Chico Leite: “Passamos os últimos anos sufocados por uma pregação diária de reforço ao patriarcado”

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À queima-roupa // Chico Leite, procurador de Justiça e novo ouvidor do MPDFT

por Ana Maria Campos

O senhor é experiente na atuação na área criminal, tem uma visão clara sobre o que tem causado essa onda crescente de feminicídios?
Os números resultam da cultura civilizatória cultivada. Passamos os últimos anos sufocados por uma pregação diária de reforço ao patriarcado – dessa vez com amedrontadora retórica religiosa -, em que só se valoriza o masculino, branco e hétero. Para essa visão perversa, mulheres prestar-se-iam apenas a servir e a reproduzir. Nunca tinha visto tanto desrespeito à condição humana. Essa cultura de ódio só poderia redundar em uma objetificação da mulher e na naturalização de um ambiente misógino.

Qual é a solução para redução de um crime que muitas vezes acontece dentro de casa?
Perdoe-me o lugar comum, mas todas as iniciativas realmente transformadoras situam-se em esfera anterior e exterior ao direito. Precisa começar de casa, no tratamento isonômico de meninos e meninas. Depois, na escola e no trabalho, com paridade integral, meio a meio na ocupação de espaços. Somente as mulheres defenderão com lealdade os seus próprios direitos. Não há solução pronta; vejo com esperança, entretanto, a possibilidade de confrontar os conceitos ideológicos que nos levaram a esse clima insuportável.

O Ministério Público pode ajudar a encontrar uma solução para essa epidemia de feminicídios?
Na labuta penal, precisamos antecipar a proteção do bem jurídico. Isso significa aumentar as penas, no Legislativo, quando a vítima for mulher, já nas violências psicológicas e morais e nas ameaças. Porque o crime contra a mulher não viola só a integridade dela, mas uma relação de gênero, em que toda a civilização é e deveria se sentir afrontada. Como consequência, a promotoria precisa agir na origem, com o requerimento das medidas cautelares restritivas, inclusive de prisão, as quais precisam ser concedidas pelo Judiciário com a prova da primeira intimidação ou ataque. É fundamental desestimular o potencial agressor. E evitar o pior. Não dá mais para ficar esperando o desfecho — quase sempre inaugurado com um grito ou uma imposição possessória, ou até mesmo com um gesto autoritário ou de controle travestido de enleio protetivo —, e mais adiante argumentar cinicamente com a falta de uma bola de cristal.

O que acha da ideia de criminalizar a misoginia?
Não obstante trabalhe com o direito penal há tantos anos, nunca fui simpático à criminalizações, porque, assim como na economia o excesso de dinheiro no mercado tira o valor de compra da moeda, no Direito, a multiplicação de leis costuma relativizar a sua força impositiva. Ocorre que a luta hoje, em todo o mundo, é contra as discriminações e as hegemonias. E comportamentos lesivos à humanidade como o racismo, a homofobia e a misoginia, a par de demandarem uma ressignificação mais demorada pela educação, exigem respostas imediatas para não serem normalizadas. Veja a que ponto chegamos com narrativas que justificam o crime com o exercício de uma egoística liberdade de expressão.

Ana Maria Campos

Editora de política do Distrito Federal e titular da coluna Eixo Capital no Correio Braziliense.

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