Marco Antônio Queiroga é daqueles nomes com muita história para contar dos bastidores do vôlei. Ele atuou na formação de craques como Sheilla, Fabiana, Jaqueline e Paula Pequeno – compôs a base de uma geração campeã olímpica. A bagagem que o treinador carrega em 34 anos de carreira extrapolou as fronteiras brasileiras. Ele também trabalhou nas seleções femininas portuguesa, peruana e, desde setembro, encara o “desafio mais difícil de todos” à frente da equipe do Egito.
Em entrevista ao Elas no Ataque, o treinador fala sobre as dificuldades com o idioma e a cultura do país árabe. Em uma equipe em que parte das atletas jogam com véu islâmico, Marco ressalta que o esporte é percebido pelas jogadoras egípcias como uma forma de a mulher ter mais liberdade pessoal. Marco Queiroga esteve na capital federal nesse fim de semana com a seleção egípcia para disputar a Copa Brasília em preparação para o Pré-Olímpico.
Como você chegou ao comando da seleção feminina do Egito?
Fui convidado para trabalhar no Egito em junho deste ano. Trabalhei dois meses e meio com a seleção sub-18. Disputamos o Mundial da categoria e conseguimos o melhor resultado de todos os tempos: o 10º lugar. Foram quatro vitórias em oito jogos. Nesse projeto, existia a possibilidade de eu dar continuidade com o time adulto. Parece que querem mudar alguma coisa no sistema do país, então me convidaram. Comecei com esse time há 15 dias.
Qual o principal objetivo neste trabalho com a equipe egípcia?
Estou tentando colocar uma mentalidade mais profissional. Muitas vezes, em um campeonato nacional, tem-se 10 jogadoras no banco, é meio desorganizado. Na Copa Brasília, por exemplo, estamos vendo uniforme, arbitragem, iluminação boa, presença da imprensa. As minhas atletas estão vendo tudo isso, inclusive o comportamento das jogadoras brasileiras. Estamos tentando mostrar para elas o que precisa mudar, mas temos de mudar muita coisa em pouco tempo. Essa é a minha maior dificuldade, tem muita coisa enraizada. Estou brigando para tentar mudar a mentalidade geral, do público, da federação, dos diretores, treinadores e das jogadoras.
O que você conseguiu nesses 15 dias de trabalho?
Mudou completamente o sistema de treino e de cobrança. Antes, elas não eram cobradas. Era tudo muito alegre, muita diversão, mas é preciso saber os momentos das coisas.
Como está a expectativa para o Pré-Olímpico em janeiro?
Sabemos que é uma coisa muito difícil ir para as Olimpíadas. Camarões e Quênia estão um pouco à nossa frente, mas vamos lutar muito e, de repente, com tempo de treinamento, essas viagens podem fazer a diferença.
Você já passou pela base da Seleção Brasileira, pelas equipes portuguesa, peruana e, agora, está na egípcia. Como vê essa “exportação” de técnicos brasileiros?
Existe um respeito muito grande ao vôlei do Brasil, porque começamos há 40 anos. Não somos tricampeões olímpicos masculino e bicampeões olímpicos feminino por acaso. Nós trabalhamos muito ao longo dos anos e uma coisa importante foi a disciplina colocada nos treinamentos, o desenvolvimento de uma escola específica brasileira. Por causa desse trabalho, conseguimos resultados com os melhores jogadores e treinadores. O projeto em que estou faz parte da intenção da Federação Internacional de desenvolver o vôlei na África. O meu salário é pago pelas federações Internacional e Egípcia.
Quais os desafios de assumir a seleção do Egito?
Foi o desafio mais difícil de todos. Em Portugal, a língua era a mesma. Eu fui para lá estudar, fiz mestrado. Comecei a trabalhar em clube e, de repente, estava na seleção portuguesa. Era para ficar dois anos, acabei ficando seis e quase não vim mais embora. Voltei para o Brasil e a Seleção Brasileira foi tranquila. Na equipe peruana, eu tive de quebrar muito paradigma, envolvendo mais política, e precisei aprender espanhol. Mas o mais difícil de todos realmente está sendo agora, porque a cultura é totalmente diferente. E eu estou sozinho.
Que pontos apresentam as maiores dificuldades?
O meu conhecimento de inglês não era suficiente para falar no dia a dia, dar instrução. O meu inglês era para viajar, falar que quero comer e coisas assim. Nos dois primeiros meses, fui muito determinado. Lutei sozinho e, hoje, encaro isso com mais naturalidade. As meninas do sub-18 me ajudaram muito com o inglês, o meu staff me ajudou muito também. Mas, de alguma forma, você é um estrangeiro e, quando começa a dar ordem em outro país, muitas vezes tem uma corrente que não aceita. Mas vou trabalhando, porque a resposta é por meio do trabalho. Hoje, eu me comunico melhor com elas. Dou até bronca em inglês (risos).
A cultura em relação às mulheres também é muito diferente, inclusive algumas atletas da seleção jogam com o véu islâmico. Como foi a sua adaptação para trabalhar com elas?
Eu tive de aprender o que é isso. No Egito, o homem não pode tocar na mulher, enquanto, no Brasil, nós abraçamos, damos dois beijinhos. No meu segundo dia lá, fui cumprimentar uma fisioterapeuta com dois beijinhos e ela se afastou de mim. Não se toca na mulher. No Brasil, é comum o toque, vem todo mundo junto no tempo técnico. Então, tive de me educar e tentar entender. Mas o Egito é o país mais aberto dos países árabes. Nos países mais radicais, é muito difícil, a mulher é como se fosse um objeto. O véu é usado pelas mulheres a partir da primeira menstruação. Como o Egito é um país mais aberto, as famílias mais modernas estão permitindo que a menina decida se ela quer ou não usar o véu. Então, tem menina que usa short, outras usam calça, outras usam o véu e tem aquelas que deixam só os olhos à vista.
Como as jogadoras da seleção se comportam em relação à cultura do país?
O esporte é uma forma de a mulher ter mais liberdade pessoal e isso é uma vantagem para mim. Se ela não faz esporte, vai ficar dentro de casa o dia inteiro. Elas agora estão no Brasil, conhecendo outro país. Elas gostam de treinar, porque poderão melhorar para jogar campeonatos fora. Esse é um dos benefícios e que está me ajudando para que elas queiram treinar mais. Foi um egípcio que comentou comigo essas coisas e vem me ajudando. Mas não é fácil. Temos 15 atletas nessa viagem pelo Brasil e uma menina não pode ficar sozinha no quarto. Elas pediram para ficar todas no mesmo andar. São coisas que não dá para entender às vezes, por falta de conhecimento da cultura, da religião. Muitas vezes, eu as encontro e estão rezando. Eu vou ajustando as coisas.
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