Não há cura para o que não é doença

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Liminar para “cura gay” é afronta aos LGBTI

Juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do DF (Reprodução)

Em pouco mais de um ano, o Brasil tornou-se um dos países mais mencionados na imprensa internacional, em especial, na europeia, e também nas mídias marcadas pelo ativismo político e social. As razões para tanta “publicidade”, porém, são as piores: perdas e violações de direitos humanos e de conquistas civis e sociais de seus cidadãos e cidadãs. E o que mais chama atenção das mídias mundiais é o fato de tais retrocessos serem avalizados ou estofados em decisões judiciais baseadas, principalmente, em convicções ideológicas e/ou religiosas. Ou seja, sem lastros materiais em conhecimento técnico ou científico, de especialistas, ou em pesquisas.

É o caso da decisão de um juiz federal do DF, do dia 15 último, sobre a caquética, publicamente desacreditada, e descreditada, “cura gay”. A Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia (CFP) lamentou a decisão do juiz federal Waldemar Cláudio de Carvalho, que “interfere na interpretação da Resolução CFP 01/1999 e abre um precedente perigoso para o uso de terapias de reversão da sexualidade”, atesta em nota o CFP.

O Conselho considera a liminar judicial “um retrocesso imenso a necessidade de reafirmar, em pleno século XXI, que a homossexualidade não é doença, distúrbio nem perversão”. Ao mesmo tempo, o CFP registra sua “satisfação com a resposta imediata da sociedade brasileira e internacional, especialmente das psicólogas e dos psicólogos, que têm demonstrado com firmeza posicionamento contrário a esse retrocesso absurdo”.

O CFP expressou também a solidariedade à comunidade LGBTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexuais), ao afirmar que continuará “junto na luta em defesa do respeito aos direitos sociais e civis dessa população”.

A preocupação do Conselho tem procedência e embasamento em diversos (aliás, centenas) casos de clínicas de “terapia de reversão sexual”, na América do Sul e ao redor do globo, que são verdadeiros centros de torturas físicas, morais e psicológicas contra “pacientes” LGBTI. Em geral, disfarçam-se como clínicas de reabilitação de dependentes químicos, em países como o Equador e o Peru (veja o vídeo), que recebem comprovadamente pacientes gays, lésbicas e trans para a cura gay. A maioria dessas unidades é ligada a igrejas cristãs. O Ministério Público Federal brasileiro investiga indícios de casos similares em alguns desses centros. Não raro, as pessoas forçadas a tais “terapias” carregam sequelas e pensamentos suicidas ao longo de suas vidas.

A liminar do juiz federal de Brasília foi dada à ação movida por um grupo de psicólogas (os) defensores dessa prática, que representa uma violação dos direitos humanos e não tem qualquer embasamento científico. Na audiência de justificativa prévia para análise do pedido de liminar, o Conselho Federal de Psicologia se posicionou contrário à ação, apresentando evidências jurídicas, científicas e técnicas que refutavam o pedido liminar.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também decidiu, esta semana, auxiliar a defesa do CFP na ação que pretende derrubar a resolução 001/1990 (que impede profissionais da área de psicologia de oferecerem a “cura gay”). Menos ainda, tais terapeutas podem encarar a homossexualidade como doença.

O presidente nacional da OAB, Claudio Lamachia, afirma que uma eventual decisão neste sentido pode representar retrocesso social. Com isso, a OAB ingressará como amicus curiae – “amigo da corte” ou “amigo do tribunal”, entidade estranha à causa, mas que traz esclarecimentos sobre questões essenciais ao processo.

Os representantes do CFP destacaram que a homossexualidade não é considerada patologia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) – entendimento reconhecido internacionalmente desde os anos 1990. Também alertou que as terapias de reversão sexual não têm resultados, como apontam estudos feitos pelas comunidades científicas nacional e internacional, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico das pessoas LGBTI.

O CFP ressalta, ainda, os impactos positivos que a sua Resolução 01, de 1999, produz no enfrentamento aos preconceitos e na proteção dos direitos da população LGBTI no contexto social brasileiro. Mesmo com essa medida e outras leis que garantem proteção e são contra a discriminação (previstas desde a Constituição de 1988), o país é campeão mundial em assassinatos e em violência (espancamentos, abusos e estupros) motivados pela LGBTfobia.

Rozângela Alves Justino em pose para a revista Veja. Foto: Ernani d’Almeida

A atual ação que ganhou a liminar foi movida por profissionais ligados/as a cultos e seitas religiosas, e que trabalham com pastores e políticos fundamentalistas de tais religiões, como é o caso da psicóloga Rozângela Alves Justino. Foi ela que, em 2009, ganhou fama ao defender publicamente que “a homossexualidade é um transtorno e que deveria ser curada”. Rozångela foi publicamente censurada pelo Conselho Federal de Psicologia, que a puniu pelas declarações e tratamentos sem base científica.

Naquele ano, ela foi defendida pelo bispo da Diocese de Recife da Igreja Anglicana do Cone Sul da América, reverendo Robinson Cavalcanti, que deu apoio à psicóloga, considerando que o resultado do julgamento foi um “ato de perseguição heterofóbica” (sic) do Conselho Federal de Psicologia. Rozângela chegou a afirmar que “o movimento ‘pró-homossexualismo’ tem feito alianças com conselhos de psicologia e quer implantar a ditadura gay no país”. Leia aqui essa entrevista dela na revista Veja. Dá para constatar que quem precisa urgente de tratamento é a própria “psicóloga”.

O “pai” da (sic) cura gay

Uma pesquisa rápida na internet não deixa dúvidas. As campanhas que chamam atenção para a “cura gay” recomeçaram, em franco retrocesso, a partir deste século 21, aqui e em outros países mundo afora. São muitas as promessas de “retorno à heterossexualidade”, com o apoio de pastores, ministros religiosos e/ou de profissionais da área da saúde.

Na verdade, são promessas sem nenhuma base em pesquisas ou tratamentos científicos, mas respaldadas por seitas e cultos, principalmente, de fundamentalistas evangélicos. O “fenômeno” tem ocorrido tanto em países desenvolvidos como nos mais pobres, indistintamente.

A questão foi tão disseminada que pelo menos os casos mais evidentes e mais escandalosamente exploradores da “boa vontade” têm sido abertamente combatidos por organizações governamentais ou não-governamentais. Algumas sessões de “cura da doença gay” chegavam a custar U$ 1,2 mil, em meados de 2012. E arrebanharam “fiéis” de países como os Estados Unidos, França, Brasil e outros da América Latina.

Entretanto, em julho de 2012, a Exodus International, uma das maiores entidades religiosas no mundo, anunciou que deixaria de oferecer a tal “terapia reparativa”. O então presidente da Exodus, Alan Chambers, explicou que a “cura” era realizada com aconselhamentos e orações a quem teria a orientação homossexual. No entanto, ele reconheceu que não haveria comprovação da eficácia do tratamento e também porque tal não faria parte da “mensagem bíblica”.

A Exodus é sediada nos Estados Unidos, com alcance em 39 estados, e tem representação no Brasil e em outros nove países. Ainda de acordo com a resolução apresentada na 37ª Exodus Freedom Conference, quem ainda acreditasse na “conversão” para a heterossexualidade poderia ministrar nas suas assembleias, mas sem o apoio “oficial” da entidade.

Dr. Robert L. Spitzer pediu desculpas aos LGBTI pelo erro “fatal” sobre a sua classificação da homossexualidade como doença e um possível tratamento de cura.
Foto: Alex di Suvero/The New York Times

A terapia “reparativa” foi subsidiada por uma pesquisa publicada em 2001, na revista científica Archives of Sexual Behaviour, pelo então influente psiquiatra norte-americano, Robert L. Spitzer, ex-professor da Universidade de Columbia, em Nova York, que morreu aos 83 anos, em fins de 2015. A pesquisa daria suporte às tentativas de “curar” a pessoa da sua homossexualidade.

Entretanto, em maio de 2012, o médico voltou atrás e desacreditou seu próprio “artigo da cura”, pelo que ele, à época com 80 anos, considerou ter sido um “estudo fatalmente defeituoso”. Spitzer enviou carta à mesma revista que publicou seu artigo e pediu desculpas, disse que errou e que devia retratar-se junto à “comunidade gay”.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou, dias antes das desculpas públicas de Spitzer, um relatório onde classifica a terapia da cura como sendo uma séria ameaça à saúde, ao bem-estar, e até mesmo às vidas das pessoas envolvidas, que foram submetidas a tais terapias.

O vídeo gravado com Dr. Spitzer (em inglês), onde ele fala claramente que seus estudos não provaram a reversão e que foi muito difícil encontrar 200 pessoas gays que participassem da pesquisa. “Apenas alguns casos foram bem-sucedidos.”

Alguns governos e parlamentos voltaram a engendrar políticas “anti-gays”, como uma lei 8711, da Ucrânia, que forçaria os LGBTI a voltarem para o armário. No Brasil, parlamentares das bancadas religiosas da Câmara Federal também têm projetos de lei sobre a regulamentação da “cura gay”.

As piores atrocidades contra pessoas LGBTI ocorrem em países, nações, ou regiões (bolsões) onde predominam a miséria, econômica e social, acompanhada da ignorância e da falta de educação formal, bem como do machismo patriarcal. É o caso de muitos países da África, do Oriente Médio, do Sudeste Asiático, da América do Sul, e dos que formam o Caribe e a Oceania.

Um sem-número de casos extremos de ódio, como assassinatos e a violência sexual para “tentar consertar” homossexuais e lésbicas, foram denunciados em Honduras e na África do Sul. Este sendo um país conhecido como a “capital mundial do estupro”. Inclusive, pelo fato de o sistema judicial não punir, ou até acobertar, os estupradores tanto de mulheres (um quarto das cidadãs sul-africanas são vítimas de abusos e violências sexuais desde a infância), como dos rejeitados gays.

Os avanços dos direitos humanos, civis e políticos de pessoas homossexuais tiveram grande impulso entre as décadas de 1980 e 1990. Principalmente, desde o dia 17 de maio de 1990, quando a Assembléia Geral da Organização Mundial da Saúde (OMS) eliminou a homossexualidade da lista de enfermidades mentais. Neste dia, é celebrada internacionalmente a luta contra a homo, lesbo, bi e a transfobia.

Reação massiva e mundial contra decisão

Ante às reações acaloradas e em massa, majoritariamente contra a liminar da justiça brasileira, a cantora e atriz norte-americana Demi Lovato manifestou-se nas redes sociais contra essa permissão para que profissionais da Psicologia apliquem terapias de “reversão sexual”. Em português, ela compartilhou uma imagem e afirmou: “Pensando em você hoje, Brasil. Espero que vejamos essa decisão errada consertada em breve. Amo vocês”. A norueguesa Tove Lo postou a mesma foto: “Para todos os meus fãs gays no Brasil, não pensem nem por um segundo que vocês precisam de cura por conta de quem vocês amam”.

No Brasil, muitos artistas aderiram aos movimentos nas redes e também se opuseram à decisão do magistrado. Exemplos como o humorista Paulo Gustavo, as cantoras Preta Gil, Valesca Popozuda, Ivete Sangalo, Pabllo Vittar, Daniela Mercury, Claudia Leitte, Sandy, Marília Mendonça, a jornalista Fernanda Gentil, as atrizes Bruna Linzmeyer, Patrícia Pillar, Camila Pitanga, Leandra Leal, Deborah Secco, Tais Araújo, Dani Calabresa.

Os deputados Orlando Silva (PCdoB-SP) e Jean Wyllys (PSOL-RJ) estão com ações contra o juiz federal. Silva entrou com uma representação no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra Waldemar de Carvalho. Para o parlamentar, a decisão “abre portas para que pais pouco informados, mal orientados, e ludibriados por falsos psicólogos, imponham tratamentos que gerem sofrimentos à criança e ao adolescente”. “Não é apenas uma lei, não é apenas uma liminar, é uma porta aberta para o atraso e que precisa ser fechada imediatamente”, acrescenta. Jean Wyllys classifica a decisão como “aberração jurídica”.

A BBC Brasil publicou um bom exemplo de caso de suicídio, ou de pensamentos suicidas, com a cura gay: o do norte-americano Mathew Shurka, que tinha 16 anos quando decidiu contar para o pai que era gay. Apavorado, tinha certeza que “o homem que mais admirava” o aceitaria.

“Eu amo você e vou ajudá-lo”, respondeu seu pai. A “ajuda” veio em forma de terapias que prometiam “curá-lo” da homossexualidade. Em cinco anos, a partir de 2004, o americano passou por quatro terapeutas, um acampamento de “conversão”, foi obrigado a tomar Viagra para se relacionar com mulheres, ficou depressivo e pensou em se suicidar.

Mathew Shurka chegou a ser orientado a não conversar com mulheres para não se tornar um “efeminado”
Foto: Arquivo pessoal  Fonte: BBC Brasil

Veja a Lista dos países onde ser LGBTI é crime:

http://76crimes.com/76-countries-where-homosexuality-is-illegal/

http://76crimes.com/2012/07/16/76-countries-or-78-where-homosexuality-is-illegal/

Sandra Machado

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