A sociedade brasileira anda tão surreal, tão persistentemente desigual, violenta em suas fobias e “ismos” (principalmente, o machismo), e afundada em repressão e corrupção, que já ultrapassa todas as tentativas de filmes e séries feitas para a TV ou para as plataformas da internet de produzir “ficção”. A realidade aflorada à pele da nação é um tapa na cara de quem ainda tenta manter o bom senso, no mínimo. Melhor, é uma surra mesmo. Diária.
Em menos de dois anos, todos os índices de direitos humanos, civis e sociais despencaram de forma tão abrupta que hoje as previsões de “futuro”, principalmente, para as novas gerações, estão bem nebulosas. Incertas. Ao ponto de uma pesquisa mundial sobre estresse e saúde mental mostrar que o povo brasileiro é o que mais sofre de ansiedade no planeta e está no quinto lugar mundial em casos de depressão.
As estatísticas da violência social só pioram. Há ameaças concretas de se perder emprego – ou não conseguir vislumbrar novas chances, no caso de quem já está desempregado há mais de um ano -, ou de toda uma nação andar em marcha a ré, com um macabro retorno ao Mapa da Fome, como já verificado em recentes estatísticas entregues em um documento à Organização das Nações Unidas (ONU).
Assim, o que já estava ruim tende a piorar. Muito. O jornal britânico The Guardian publicou, em julho passado, uma longa matéria sobre o aumento acelerado da pobreza, do desemprego e da situação de rua e mendicância de brasileiros e brasileiras. (Leia aqui)
Também é o caso (do aumento) da violência machista, misógina, pedófila, geracional, racista e (LGBTI)fóbica, que atinge níveis epidêmicos nos últimos meses. Obviamente, esses índices de múltiplas violências devem-se aos neo-nazifascistas, e machistas, tupiniquins, que estavam vociferando no armário até há bem pouco tempo.
Como jamais poderíamos ter imaginado, em nossos piores pesadelos, a censura e a selvageria tomam a sociedade de assalto. Multiplicam-se casos de estupros (de mulheres e crianças – a pedofilia), de feminicídios (interseccionais com o racismo e a lesbo ou bi fobia), de homo ou transfobia em geral, de crimes contra as religiões diversas, e mesmo de abusos, espancamentos e homicídios contra crianças e pessoas idosas.
Uma barbárie o que estamos a presenciar no Brasil de 2017. Parecia até previsível que o país desceria a ladeira. Entretanto, não queríamos acreditar que as coisas poderiam atingir absurdos, como casos de prisões e invasões de privacidade desnecessárias e sem prévia intimação para esclarecimentos – como ocorreu com (e levou ao suicídio) o reitor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Luiz Carlos Cancellier. Ou os diversos registros, em várias cidades do país, da destruição de templos e locais de cultos religiosos de outras matizes que não as das religiões cristãs evangélicas.
Esta semana, durante a sessão solene em homenagem ao falecido reitor da UFSC, o desembargador do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, Lédio Rosa de Andrade, fez um discurso emocionado, no qual afirmou que “só a tragédia pode chamar a atenção de uma população que vive histeria coletiva”. Para ele, os fascistas estão de volta (após 30 anos desde o fim da ditadura militar). “Porcos e homens se confundem. Fascistas e democratas usam as mesmas togas. Eles estão de volta. Temos que pará-los”, conclamou o magistrado, que era amigo pessoal do reitor Cancellier.
Quando as leis, que forjam a Constituição e o Estado Democrático de Direito, sofrem tantas formas de violações e más interpretações, a nação fica à deriva. O Brasil é hoje uma grande nau sem rumo, espoliada pela pirataria mais vil, de corrupção, desmantelamento de seus ativos, e arbitrariedades a céu aberto.
Só para ilustrar, há dois dias, viralizou nas redes sociais um vídeo de ladrões que, no ato de contarem as notas que retiravam de um cofre, mandaram recados explícitos aos membros do atual governo federal. Uma das mensagens: “Aê, Temer, seu fdp! Pensa que é só você que rouba, né, seu fdp. Nóis também rouba (sic). Pega a visão”, desafia um dos assaltantes. Eles filmaram o saque aos maços de dinheiro, enquanto debochavam da situação de presos da Lava Jato, como o ex-ministro e ex-deputado do PMDB, Geddel Vieira Lima, e o empresário Eike Batista. “Chora não Geddel”, ironizam.
A cena é mesmo fruto de uma tragédia. Muito mais do que uma suposta comédia, que seria o mote para viralizar nas mídias sociais. Nem dá para rir. Assaltos, invasões, roubos, assassinatos, e todas as violências já relacionadas neste artigo multiplicam-se país afora como grama em tempos de chuva.
Não são apenas resultado do empobrecimento e do desemprego massivos. São também fruto da abertura de uma caixa de Pandora. Aquela onde os piores males e valores morais, vindos dos que atuam em nome de uma falsa, pseudo, ética, são encarcerados e, uma vez libertados, ninguém sabe onde vão parar. Nem como controlar. Só mesmo um enorme esforço contrário e imediato, como defende o desembargador Andrade. Há que se parar, logo, tais massas fascistóides.
Um exemplo do fascismo (machista) irracional foi o ataque sofrido por uma mãe, Solange Afonso, de 47 anos, ao sair abraçada a sua filha de 20, de uma sessão de cinema em um shopping da área central de Brasília, o Liberty Mall. Um homem de 55 anos as atacou física e moralmente, por achar que elas eram um casal de mulheres lésbicas. A mãe não se intimidou com as agressões, reagiu e chamou os seguranças do shopping para ajudá-la a levar o machofascista para a delegacia. Solange foi agredida no rosto. Ela pediu aos seguranças que não deixassem o homem ir embora porque registraria a ocorrência.
“Eu reagi e xinguei também. Chamei os seguranças e pedi para deterem ele, que nós iríamos para a delegacia. Na confusão, ele bateu, não sei se foi um relógio, alguma coisa no meu rosto. Eu gravei esse vídeo não foi nem para falar sobre a agressão. Gravei esse vídeo para dizer que isso tem que acabar. Eu não sou gay, mas me botei no lugar de todas as pessoas que eu conheço que são e que só querem ser felizes e viver a vida delas”, disse, emocionada.
É arrasador e triste o depoimento dela, que gravou um vídeo e postou nas redes sociais, indignada com a selvageria e com o preconceito contra as pessoas LGBTI. “Mesmo se fossemos um casal de mulheres apaixonadas, esse homem não teria nada a ver conosco!”. Pois é.
Outro registro policial, este um caso emblemático da violência machista, predadora, que assola o Brasil há séculos, mas que agora atinge níveis esdrúxulos, ocorreu também na capital federal. A menina Ana Íris, de 11 anos, foi brutalmente estuprada, assassinada (por estrangulamento) e seu corpo jogado no mato, pelo próprio primo, um adolescente de 16 anos. O menor S. morava sozinho nas proximidades do Morro do Sabão – uma invasão a poucos metros de distância da casa da prima.
A mãe dele desapareceu há 11 anos e o pai está preso também por violência doméstica e tentativa de feminicídio contra uma ex-companheira. O relato é que o rapaz é calado, não tem namorada, e nunca se envolveu em “episódios de violência ou com drogas”. Na verdade, isso não interessa.
O machismo não tem nada a ver com o consumo de drogas, de bebidas alcoólicas, ou com outros fatores exógenos ao fato de ser, per se, uma doença psicossocial que deve ser tratada como tal. O que deveria ser levado em consideração é o exemplo e o histórico de violência contra as mulheres que esse rapaz tem em sua vida. A mãe dele “desapareceu” por quê? O pai sempre foi violento. Espancou e tentou matar uma de suas amantes. Será que também espancou e matou (ou “desapareceu”) a mãe do adolescente?
A mãe da menina Ana Íris, Maria das Graças dos Santos, contou que abrigou o jovem parente até quando foi possível. Deu casa e comida. Entretanto, a família padecia com a falta de alimentos, e de todo o resto, para o sustento de uma casa com cinco crianças – Ana Íris e mais quatro irmãos.
O diretor e crítico teatral Sérgio Maggio escreveu um artigo no qual afirma:
“No pescoço da menina Ana Íris, além das digitais do primo ensandecido pelo sexo, há as marcas do machismo de um Brasil que reluta em ensinar as suas crias que não podemos mais coexistir numa sociedade educada a violentar a mulher, em qualquer idade. Feminismo? Dirão os odiosos de plantão. Não. É conhecimento, que salva, ilumina e transforma pessoas preconceituosas em humanos.”
No Brasil de 2017, as estimativas mais conservadoras do IPEA são de que ocorre um estupro a cada 11 minutos. Isso nas estatísticas oficiais, pois é sabido que a imensa maioria dos casos é subnotificada, ou não é notificada de forma nenhuma. O próprio IPEA divulgou, entre 2013 e 2014, que os números de estupros e outras violações sexuais podiam chegar a mais de 527 mil casos por ano, no país. Então, a média real é de um estupro a cada 15 segundos. O pior de tudo: 70% das vítimas são crianças e adolescentes. Ou seja, é uma nação de pedófilos, para além do machismo.
Ainda de acordo com o Ipea, 70% dos estupros são cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima, o que indica que o principal inimigo está dentro de casa. Com base nos dados do Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), fica evidente que em metade das ocorrências envolvendo menores, há um histórico de estupros anteriores.
Além disso, a proporção de ocorrências com mais de um agressor é maior quando a vítima é adolescente e menor quando ela é criança. As consequências, em termos psicológicos, para esses garotos e garotas são devastadoras, uma vez que o processo de formação da autoestima – que se dá exatamente nessa fase – estará comprometido, ocasionando inúmeras vicissitudes nos relacionamentos sociais desses indivíduos, aponta a pesquisa.
Na verdade, apesar de também atingir os meninos, os dados são esmagadoramente contra as meninas: elas são 89% das vítimas de estupros e abusos sexuais. E são as mais suscetíveis a sequestros, raptos e ao tráfico de humanos para fins de exploração laboral e sexual. Assim como é o caso das mulheres adultas. Em termos de políticas públicas para coibir tais estatísticas da catástrofe, o Brasil também retrocedeu décadas neste último um ano e meio. Foram extintos institutos, organismos governamentais, secretarias ou ministérios de políticas para as mulheres, para a igualdade racial, e para a proteção delas e/ou das pessoas das diversidades étnicas e de orientação sexual e de gênero.
No mesmo período, as chamadas bancadas BBB – Bíblia, Bala e Boi (parlamentares extremistas e fundamentalistas “religiosos”, do setor de segurança policialesca e do agronegócio) no Congresso Nacional – vêm tentando derrubar leis e garantias constitucionais. Lutam para aprovar outras legislações draconianas, que mais parecem saídas de algum infernal submundo vitoriano, do século 19.
Retiram direitos dos povos tradicionais, que formam a base do povo brasileiro, como indígenas, quilombolas (negros), ou os ciganos. Querem retalhar e explorar ainda mais a Amazônia e demais terras protegidas pelas leis ambientais. Querem acabar com o direito das mulheres em diversas áreas, mas principalmente em seus poderes sobre seus próprios corpos. Chegam ao absurdo de criar projeto de lei, já em debate na Câmara Federal, para proibir o aborto até mesmo nos casos de estupro ou nos de riscos à saúde e à integridade física das gestantes – algo pacificado há décadas, no Brasil e mundo afora. Os objetivos são claros, sendo o principal a continuidade da dominação masculina, do machismo patriarcal, sobre as mulheres.
Há deputados e empresários já pregando abertamente até mesmo a revisão da Lei Maria da Penha, que acaba de completar 11 anos e é uma conquista social, civil e penal das mulheres brasileiras. Já foi copiada e segue sendo admirada em vários países. São muitas ondas de conservadorismo retrógrado, de estupidez, nesse Congresso Nacional. O pior conjunto legislativo em termos de ignorância e intolerância, além de ser o mais corrupto, de toda a História do Brasil.
Um parlamento vergonhoso, assim como os movimentos sociais financiados por partidos de (centro e extrema) direita, que forçam o retorno às trevas da censura às artes e à liberdade de expressão. Que se preocupam em atacar e boicotar museus e exposições (com claros avisos de nu artístico), mas que reforçam o machismo predatório, e seus atos extremos de violência, estupros, abusos, assassinatos, e de discriminação contra as mulheres, contra as populações mais vulneráveis na escala social, contra os LGBTI, contra as crianças e as pessoas idosas, negras, indígenas, ciganas.
São políticos e movimentos despudorados e desprovidos de qualquer senso comum de humanidade e de desenvolvimento econômico e social. São os que favorecem, inclusive, o trabalho escravo ou semiescravo, e o da servidão sexual, especialmente, de crianças e jovens mulheres.
O Brasil de 2017 (retro) caminha a largos passos para o Brasil de 1817.
* Caixa de Pandora é um artefato da mitologia grega, sobre a fábula de Pandora, que foi a primeira mulher criada por Zeus. A caixa era na verdade um grande jarro dado a Pandora, e que continha todos os males do mundo. Ela sabia que não deveria, mas em dado momento Pandora abre o Jarro, deixando escapar todos os males do mundo, menos a “esperança”.
Autora e blogueira fala sobre livro nesta quarta-feira Haverá roda de conversa sobre o…
E filme sobre o livreiro será exibido na UnB Caros e caras, quem está…
Livro debate questões de gênero nos cinemas Convido vocês, leitoras e leitores, para o…
Neste domingo e sempre Neste Dia especial, dedicado com carinho, amor e atenção às…
O Brasil do Século 21 é Machopata Somente nestas últimas três décadas, o machismo…
Notas sobre Religião, Cultura e Sociedade Em meio à perplexidade, em tempos de retrocessos dos…