Saudades de Felícia

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Enquanto marcava com alfinetes a sobra do meu vestido azul royal, André se manifestou diante da minha reclamação de não ter seios fartos. “Seu corpo é ótimo: bem brasileira e com quadris largos”, definiu. Aceitei o consolo e ele aproveitou para elogiar minha sandália preta de salto alto e tiras desenhadas no peito do pé. O menino potiguar gosta muito das mulheres, especialmente de vê-las. Admira o corpo, o cabelo e o trejeitos delas. Seu olhar, no entanto, não tem nada de desejo. Não há nenhuma dose de picardia na forma com que o jovem de 23 anos se refere ao sexo oposto. Na verdade, André gostaria de ser como uma delas.

 

Vez ou outra, assume sua identidade feminina. “Me monto desde os 19 anos”, conta, enquanto ajusta as alças do meu vestido. Descobriu que, com fita crepe, peruca e lentes, também pode ser uma mulher quando bem desejar. E é uma daquelas bem poderosas. André não é nada alto. Menino magrinho, até. Mas Felícia, não. Ela é mulherão, gostosura conquistada a base de espuma. Para dar vida à alma drag queen, André infla os seios e ganha curvas de enchimentos nos quadris. Sapatos, só usa os acima de 20cm de altura. E as perucas são variadas: tem longa, curta, colorida. Mas ele prefere as de fios compridos. Afinal, “bater cabelo” faz parte da personalidade fogosa da transformista.

 

A cintura, já fina, fica com medidas ainda mais reduzidas quando espremida a custa de fita autocolante. O pênis também é acomodado e preso entre as pernas. Ele diz que dói, incomoda, mas quem esqueceu de avisar a ele que ser mulher não é nada fácil? Sofre mesmo!

 

Quando vira Felícia, o menino franzino se transforma. Não só corpo, mas a alma também. Sua personagem mulher tem fogo, é debochada. Não deixa nenhum rastro do tímido rapaz que lhe dá vida. Ela dança. Desperta a fantasia dos homens. Com ela, eles querem sexo sem conversa. Mas namorado, Felícia nunca arranjou. “Ninguém quer namorar quem se monta”, lamenta o natalense.

 

André não gosta de associar seu corpo feminino à luxúria. Quer se divertir e sensualizar apenas. Em Natal, não se importava em convidar Felícia para fazer parte da sua rotina. Quando ia levá-la para a boate, tomava o ônibus com ela, equilibrando-se nas sandálias altas e vestindo a roupa justa para exibir o corpo que construiu. Atraía olhares de todos os tipos: os de admiração, os de desejo, os de julgamento. Nunca se importou qual seria. Gostava até. A mãe sempre apoiou o gosto do filho que, às vezes, quer ser menina, e sempre o presenteou com roupas extravagantes feitas só para elas.

 

Mas um dia André se apaixonou. Mesma sorte, Felícia nunca teve. Ele largou tudo no Nordeste para viver o romance na capital do país. O moço sabe que ele tem uma dupla identidade, mas o amado ainda não quis ser apresentado a Felícia. Em nome do amor, André aceitou a recusa e deixou seu lado mulher para trás. Mas o coração dele é dividido. Também ama a diva de lentes coloridas. Há seis meses em Brasília, pensa em trazê-la para viver aqui. O guarda-roupas dela é maior do que o dele e, aos poucos, ela chega, dentro de uma mala e outra.

 

A mudança é feita aos poucos, porém. André teme que o atual companheiro tenha ciúmes da moça. A esperança é convencê-lo a ter uma convivência harmoniosa entre os três. Um verdadeiro triângulo amoroso. Mas ainda está inseguro. Por enquanto, ela não vem. E ao ser perguntado quanto tempo ela leva para desembarcar por aqui de vez, ele sorri e só diz: “Espero que logo. Tenho muita saudade dela!”