre ambas um elemento partilhado: o sujeito humano livre de coerção. O agente é o mesmo — o homem —, ainda que os predicados (agir e não agir) sejam logicamente opostos.

A omissão, portanto, só interessa ao Direito Penal quando existe a possibilidade física e normativa de agir. Ela não é a ausência pura e simples de movimento, mas a inexecução de uma ação exigida.

Radbruch reconhece que as leis penais parecem tratar certos verbos (como “matar”) de modo a incluir tanto o agir quanto o não evitar o resultado. Assim, quem deixa de impedir a morte de alguém, quando podia fazê-lo, é punido como se tivesse causado a morte.

Mas o autor ressalta que se não podemos sustentar que se pode causar a morte mediante omissão, que o legislador atribui o mesmo valor jurídico à inação culposa ou dolosa. Por isso, deve-se interpretar a lei segundo seu sentido normativo, e não de modo literal.

No fim, o sistema penal se mostra dividido entre dois conceitos independentes — ação e omissão —, que correm em paralelo sem poder fundir-se num só. Essa cisão, diz Radbruch, percorre todo o sistema, desde o conceito formal de delito até suas ramificações mais finas. A teoria do delito passa, assim, a ser construída sobre um duplo referencial, em que cada categoria — antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade — deve ser pensada tanto sob o prisma da ação quanto sob o da omissão.

A reflexão de Gustav Radbruch em O conceito de ação e sua importância para o sistema do Direito Penal constitui um dos marcos da transição entre o positivismo naturalista e a concepção normativa do Direito Penal.

Ao demonstrar que o agir humano não pode ser reduzido a um fenômeno causal, Radbruch abre espaço para uma compreensão axiológica da conduta, em que a imputação jurídica substitui a simples causalidade natural.

Sua análise revela que a ação, enquanto expressão da vontade humana inserida no ordenamento, é o fundamento lógico e estrutural do sistema penal. Contudo, ao reconhecer que a omissão não pode ser reduzida à ação, o autor também evidencia a limitação da razão sistemática diante da complexidade moral do agir humano.

O mérito da obra está em estabelecer um método de pensamento jurídico — baseado na classificação, dedução e imputação — que permite compreender o Direito Penal como um sistema coerente, mas sensível à realidade ética da vida.

Mais de um século depois, a lição de Radbruch permanece atual: o Direito Penal é, antes de tudo, uma ciência do agir humano, onde cada norma é também uma forma de ação, e cada omissão, uma negação significativa do dever de agir.

 

 

 

 

[1] Mestre e Especialista em Ciências Criminais pela PUCRS. Professor da Pós-Graduação (UNICEUB). Sócio do escritório Corsetti Diniz Machado Advogados Associados.

[2] Especialista em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Visiting Student na Faculty of Law e no Institute of Criminology da University of Cambridge. Sócia do escritório Corsetti Diniz Machado Advogados Associados.

[3] Especialista em Penal e Processo Penal (IDP), e em Compliance Criminal pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), pelo Instituto Legal Ethics Compliance (LEC/SP) e pelo Centro de Estudos em Direito e Negócios (CEDIN/BH). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco. Sócia do escritório Corsetti Diniz Machado Advogados Associados.

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