Sai pra lá, Princesa Isabel!

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Brasil é denunciado na ONU por trabalho escravo

As crianças são as maiores vítimas do trabalho escravo: aquele pelo qual não recebem (quase) nada em troca da força de trabalho, vivem em péssimas condições, e não recebem educação ou cuidados com a saúde, previstos nas leis brasileiras.

Escabroso. Monstruosidade. Perplexidade. Passou dos limites. São essas as reações contra a portaria baixada pelo governo Michel Temer que, na prática, descriminaliza, enfraquece a fiscalização, e favorece o trabalho escravo no Brasil. De quebra, ainda dissimula e esconde a lista suja de escravocratas que mantêm seres humanos em regime de trabalho servil, sem remuneração, ou remunerado de forma ínfima, e em condições degradantes de vida. Um meme que circula nas redes sociais resume o “espírito” da Portaria 1.129, do Ministério do Trabalho (MTE), baixada na semana passada: “Primeiro a gente tira a Dilma, depois, a gente tira a Princesa Isabel”.

Sim, a Lei Áurea foi revogada. Para agradar a expressiva bancada ruralista (o B de boi) do Congresso Nacional, em troca de votos para escapar das denúncias da Procuradoria-Geral da República por crimes de corrupção e organização criminosa, Michel Temer faz o Brasil retroceder ainda mais no tempo, até o seu período colonial. E o país já foi denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU), na quinta-feira (19), devido às novas regras sobre o trabalho escravo. O que até este ano podia ser ao menos fiscalizado e combatido por fiscais do trabalho, agora, não mais serão.

As medidas foram imediatamente rechaçadas por diversos organismos e associações ligados ao combate ao trabalho escravo, contra o tráfico humano e contra o trabalho infantojuvenil. Inclusive, e principalmente, procuradores do Ministério Público do Trabalho (MPT), do Ministério Público Federal (MPF), agentes do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait), e da própria secretária Nacional de Cidadania, Flávia Piovesan. Ela é também presidente da Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e classifica a Portaria 1.129 como “inaceitável e pede que ela seja revogada em caráter de urgência, porque “realmente os danos são acentuados e as violações aos direitos (trabalhistas e humanos) são gravíssimas”.

O pior de todas as atrocidades dessa escravidão (pós) colonial, em especial em países periféricos como o Brasil, é o fato de atingir em cheio crianças e adolescentes. O trabalho infantil forma aproximadamente 25% da mão de obra (semi)escrava no mundo e, no Brasil, os dados oficiais do Tribunal Superior do Trabalho (TST) indicam que chega a três milhões o total de meninos e meninas nessa situação. E essa é uma estimativa em ascensão, desde o ano passado, o que reverte a tendência de queda verificada nos anos anteriores. Hoje, caso as medidas baixadas pelo MTE não sejam revogadas, as perspectivas são ainda piores.

Segundo o Ministério Público do Trabalho, a fiscalização e o combate ao trabalho infantil são tarefas complicadas e exigem um trabalho de inteligência prolongado para conseguir, de fato, prender exploradores e resgatar crianças. Apenas de janeiro a junho deste ano, o MPT recebeu 715 denúncias de casos de exploração infantil, pelos canais de atendimento. Ao longo de 2016, foram 1.238.

“A responsabilidade por essas crianças é da família, da sociedade e do Estado. Elas têm direito a uma vida digna”, afirma a procuradora do Trabalho Valesca de Morais. Ela acrescenta que a sociedade impõe o trabalho a qualquer preço aos menos favorecidos, “mas não acha que um jovem de classe média deve trabalhar desde criança, porque não o enxerga como um potencial criminoso”. (Leia mais aqui)

Segundo dados publicados pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), em parceria com a Organização Internacional para as Migrações (OIM), mais de 40 milhões de pessoas no mundo foram vítimas da escravidão moderna em 2016. Dessas, aproximadamente 10 milhões eram crianças. O principal levantamento da pesquisa indica que 152 milhões de crianças entre 5 e 17 anos foram submetidas ao trabalho infantil em 2016. Nas Américas, são 10,7 milhões, sendo que quase três milhões apenas no Brasil.

O trabalho infantil é concentrado principalmente na agricultura (70,9%). Além disso, 17,1% das crianças trabalham no setor de serviços e 11,9% na indústria. Aproximadamente um terço das crianças de 5 a 14 anos envolvidas em trabalho infantil estão fora da escola. Entre as que realizam trabalhos perigosos, 38% têm de 5 a 14 anos, e quase dois terços das que têm de 15 a 17 anos trabalham mais de 43 horas semanais.

A portaria do governo Temer tanto fere a cidadania que a Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, entregou pessoalmente, na quarta-feira (17), ao ministro do Trabalho, Ronaldo Nogueira, a recomendação para que seja revogada em um prazo de 10 dias. Caso não seja atendida, a PGR entrará com ação judicial contra a medida que, segundo seu parecer, vai contra a Constituição ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana.

O ofício da PGR baseia-se em ao menos dois artigos da Constituição de 1988 que deixam claro não poder haver retrocesso na legislação anterior. O que estabelece que a República tem por fundamento a dignidade da pessoa humana (artigo 1º – III) e também o que rege a ordem econômica, que “tem por finalidade assegurar a todos a existência digna e é fundada na valorização do trabalho humano” (170-caput). Raquel Dodge também repassou ao ministro do Trabalho um ofício onde faz considerações pessoais sobre o tema, ao reiterar que “ninguém deve estar acima ou abaixo da lei”.

De acordo com as análises publicadas na imprensa, a portaria do MTE deve-se à pressão da bancada ruralista no Congresso, sendo o setor do agronegócio o principal fomentador (ou retroalimentador) do trabalho em condições análogas à escravidão. Michel Temer teria tomado a iniciativa de retroceder na política de combate ao trabalho escravo devido a uma pressão da bancada do boi. “O presidente trocou a proteção aos trabalhadores vulneráveis pelo apoio dos agro-deputados à derrubada da segunda denúncia da Procuradoria contra ele”, acusa o colunista da Folha de S. Paulo, Josias de Souza, no Blog do Josias.

O fato é que o ministro Ronaldo Nogueira já havia dado sinais claros de que a meta deste governo é mesmo inibir a fiscalização e enfraquecer o combate às práticas escravagistas que, aliás, nunca foram de fato abolidas ou extintas no país. Vêm desde o colonialismo e é histórica e sociocultural, no Brasil, a exploração de mão de obra barata ou sem qualquer remuneração – a escravidão. Por isso, a fiscalização e as listas sujas de quem força o trabalho escravo são tão importantes no país.

Nogueira demitiu do Ministério do Trabalho o chefe da divisão de combate ao trabalho escravo, André Esposito Roston, no último dia 10. A saída de Roston, auditor fiscal do trabalho de carreira, já era aguardada no governo federal. Ele “desagradou” após comentar publicamente o efeito da falta de verbas e da paralisação da fiscalização contra o trabalho escravo, em agosto, durante audiência na Comissão de Direitos Humanos do Senado. (Leia aqui)

Com a portaria do MTE, fica ainda mais difícil a punição de empresas que submetem trabalhadores/as às condições degradantes e análogas à escravidão. A partir de agora, só o próprio ministro do Trabalho pode incluir empregadores na Lista Suja do Trabalho Escravo, esvaziando o poder da área técnica responsável pela relação. A nova regra altera a forma como se dão as fiscalizações, além de dificultar a comprovação e punição desse tipo de crime. Segundo matéria do Estadão, a Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que reúne deputados e senadores ruralistas, afirmou, em nota, que a norma vem ao “encontro” de pautas da bancada.

Mulheres e meninas são as maiores vítimas de exploração (escravidão) laboral e sexual, e também do tráfico de humanos no Brasil e no mundo. Foto: Agência ONU

O que está em jogo, com a portaria 1.129, vai muito além de um agrado de Temer às bancadas ruralistas do Congresso Nacional, para a “troca de favores”, ao descaracterizar o trabalho escravo no Brasil. Isso porque o agronegócio é o setor que mais incorre nas práticas escravagistas e também da exploração de mão de obra infantil (e juvenil). Outro crime. Além do retrocesso imensurável nos direitos civis e trabalhistas, já em crise com as reformas aprovadas este ano pelo Legislativo, o mapeamento da situação do trabalho infantil mostra que o número de trabalhadores precoces corresponde a 5% da população que tem entre 5 e 17 anos no Brasil.

Os menores são os mais explorados no trabalho (semi) escravo, principalmente no setor agropecuário, e no tráfico de humanos para a servidão laboral não-remunerada. Em todo o Brasil, a mão de obra de crianças e adolescentes é usada de forma indiscriminada. Os direitos à infância e à educação são negados para quase três milhões de crianças e adolescentes brasileiros, de acordo com pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

No último dia 12 de Junho, Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil, estudos mostraram que de crianças e adolescentes são expostos a diversas situações de trabalho infantil no país. A pesquisa com base os números do IBGE traz as regiões Nordeste e Sudeste como locais onde este tipo de trabalho é mais comum, mas, abre discussão para a Região Sul, que, proporcionalmente, lidera a concentração dos jovens nessa condição, com 100% das crianças entre cinco e nove anos trabalhando na área rural.

A legislação internacional define o trabalho infantil como aquele em que as crianças ou adolescentes são obrigadas a efetuar qualquer tipo de atividade econômica, regular, remunerada ou não, que afete seu bem-estar e o desenvolvimento físico, psíquico, moral e social. Segundo a Constituição Federal brasileira é proibido para menores de 16 anos a execução de qualquer trabalho, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos. No caso das atividades de aprendizagem, o trabalho não pode ser noturno, perigoso ou insalubre, mesmo para os maiores de 16 e menores de 18 anos. As atividades de aprendizagem também não devem prejudicar a frequência nem o rendimento escolar do menor.

Nos relatórios da ONU e de organismos internacionais de combate ao tráfico humano e ao trabalho escravo, fica claro que mulheres e meninas são as principais vítimas. Hoje, das milhões de pessoas escravizadas sem direito a nada e em condições desumanas, as mulheres e meninas são as mais exploradas, principalmente no comércio sexual, no trabalho doméstico, e nos campos. Os homens sofrem com o trabalho forçado na agricultura, no setor de construção e em exploração de minas. Os números revelam práticas degradantes, porém lucrativas. Mundo afora, a escravatura moderna gera US$ 150 bilhões em rendimentos ilegais. Dois terços desse valor vêm da exploração comercial do sexo.

Em operação na capital Boa Vista (Roraima), entre os dias 6 e 12 de outubro, fiscais do Trabalho encontraram 118 crianças e adolescentes em situações consideradas as piores formas de trabalho infantil, sendo que 13 delas trabalhavam na coleta de lixo, em um aterro sanitário a 14 km do centro de Boa Vista. A empresa responsável, a Sanepav Ambiental, foi autuada por 12 infrações às normas de segurança e saúde. As crianças foram encontradas trabalhando no aterro, entre o lixo, expostas a vários tipos de acidentes e infecções.

Sandra Machado

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