Por Fernando Pessôa da Silveira Mello[1] e Rita Machado
A Justiça Militar da União, como sabemos, é a Justiça mais antiga do Brasil, contando, atualmente, com 215 (duzentos e quinze) anos de existência, tendo sido criada em 1º de abril de 1.808, pelo Alvará com força de lei expedido pelo Príncipe Regente Dom João VI, que criou o Conselho Supremo Militar e de Justiça[1]. Ainda assim, é uma Justiça desconhecida até mesmo pelos operadores do Direito, o que se mostra um verdadeiro paradoxo: ao mesmo tempo em que é a Justiça mais antiga do país, é o ramo da Justiça menos conhecido dos brasileiros, e cujo panorama é nosso dever transformar.
E quem conhece a história dessa Justiça tem a certeza de que ao longo de toda a sua existência, a Justiça Militar demonstrou os mais importantes e indispensáveis predicados da boa e justa prestação jurisdicional: a obediência à Constituição e às leis, a imparcialidade, o bom senso e o respeito à pessoa humana. Vale lembrar que foi justamente no âmbito da Justiça Castrense que se reconheceu, de forma pioneira na história do Poder Judiciário brasileiro, a possibilidade de concessão de liminar em Habeas Corpus, em 31 de agosto de 1964, pelo Almirante de Esquadra José Espíndola[2] [3], durante o governo militar.
É também necessário reconhecer que nos últimos anos houve grande e profunda modernização desse Ramo Especializado do Poder Judiciário Federal, em especial com as Leis Federais 13.491/2017 e 13.774/2018. A primeira, ao ampliar a competência penal[4] da Justiça Militar no Código Penal Militar, e a segunda, ao fixar a competência monocrática do Juiz Federal da Justiça Militar para processar e julgar civis e militares em coautoria com civis e determinou a competência desses Juízes civis togados para presidir os Conselhos de Justiça[5], na Lei de Organização Judiciária Militar.
No entanto, ainda há muito mais a ser conquistado. Isso porque, deve ser realizada a inserção de um Ministro e um Juiz Federal da Justiça Militar na composição do Conselho de Nacional de Justiça[6], que corrigirá o silencioso esquecimento da EC 45/2004 e reposicionará essa Justiça na representatividade do Poder Judiciário Nacional em simetria com a matriz do Constituinte de 1988.
Isso porque o Conselho Nacional de Justiça tem por função precípua afigurar-se como órgão responsável pela atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário, bem como pela fiscalização dos deveres funcionais de juízes e servidores, zelando pelo acesso à Justiça. Foi um marco positivo no processo de reformas constitucionais levado a efeito pelo Poder Constituinte Derivado Reformador, ampliando a transparência e o próprio desempenho da atividade jurisdicional.
Uma simples e rápida leitura do art. 103-B da Constituição Federal, nos permite concluir que no mencionado Conselho há ampla representação institucional, valendo destacar que a Magistratura Nacional faz-se representada por vários ramos e por diferentes instâncias: Justiça Federal Comum, Justiça Estadual Comum e Justiça do Trabalho, em um total de 9 (nove) magistrados, ausentes, apenas, magistrados da Justiça Militar[7]. Veja-se, no tópico:
Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 15 (quinze) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo:
I – o Presidente do Supremo Tribunal Federal;
II – um Ministro do Superior Tribunal de Justiça, indicado pelo respectivo tribunal;
III – um Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, indicado pelo respectivo tribunal;
IV – um desembargador de Tribunal de Justiça, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
V – um juiz estadual, indicado pelo Supremo Tribunal Federal;
VI – um juiz de Tribunal Regional Federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VII – um juiz federal, indicado pelo Superior Tribunal de Justiça;
VIII – um juiz de Tribunal Regional do Trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
IX – um juiz do trabalho, indicado pelo Tribunal Superior do Trabalho;
X – um membro do Ministério Público da União, indicado pelo Procurador-Geral da República;
XI – um membro do Ministério Público estadual, escolhido pelo Procurador-Geral da República dentre os nomes indicados pelo órgão competente de cada instituição estadual;
XII – dois advogados, indicados pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
XIII – dois cidadãos, de notável saber jurídico e reputação ilibada, indicados um pela Câmara dos Deputados e outro pelo Senado Federal. Grifei.
É uma lacuna lógica e sistêmica que demanda a reforma constitucional para que sejam respeitadas as especificidades e particularidades existentes na Justiça Castrense, jurisdição altamente especializada. A composição plural do Conselho Nacional de Justiça não deve revestir-se de caráter seletivo, pelo contrário: deve ir além, ser efetiva e real.
Relevante anotar que no presente ano de 2023, o Senador Eduardo Gomes (PL/TO) fora responsável, com o auxílio da presidência do Superior Tribunal Militar e de sua equipe de assessoria parlamentar, pela propositura da PEC 04/2023, renovando os esforços à citada atualização da Constituição Federal[8]. Vide o texto proposto:
Art. 103-B. O Conselho Nacional de Justiça compõe-se de 18 (dezoito) membros com mandato de 2 (dois) anos, admitida 1 (uma) recondução, sendo: ………………………………………………
III-A – um Ministro do Superior Tribunal Militar, indicado pelo respectivo tribunal; ………………………………………………
IX-A – um juiz federal da Justiça Militar da União, indicado pelo Superior Tribunal Militar;
IX-B – um juiz de direito da Justiça Militar estadual ou do Distrito Federal, escolhido pelo Superior Tribunal Militar dentre os nomes indicados pelo Tribunal de Justiça, ou pelo Tribunal de Justiça Militar, onde houver, de cada Estado e do Distrito Federal; Grifei.
Ainda sobre esse ponto, faz-se mister uma reflexão: como é de amplo conhecimento público, as propostas de emendas à Constituição submetem-se a rigoroso processo constitucional[9] que demanda 2 (dois) turnos de votação e 3/5 (três quintos) de cada Casa Legislativa, seguindo-se o regime bicameral do Poder Legislativo brasileiro e, portanto, ainda se encontra em estágio inicial de discussão.
Sendo assim, tal tramitação poderá, hipoteticamente, como natural dos processos democráticos, exigir ajustes no texto, ainda que corretamente proposto em sua redação original. No entanto, não há outro caminho que não seja a firme e intransigente defesa de representatividade das duas instâncias da Justiça Militar da União: 1 (um) Ministro do Superior Tribunal Militar e 1 (um) Juiz Federal da Justiça Militar.
Ora, assim o é na Justiça Estadual comum, na Justiça Federal Comum e na Justiça do Trabalho. Raciocínio diferente é apequenar a própria Justiça Militar, reduzindo-a a um ramo de somenos importância do Poder Judiciário, o que deve ser rechaçado sob todas as suas perspectivas, tanto pelo Superior Tribunal Militar como pela Associação dos Juízes Federais da Justiça Militar – AJUFEM.
A Magistratura Militar Federal de carreira é, portanto, e indene de dúvidas, credora do Poder Constituinte.
Deve-se reconhecer que ainda há muito por avançar. Este fato, porém, como já ressaltado, não deve obscurecer os progressos já alcançados e em permanente transformação. A evolução passa pela pluralidade, pois a pluralidade de pensamento nos forja e a harmonia nos fortalece. Lembro Voltaire: posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito de você dizê-las.
É chegada a hora de mudança de perspectiva. E, se preciso, empurraremos a história. Como escreveu o poeta espanhol António Machado, “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao caminhar”.
[1] Doutorando em Direito pela Universidade Nove de Julho/SP. Mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público/DF. Especialista em Direito Público e em Direito Tributário. Juiz Federal da Justiça Militar. Ex-Juiz Auxiliar da Presidência do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Ex-Juiz Auxiliar da Presidência do Tribunal Superior Eleitoral – TSE. Ex-Procurador de Estado (Procurador-Chefe junto ao Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça). Ex-servidor do Supremo Tribunal Federal (assessor jurídico de Ministro – STF) e do Ministério Público Federal (assessor de Subprocurador-Geral da República – PGR). Professor universitário e de cursos de pós-graduação lato sensu.
[1] ROSA FILHO, Cherubim. A justiça militar da União através dos tempos: ontem, hoje e amanhã. 3 ed. Brasília: Superior Tribunal Militar, 2015, p. 14.
[2] https://www.stm.jus.br/informacao/agencia-de-noticias/item/5596-legado-ao-judiciario-primeira-liminar- -em-habeas-corpus-no-brasil-foi-dada-no-superior-tribunal-militar. Acesso em: 31/05/2021.
[3] Habeas Corpus impetrado por Arnold Wald em favor de Evandro Moniz Corrêa de Menezes. Referência histórica importante do pioneirismo, independência e respeito à dignidade da pessoa humana: HC n. 27/27.200/ Estado da Guanabara, Rel. Min. Alte. Esq. José Espíndola.
[4] Art. 9º, II, do CPM. Os crimes previstos neste Código e os previstos na legislação penal, quando praticados:
[5] Art. 30, da LOJMU. Compete ao juiz federal da Justiça Militar, monocraticamente: I-A presidir os Conselhos de Justiça.
[6] É indiscutivelmente falacioso o argumento de que a Justiça Militar não deveria ter representantes no âmbito do Conselho Nacional de Justiça em razão do pouco quantitativo de magistrados de carreira e de volume processual: a representatividade no referido Conselho não deriva do quantum de membros das respectivas instituições, mas sim de uma representatividade institucional. Não fosse assim, deveria existir, a título exempli- ficativo, um número maior de cadeiras para a Justiça Estadual em detrimento da Justiça Federal, bem como um número muito maior de assentos reservados à Ordem dos Advogados do Brasil do que à própria Magistratura.
[7]Vale mencionar que a Justiça Eleitoral não possui quadro permanente de magistrados em decorrência de sua composição temporária, característica que a distingue dos demais ramos permanentes (enquanto composição) do Poder Judiciário.
[8] Até a data de fechamento deste artigo, 15/05/2023, a PEC 04/2023 encontrava-se sob a relatoria do Senador Hamilton Mourão (Republicanos/RS) aguardando pauta na Comissão de Constituição e Justiça – CCJ do Senado Federal.
[9] Artigo 60 da Constituição Federal de 1988.