Morte aos estereótipos!

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O cinema das mulheres arrebenta velhos discursos

(R)Evolução feminista nos cinemas globais – De loura gelada à loura kickass de nervos de aço.

Estamos chegando lá, mulherada. A(s) História(s) das Mulheres, cara e necessária em escala global, vem sendo resgatada. Há décadas, apesar de a passos pequenos. Como formiguinhas historiadoras e arqueólogas, ao mesmo tempo, escavam pistas aqui e ali, juntam pedaços de documentos, artefatos, livros, peças de quebra-cabeças que emergem acolá, nos quatro cantos do mundo.

Aprendemos hoje que algumas civilizações pré-colombianas (como a Inca) eram matriarcais e chefiadas por mulheres. Ou que existiram (muitas) guerreiras respeitadíssimas e líderes em civilizações tidas como “másculas” e supostamente patriarcais, como os povos Vikings ou os Celtas (Bretanha). Ou mesmo que na Guerra Civil norte-americana, no Século 19, umas 600 mulheres disfarçaram-se de homens para lutar contra os escravocratas do Sul dos Estados Unidos. E também sobre as heroínas das guerras pelas independências dos países latino-americanos.

São muitas histórias que foram silenciadas, apagadas e omitidas, principalmente a partir do Século 19, por retrógrados historiadores vitorianos, que transformaram feitos, pesquisas científicas, descobertas ou heroísmos femininos em meros “detalhes”, ao sobrepor os homens a elas. Ou ajudaram na apropriação pelos homens do que na verdade seria fruto do trabalho e do esforço de mulheres. Tal é o caso de Albert Einstein, reconhecido como físico mas um matemático medíocre, e sua primeira esposa, Mileva Marić (Mitza), matemática sérvia classificada por ele como genial. São dela os cálculos por trás da famosa Teoria da Relatividade. Ele teve que repassar para ela o dinheiro recebido pelo Prêmio Nobel. Alguém sabia disso? Somente neste novo milênio, as cartas entre Mitza e uma amiga de universidade foram divulgadas em livro.

Isso tudo tem sido revelado, pesquisado e comprovado, em nossa contemporaneidade, por historiadoras, antropólogas, arqueólogas, sociólogas, enfim, mulheres das diversidades e de várias áreas do conhecimento. Fazem um trabalho importantíssimo de resgate da História das Mulheres, um campo que se abre dentro dos estudos das civilizações, que hoje algumas pesquisadoras, daqui e mundo afora, denominam a História do Possível.

Em contrapartida, na área de Comunicação, há um boom de produções audiovisuais – nos cinemas e nas séries para a TV ou para as plataformas digitais, como Netflix e Hulu – que contam tais histórias, em filmes de ficção ou não, mas visivelmente baseadas em personagens reais ou mitológicas, que foram “esquecidas” nas narrativas historiográficas.

São produções com mulheres “kickasses” – que arrebentam, que “chutam bundas”, que são inteligentes, cientistas, fortes, valentes e destemidas – em papéis principais, com suas próprias falas, ideologias e pensamentos. Independem de homens e, em muitos casos, nem mesmo há personagens masculinos significativos. São filmes que passariam no Teste de Bechdel!

Bons exemplos estão em cartaz, ou podem ser vistos nas plataformas de filmes e séries na internet. São produções estreladas, dirigidas, editadas e/ou produzidas por mulheres (de todas as diversidades interseccionais), como é o caso de Atômica (Atomic Blonde – EUA, 2017), de Mulher-Maravilha (Wonder Woman – EUA, 2017), de Estrelas Além do Tempo (Hidden Figures – EUA, 2016), ou de Girls Trip (EUA, 2017), este ainda inédito no Brasil. E há as animações e as séries que fazem ou já fizeram sucesso ao longo das últimas duas décadas.

São referências porque rompem com o que vinha sendo estereotipado e mal representado, no audiovisual dos últimos 120 anos desde a criação do cinema, em relação aos papéis modelo femininos. Não que essas más representações tenham desaparecido. As trágicas, infelizes mesmo, novelas brasileiras, ou a maioria dos filmes da indústria cultural transnacional, estão aí para lembrar-nos que o sexismo, o idadismo, o racismo, a LGBTfobia, e o machismo misógino seguem bem vivos.

Entretanto, tais padrões são ou começaram a ser desafiados em filmes recém-lançados como os mencionados acima, ou no passado recente, com animações e séries de TV, como Valente (Brave – EUA, 2012), vencedora do Oscar de Melhor Animação, Frozen (EUA, 2013), ou a série de TV neo-zelandesa Xena – Princesa Guerreira (Xena – Warrior Princess, exibida entre 1995 e 2001). Há também belos exemplos brasileiros e de outros países periféricos ao Eurocentrismo, que são menos badalados, ou menos difundidos e distribuídos, mas emblemáticos. (ver aqui)

A princesa Mérida, de Valente, é claramente inspirada na história real da princesa Boudicca, guerreira bretã que liderou homens e mulheres e venceu batalhas importantes contra o Império Romano, tornando-se heroína da Grã-Bretanha. Há uma imponente estátua dela perto do castelo de Windsor, em uma das pontes do rio Tamisa, em Londres.

Xena e outras guerreiras representadas em séries como Vikings (já na 5ª temporada do History Channel) são espelhadas em guerreiras e oficiais daqueles exércitos considerados “bárbaros” – na verdade, pagãos que possuíam alta tecnologia de navegação e de arquitetura para a época – entre os séculos VIII e X DC. E dados resgatados pelas pesquisas mais recentes mostram que havia um equilíbrio entre a quantidade de mulheres e homens que lutavam nas batalhas.

Mulheres Vikings eram guerreiras escudeiras. Elas não são um mito. Descoberta arqueológica recente revelou que as vikings atravessavam os mares e lutavam ao lado dos homens. Pesquisas da University of Western Australia sobre ossadas de aldeia Viking concluem que a quantidade de guerreiras era equivalente ao número de homens.

São mudanças necessárias para o desenvolvimento das novas gerações, em especial, claro, das meninas, das adolescentes e jovens mulheres. São muitas as pesquisas atuais, acadêmicas e de organizações (não) governamentais, que revelam a urgência por papéis modelos que representem as mulheres, e as diversidades, de forma positiva e afirmativa. Que estimulem suas autoestima e autodeterminação. Em resumo, o presente e o futuro das novas gerações, em suas miríades.

Como exemplo, Atomic Blonde traz a ganhadora do Oscar, Charlize Theron (Monster e Mad Max – Fury Road), no papel de uma espiã britânica top que esbanja habilidades em lutas marciais, força e inteligência, contra os marmanjos russos, alemães e ingleses. É um thriller de ação global que ocorre em Berlim, durante a semana do colapso do Muro (fins de 1989), já promovendo o deslocamento das forças e das alianças entre as superpotências.

E brinda as audiências com um outro papel-modelo para a “loura gelada”: a da mulher determinada e focada. Bem diferente das sexistas campanhas publicitárias de cerveja, que fazem das mulheres louras, brancas, as “burras”, frígidas/geladas, para o consumo de machos bêbados em dias de festa. O filme não deixa de ter alguns clichês rançosos da reificação (objetificação) feminina, como os sapatos vermelhos de saltos agulha, usados pela personagem principal mesmo nas cenas de luta mais ferozes.

Como pode ela lutar artes marciais de salto alto? Pois é. Ainda há que se suprimir nos filmes esses desejos freudianos de satisfazer a ansiedade masculina pela falta fálica das mulheres. E o vermelho é mais uma obviedade desse desejo sexual no fitar masculino. Até que se pode dar um refresco neste caso, pois a ambientação é na Berlim dos anos 1980. Aquela era a capital europeia de vários movimentos musicais e tendências como o punk (rock) e a Neue Deutsche Welle (a nova onda alemã). A moda era de extravagâncias nos acessórios. E algo minimalista, mas um tanto exótico nas roupas. Ou sóbrias (dark) demais ou o oposto.

O filme é baseado na graphic novel de 2012, The Coldest City (da Oni Press), escrita por Antony Johnston, com arte de Sam Hart. O título é referência à Guerra Fria entre os Estados Unidos e a então já estilhaçada URSS, cuja representação física (urbana) emblemática da divisão entre o Ocidente e o Oriente era justamente a cidade de Berlim.

Como produtora-executiva e estrela do filme, Charlize Theron fez questão de mudar vários enfoques dos quadrinhos originais. O principal é que os homens da trama terão bem menos importância, e o relacionamento de résistance da sua personagem, tanto em termos de confiança como de intimidade e sexo, será com a espiã francesa Delphine (interpretada pela atriz/modelo/bailarina franco-argelina Sofia Boutella).

É uma declaração bem assertiva essa. Embora não tenha dito com todas as letras, Theron quis propor algo do tipo “mulheres não precisam de homens para salvarem a si mesmas ou o mundo”. A vingança contra as injustiças cabe a elas. E toda a ação alta-voltagem é acompanhada meticulosamente pela trilha sonora lancinante, de arrepiar quem viveu a adolescência ou juventude nos anos 1980 e 90. Ou às novas gerações que curtem a nova onda alemã ou o punk rock daqueles anos. Ver a loura atômica kicking asses ao som do hit 99 Luftballons (Nena – Alemanha, 1983) é um prazer imenso ao empoderamento feminino.

É com isso que as mulheres, desde as mais novas – crianças e adolescentes – até as mais maduras, têm imediata identificação e sororidade – os laços de amizade/irmandade positivos entre as mulheres. Ao longo dos séculos, a história de estereotipias e más-representações se repetiu em todos os rincões globais, nas literaturas, nas músicas, ou nos teatros dos homens. O atraso, os retardos, os abusos morais, psicológicos e físicos contra elas. A apropriação indevida dos feitos e das aspirações delas.

Até no trailer de Atomic Blonde já se nota a medida desse poder da mulher atomizada. O filme arrecadou mais de US$ 50 milhões nos primeiros dias após a estreia, nos EUA. Alcançou nota de aprovação alta por 75% da crítica especializada no site Rotten Tomatoes, apesar de ter concorrido com outros lançamentos de peso, na mesma semana, como Dunkirk, The Emoji Movie e Girls Trip, todos sucessos que se mantêm ao longo de mais de seis semanas em cartaz nos Estados Unidos.

O sucesso desses filmes de 2017 – Atomic Blonde, Mulher-Maravilha, Hidden Figures e Girls Trip, aliás, mostra como as sociedades globais, em especial, as mulheres e meninas, estão carentes em relação a melhores representações para suas (auto) imagens e estima. Grande parte das bilheterias de tais produções é o retorno delas, que foram em massa aos cinemas e “puxaram” os homens. Não é preciso lembrar que as mulheres somam mais de 51% da população mundial, na média dos países.

Girls Trip é outra produção que merece destaque. Ainda sem data para o lançamento no Brasil, a viagem de garotas/mulheres, em tradução livre, comprova que quando há mulheres e/ou diversidades no “quarto de roteiristas”, os papéis modelo (interseccionais) de gênero também mudam de caráter e características. O filme escrito por um homem e uma mulher negros, Kenya Barris e Tracy Oliver, arrecadou US$ 100 milhões nas primeiras semanas, e conquistou as audiências e a crítica mais exigente, desde seu lançamento nos EUA, em 21 de julho. Com destaque para a ótima classificação na Rotten Tomatoes, empresa agregadora das opiniões de espectadores/as e da crítica especializada.

Estrelada por quatro mulheres negras – Regina Hall, Tiffany Haddish, Jada Pinkett Smith e Queen Latifah –, a comédia mostra fôlego. No fim de semana de estreia, faturou US$ 30 milhões apenas nos Estados Unidos, e ficou em segundo lugar no ranking, atrás apenas de Dunkirk. O filme custou US$ 19 milhões e ganhou uma rara nota A+ do público no dia da estreia, de acordo com o serviço CinemaScore. As mulheres representaram 79% da audiência de Girls Trip. E o site Hollywood Reporter confirma que a bilheteria de estreia é a melhor entre as comédias lançadas em 2017, e a melhor de um filme com classificação indicativa R (menores de 17 anos só acompanhados), em dois anos.

Os laços de sororidade são ressaltados em Girls Trip (EUA, 2017) com cenas que reafirmam a segurança e a alegria da amizade entre as protagonistas. Fonte: Divulgação Universal Pictures

O enredo é a aventura de quatro amigas que decidem viajar a Nova Orleans, para o festival anual Essence, e promover uma “reconexão” dos laços de amizade, de sororidade, de longa data. E o que era para ser uma “comédia de verão” nos Estados Unidos, reafirma o empoderamento das mulheres negras, ao colocá-las como personagens principais do que parece ser uma produção inovadora.

Quem ainda não viu os outros dois top movies deste ano com mulheres fantásticas, reais e mitológicas, Estrelas Além do Tempo e Mulher-Maravilha, vale a pena buscar nos sites online ou pagar nos canais por assinatura. As mulheres-maravilhas da idílica Ilha de Themyscira, devido ao estrondoso sucesso das bilheterias e de críticas globais, voltarão em 2019, em nova produção da Warner Bros. A diretora Patty Jenkins assinará também a sequência, dada a sua competência mais do que comprovada.

De acordo com o site Hollywood Reporter, o novo contrato fará de Jenkins a diretora mais bem paga de todos os tempos, com valores estimados entre US$ 7 milhões e US$ 9 milhões, além de participação nos lucros do filme. Na produção deste ano, a diretora teria embolsado “apenas” US$ 1 milhão.

A atriz israelense Gal Gadot também está confirmada para continuar a persona da super-heroína. A renovação dos contratos das duas principais responsáveis pela aclamação mundial de Mulher-Maravilha já era aguardada, considerando os números expressivos alcançados pelo filme, que arrecadou mais de US$ 800 milhões nas salas onde foi exibido.

Gal Gadot trabalhou duro, por meses e horas a fio, para fazer as cenas de batalha de sua Mulher-Maravilha, assim como Charlize Theron o fez para as sequências incríveis de lutas marciais de sua Atômica. Em ambos casos, são várias cenas filmadas sem interrupção. O porém de Gal Gadot é que ela postou declarações consideradas ofensivas aos árabes e a favor das ações militares de Israel na Faixa de Gaza. Sendo ex-militar do exército israelense, Gadot também apoiou a guerra contra o Líbano, em 2015, em seus perfis nas redes sociais. Por isso, Mulher-Maravilha foi banido no Líbano e sofreu boicotes de menor dimensão em outras nações do Oriente Médio.

A orientação política da atriz certamente ofuscou parte do brilho mundial da produção. E pode ter atrapalhado o caminho para tornar-se ainda mais bem-sucedido nas bilheterias mundiais, pois nesse quesito fica atrás de Frozen, animação que também é dirigida e protagonizada por mulheres, que arrecadou US$ 1,2 bilhão.

Hidden Figures, que em tradução literal significa figuras escondidas, mostra a realidade das mulheres cientistas/pesquisadoras ainda na contemporaneidade: são silenciadas, omitidas, desprezadas pelas histórias oficiais e por seus pares homens, em grande parte dos ambientes de trabalho e nos centros de pesquisa.

A reencenação de fatos reais, caso de Hidden Figures (Estrelas Além do Tempo), mostra o quanto a história dos homens brancos barrou, e ainda hoje busca silenciar, as histórias das mulheres. Em especial, as das cientistas das chamadas ciências “duras”, exatas. E se essas mulheres pertencem às diversidades raciais, aí é que a apropriação indevida acontece a céu aberto.

O roteiro narra a história das três cientistas negras (Katherine Johnson, Dorothy Vaughan e Mary Jackson) que fizeram diferença na agência NASA (National Aeronautics and Space Administration), durante a corrida espacial dos EUA x URSS (atual Rússia), permitindo que o astronauta John Glenn fosse o primeiro norte-americano a orbitar ao redor da Terra, em 1962.

Apesar do enorme sucesso de público e crítica, o filme não teve premiação no Oscar 2017, mas recebeu três indicações como melhor filme, melhor roteiro adaptado e melhor atriz coadjuvante para Octavia Spencer. Ela interpreta a cientista Dorothy Vaughan, programadora que implementou o sistema de linguagem Fortran na NASA.

O foco maior da produção é em Katherine Johnson (com bela atuação da atriz Taraji P. Hansen), responsável por calcular a trajetória de Alan Shepard (o segundo homem no espaço) e que revisou os cálculos realizados pelos ainda pioneiros computadores eletrônicos, a pedido pessoal de John Glenn, antes de sua viagem pela órbita terrestre, devido à expertise dela como física e matemática.

Desnecessário dizer o quanto essa produção, realizada no coração da indústria cinematográfica eurocêntrica, surpreende e chega a ser taxada como “inacreditável” pelo imaginário colonizado de parte da crítica patriarcal ocidental. Primeiro, pela revelação da história “desconhecida” sobre serem das mulheres boa parte dos créditos para o sucesso do programa espacial dos EUA, desde seus primórdios. Segundo, a maior parte dessa equipe pioneira foi formada por mulheres negras, em plena época de forte reação do conservadorismo segregacionista contra os movimentos pelos direitos civis da população negra norte-americana.

É um filme para lá de contemporâneo, nesta segunda década do século XXI, marcada por retrocessos imensos, em países ocidentais. Perigo para os direitos à liberdade de expressão e os direitos humanos, políticos e civis das mulheres e das diversidades. Que o digam os Estados Unidos dos seguidores neonazistas do presidente Donald Trump. Ou o Brasil dos fundamentalistas de centro e extrema direita, que apoiam censuras absurdas às artes, aos livros, e a favor dos golpes contra o Estado Democrático de Direito e das barbáries como estupros e demais violências contra as mulheres e as diversidades humanas.

A diretora brasileira Laís Bodansky resumiu isso em seu discurso na premiação deste ano no Festival de Cinema de Gramado (RS). Seu longa-metragem Como Nossos Pais recebeu seis prêmios, dentre eles o de Melhor Filme, Melhor Direção e o de Melhor Atriz, para Maria Ribeiro. Laís enalteceu as ações das mulheres no cinema nacional e pontuou a necessidade urgente de se fazer mais filmes sob o ponto de vista feminino. “Será que nós, mulheres, não queremos dirigir nem roteirizar? Somos apenas 15% na indústria do audiovisual. Por quê? É importante refletir, porque não é que a gente não queira contar nossas histórias, mas há um filtro. É preciso romper com isso e conquistar o espaço do discurso”.

Veja o trailer de Girls Trip, inédito no Brasil:

Sandra Machado

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